A Teoria Tridimensional Do Capital Em Marx



Já tivemos a oportunidade de analisar a releitura do pensamento de Marx por parte do professor de Ciência Política da UFPA, Dr. Alex Fiúza de Mello, mesmo (e, sobretudo) no que tange ao tema da globalização; fenômeno ao qual muitos de nossos contemporâneos atribuem um caráter inédito. Tais críticos vêem nisso razão suficiente para desqualificar as contribuições marxianas à análise sociológica do capitalismo concebido - tão somente a partir de meados do século XX – segundo uma versão globalizada. Mostramos, através da tese do referido professor, que tal reserva à interpretação marxiana da globalização não tem fundamento (MELLO, 1999)[i].

Nosso esforço, agora, é o de buscarmos compreender o modo como o referido professor estrutura sua análise da teoria (subjacente) da mundialização em Marx, refletindo sobre o próprio arranjo teórico dado por esse autor clássico à constituição histórico-sociológica do modo de produção capitalista. Para tanto, utilizaremos a principal obra do prof. Alex F. de Mello: "Marx e a Globalização".

Antes de conhecermos a interpretação de Mello (1999) acerca da teoria marxiana do capitalismo, convém-nos explicitar, embora sem maior conseqüência analítica, o conceito de modo de produção, cuja importância heurística é central para a operacionalização de todo o constructo teórico marxiano (MELLO, 1999).

SOBRE O CONCEITO MODO DE PRODUÇÃO

Há inúmeros conceitos de capitalismo, bem ou mal formulados, decorrentes ou não de um plano rigorosamente arquitetado, respondendo mais ou menos aos anseios do grupo social a que o teórico se encontra vinculado, ou dentro de quadros esquemáticos desta ou daquela ciência social moderna. Mas na tarefa sociológica de deslindar o capitalismo, de conhecer sua natureza, constituição e evolução, Marx exerceu um papel fundamental (Mello, 1999).

Karl Marx, no entanto, não se limitou a estudar o capitalismo (embora se tratasse este de seu objeto científico privilegiado). Fernand Braudel o considerou um "autor da história global", por ter sido o "primeiro a fabricar verdadeiros modelos sociais, e a partir da longa duração histórica" (In: ROJAS, 2003, p. 81). Permita-nos, leitor, mencionar o modo como Marx desenvolveu sua teoria de dimensão histórica global relativa a tais modelos sociais.

Em sua Concepção Materialista da História (ou Materialismo Histórico-Dialético), Marx elabora seu conceito-chave para a compreensão do desenvolvimento das sociedades humanas, a saber: modo de produção. Segundo Gorender (2001):

A categoria de modo de produção se qualifica por sua absoluta generalidade, uma vez que, em todo o decurso da história, incluindo o que chamamos de pré-história, nos deparamos com alguma organização social produtiva (GORENDER, 2001, p. 13).

A partir do modo como os grupos humanos se organizam para produzirem os meios pelos quais subsistem, material e simbolicamente[ii], Marx compreendeu a constituição estrutural da história social total das sociedades: das mais simples às mais complexas, modernas ou antigas, coexistindo ou não em dada fase da história da Humanidade (MELLO, 1999). Mello (1999) discorre a respeito do modo de produção:

[...] Aquilo que os indivíduos são, a forma de ser e existir de uma dada sociedade (as várias expressões materiais típicas de sua sociabilidade, de sua institucionalidade societária, de sua dinâmica social), está sempre, necessária e primordialmente, correlacionado(a) (ainda que não mecanicamente) com as condições materiais básicas de sua produção; depende[ndo], em última instância, tanto daquilo que se produz (técnicas de produção, padrões de consumo), como da forma como se produz (relações sociais de produção) [...] (MELLO, 1999, p. 156).

O modo de produção é um conceito analítico (como mais adiante veremos) que permitiu a Marx abordar as experiências humanas multidimensionais (econômicas, políticas, culturais, sociais e ambientais) diferenciadas no tempo e no espaço (GEBRAN (org.), 1978; MELLO, 1999). Em meio à diversidade histórica das sociedades, é necessário perceber características gerais que estruturam todo e qualquer modo social de produção.

Na visão de Marx, todo modo de produção dispõe de uma base econômica composta de determinadas forças produtivas e relações sociais de produção, e sobre a qual se ergue (mais ou menos como expressão dessa base) uma superestrutura político-jurídica e ideológica (MARX, 1989). O conceito de modo de produção vai além da mera descrição de seus elementos estruturais.

O caráter dinâmico do modo de produção está na interdependência dialética dos elementos acima referidos, principalmente em sua base, na qual as forças produtivas estão sempre em movimento, redimensionando-se (para um nível relativamente mais elevado ou não) à medida que as relações sociais de produção avultam suas contradições imanentes (MELLO, 1999).

Resultando do aumento desse antagonismo (princípio básico de todo devir histórico), as forças produtivas tendem, por sua vez, a por em questão a existência de tais relações sociais de produção, instituídas histórica e socialmente; o que quer dizer também que seus reflexos serão mais ou menos sentidos na superestrutura jurídico-política e ideológica. Portanto, ao sofrer mudanças significativas, em sua base econômica, a sociedade institui (como predominantes!) novas relações de produção reguladoras da vida social total. Dos escombros de um (ou vários) modo(s) social(is) de produção nasce outro, que terá prevalência (MELLO, 1999).

Porém, Marx, para compreender o desenvolvimento histórico das sociedades, não aplicava cegamente seu conceito de modo de produção. Stálin foi quem engessou o desenvolvimento da Humanidade a partir da experiência de determinados países europeu-ocidentais (modos de produção comunal-primitivo, antigo ou escravista, feudal, capitalista e socialista), juntamente com o russo (além dos já citados, modo de produção socialista) (GORENDER, 2001). Podemoscitar seus estudos sobre as formas diferenciadas de modo de produção ocorridas no Oriente, como na China, Índia etc., cuja peculiaridade histórica o forçou a desenvolver o conceito modo de produção asiático (GEBRAN (org.), 1978). Gorender (2001) chega a dizer:

Inspiradas no esboço genial das Formen, as investigações marxistas mais recentes vêm explorando a multilinearidade da evolução histórica, de acordo com a concepção genuína de Marx e Engels. O modo de produção asiático, discricionariamente abolido por Stálin, recuperou o estatuto de categoria marxista. E, ao invés da teleologia, do finalismo ideológico, o reconhecimento do progresso histórico decorre de um critério objetivo: o da imanência da dialética entre o desenvolvimento das forças produtivas – em primeiro lugar, os próprios homens – e a revolução das relações de produção [...] (GORENDER, 2001, p. 17).

Em outra situação de pesquisa, enquanto analisava os fatores que concorreram para o declínio do Império Romano, Marx mostrou que as forças produtivas no modo de produção escravista, tal como ocorreu na Roma Antiga, acabaram por não se desenvolver, isto em decorrência, fundamentalmente, do aumento do antagonismo de classe (isto é, das relações sociais de produção). As classes dirigentes, que detinham o controle dos meios sociais de produção, além de dilapidarem a riqueza coletiva, vivendo conspicuamente, sentiam-se desestimuladas a investir nas forças produtivas, afinal, as classes subalternas (os escravos, em especial) expressavam seu descontentamento destruindo os instrumentos de trabalho (GANDY, 1979).

Esses instrumentos, portanto, tinham que ser produzidos com material rústico e pesado, para resistirem às tentativas de sabotagem implementadas pela classe trabalhadora. Sem o desenvolvimento das forças produtivas, conquanto aumentasse o antagonismo das relações de produção na Roma Antiga, o estágio estacionário, ali, vivido só acabaria por razão de uma sucessiva onda de invasões bárbaras. Esse fator externo significou o golpe de misericórdia a uma sociedade, em seu cerne, moribunda (GANDY, 1979).

Enquanto um dado modo de produção não tem suas forças produtivas completamente desenvolvidas tenderá a subsistir, mesmo sob a vigência história de outro – que pari passu o suplanta. Nesse caso, podem coexistir modos sociais de produção (um ou vários de forma residual). Marx percebeu que o modo de produção não está à mostra na realidade concretamente vivida. Teóricos marxistas da linha estruturalista deram ênfase ao conceito marxiano de formação social, ainda mais complexo e próximo das condições materiais concretas vividas pelas sociedades (GEBRAN (org.), 1978).

A análise de Gebran (org.) (1978, p. 17), baseando-se em pesquisas de autores marxistas estruturalistas, como Poulantzas, faz a seguinte diferenciação entre os dois conceitos fundamentais do Materialismo Histórico: "A formação social é uma totalidade concreta, historicamente determinada, e o modo de produção o conceito teórico que permite pensar a totalidade social". Em Dicionário de Economia (1985), a referência é para outro estruturalista marxista, que também tratou dessa distinção conceitual:

Louis Althusser entende o modo de produção como uma totalidade que articula a estrutura econômica, a estrutura político-jurídica (leis, Estado) e uma estrutura ideológica (idéias, costumes). A existência concreta de um modo de produção estaria numa formação social localizada [...] Teoricamente, numa formação social concreta, podem estar presentes vários modos de produção, tendo um como dominante (DICIONÁRIO DE ECONOMIA, 1985, p. 283).

Expostos, ainda que de maneira breve, aspectos essenciais do conceito de modo de produção, cabe-nos avançar a análise, abordando-o em sua versão capitalista. Na interpretação sociológica de Mello (1999), existem três elementos fundamentais na teoria marxiana do capitalismo que explicam a vigência da mundialização do capital. O capitalismo é, a um só tempo: I) um modo de produção (ampliada) de mercadorias; II) um modo de produção (ampliada) de mais-valia; logo, III) um modo de produção mundial. Analisemos cada uma dessas dimensões.

I – MODO DE PRODUÇÃO (AMPLIADA) DE MERCADORIAS

Segundo Marx, o capitalismo apresenta determinadas características que o distinguem de qualquer outro modo de produção social. A primeira delas é, sem dúvida, a predominância da produção de mercadorias. O modo capitalista de produção só pode ser concebido a partir dessa primeira dimensão porque, antes de tudo, o capitalismo pressupõe a produção da riqueza coletiva voltada para a troca (MELLO, 1999). Para explicar essa primeira dimensão do modo de produção capitalista, Mello (1999) cita e analisa três aspectos desse processo: a complexificação da divisão social do trabalho; a universalização das transações comerciais e a monetarização generalizada da economia (MELLO, 1999).

A divisão do trabalho deve ser concebida como divisão social, técnica e regional do trabalho. Ela se refere às relações de produção desenvolvidas entre o campo e cidade, agricultura e indústria (mediados pelo comércio). São nestas instâncias econômicas (fases imediatas de um mesmo processo global de acumulação capitalista) que as atividades específicas e complementares do campo e da cidade são desenvolvidas e aperfeiçoadas — em suma, complexificadas (MELLO, 1999).

O nível de desenvolvimento das forças produtivas de cada uma destas instâncias determinava, segundo Mello (1999), "as possibilidades maiores ou menores de diversificação das atividades sociais", bem como:

[...] das estratégias de distribuição diferenciada dos cargos e papéis sociais entre os membros de uma coletividade, das hierarquizações, das estratificações, das ramificações das esferas de manifestação da vida econômica, política e cultural (MELLO, 1999, p. 156).

Embora Mello (1999) não limite os efeitos tecnológicos da divisão do trabalho ao interior das unidades de produção, é neste âmbito que a complexificação das atividades econômicas do campo e da cidade está mais evidente. Já do ponto de vista histórico, a complexificação da divisão social, técnica e regional do trabalho, sob a égide capitalista, pode ser sistematizada da seguinte forma: até meados dos séculos X e XIII[iii], a divisão do trabalho, na Europa, era doméstica, voltada para o consumo direto; as atividades diárias quando não eram artesanais, eram agrícolas - sendo ambas feitas pelo grupo familiar, cujos membros se revezavam ou dividiam, entre si, conforme critérios etários e de gênero, as tarefas produtivas (HUBERMAN, 1986).

Por exemplo, tosquiar, fiar, tecer, costurar e tingir eram tarefas realizadas por todos os membros sempre quando um deles necessitava de roupa; assim como derrubar a árvore, cortar a madeira, limpá-la e trabalhá-la eram etapas exigidas no processo de produção de um móvel (HUBERMAN, 1986). Processos semelhantes eram realizados rotineiramente pelo grupo social no interior do espaço doméstico.

Com o tempo, o uso do dinheiro e o florescimento contínuo das cidades abriram oportunidades para o artesão (e sua família) abandonar (num longo processo histórico) a agricultura e o campo, em busca de melhor sorte na cidade (HUBERMAN, 1986). Nas cidades, entre os séculos XIII e XV, os artesãos se instalavam em residências próprias ou arrendadas, onde passavam a desenvolver suas atividades, e com uma diferença: a produção não era mais voltada somente para o consumo interno; o mercado local (a cidade e o entorno mais imediato) a demandava.

A produção, ao aumentar, exigia do artesão a contratação de dois ou três aprendizes (jornaleiros). Ainda assim, o mestre artesão dominava todo o processo produtivo, repassando aos aprendizes todo o segredo do ofício (HUBERMAN, 1986; MELLO, 1999). Estas novas organizações do trabalho manufatureiras no ambiente urbano, mas ainda limitadas ao domínio do mestre artesão (dono da matéria-prima e dos meios de produção), foram incluídas no "sistema de corporações", do qual derivaram as famosas e poderosas corporações de ofício (MELLO, 1999).

A importância destas pode ser mensurada pelo monopólio que mantinham, dentro da cidade, através da tradição, impedindo que indivíduos estrangeiros e outras corporações de fora vendessem o mesmo produto na cidade (MELLO, 1999). Em suas palavras, diz-nos Mello (1999):

Sob o regime patriarcal, de castas, corporativo, feudal, a divisão do trabalho obedecia a regras fixas de organização, condicionadas pela estreiteza de uma produção voltada prioritariamente aos valores-de-uso, às necessidades imediatas de consumo circunscritas a uma espacialidade social extremamente limitada (MELLO, 1999, p. 83).

A partir do século XVI até meados do século XVIII, outras formas de organização do trabalho surgiram e se consolidaram em desacordo com o sistema de corporações. Embora ainda realizadas no âmbito familiar, daí sua denominação de "sistema doméstico", essas organizações se diferenciavam por um importante detalhe: os mestres estavam desprovidos das matérias-primas (HUBERMAN, 1986; MELLO, 1999).

Os mercadores, além de passarem a fornecê-las, em troca de maior escala de produção, uma vez que o mercado já não se limitava aos muros da cidade, ocuparam-se ainda de outra tarefa, antes, também, incumbida ao mestre artesão: vender a produção. O capitalista, finalmente, tornava-se senhor da circulação de mercadorias em escala não local. Sem o controle das tarefas extremas do processo, que lhes impedia de determinar o preço final do produto, os mestres artesãos "passaram a ser simplesmente tarefeiros assalariados" (HUBERMAN, 1986, p. 115).

Devido aos conflitos que essas organizações tinham com as tradicionais corporações de ofício nas cidades, elas acabavam se instalando nas mediações urbanas ou mesmo próximas de zonas rurais, de onde os capitalistas recrutavam famílias camponesas empobrecidas e desalojadas de suas propriedades, para se transformarem em mão-de-obra assalariada (MELLO, 1999)[iv]. Foi notado, em meio a isso, o fenômeno da parcelarização das tarefas do trabalho na manufatura segundo o sistema doméstico. Mello (1999) nos diz a respeito:

A manufatura representa uma organização da produção fundada na divisão social e técnica do trabalho (ainda sem a utilização da máquina), na decomposição da tradicional atividade do artesão polivalente em diversas operações distintas, confiadas cada uma a grupos diferentes de trabalhadores que passam a ocupar-se e a especializar-se exclusivamente naquela função (MELLO, 1999, p. 88).

Mais adiante:

Não obstante, [a manufatura] constitui-se na primeira invenção do trabalho coletivo, formado de muitos trabalhadores parciais, e cujo virtuosismo decorre da mutilação do trabalhador individual através de sua especialização em tarefas específicas dentro da oficina (MELLO, 1999, p. 89).

Já a partir da segunda metade do século XVIII (até nossos dias), passa a predominar, na Europa ocidental, o "sistema fabril". Este é caracterizado pela introdução da máquina cujo resultado (que todos conhecemos) foi intensificar a produção e destiná-la para além dos limites da cidade e da nação.

A criação da máquina é a resposta concreta, a versão melhor elaborada e o maior testemunho para o fato de que o trabalho organizado em padrões manuais já não satisfazia às exigências do desenvolvimento do mercado (MELLO, 1999, p. 91).

A produção industrial (incrementada com a máquina) se processava fora do ambiente doméstico. As oficinas aproveitaram não somente uma massa de lumpemproletários[v] expulsa do campo outrora; mas comportavam os antigos artesãos (do campo e da cidade) despojados tanto de sua matéria-prima quanto de seus meios de produção, pois eles nada tinham a oferecer, assim como os mendigos, senão a própria força de trabalho (MELLO, 1999).

No interior dos espaços fabris, o aumento da parcelarização do processo produtivo (expressando não apenas a necessidade capitalista de domínio centralizado sobre a nova classe laboral, os assalariados, mas a intensificação da especialização das atividades produtivas) ampliou a rede de interdependência econômica entre indivíduos e grupos sociais habitantes das cidades e do campo (MELLO, 1999).

Daí podermos falar da universalização das atividades comerciais, que, por sua vez, estão na base da evolução histórica da divisão social e técnica do trabalho, em nível nacional, internacional e transnacional. Em outras palavras, o aumento da complexificação da divisão do trabalho decorreu também da ampliação do intercâmbio comercial das nações européias entre si e destas com os povos dos continentes da África, Ásia, Oceania e América – desde o começo da Era Moderna: meados do século XVI (MELLO, 1999).

Sobre esse período, os estudiosos apontam o melhoramento da tecnologia naval (bússola, astrolábio, cartografia), a unidade nacional através da formação de determinados estados europeus, o aumento do custo de vida europeu em razão do monopólio exercido por algumas cidades italianas no mediterrâneo, que assumiam o papel de entreposto comercial entre Europa e Oriente, de onde provinham as famosas especiarias (HUBERMAN, 1986; MELLO, 1999).

Foram estes, enfim, alguns dos principais fatores que ensejaram a Revolução Comercial na Europa ocidental. Embora o comércio não se tenha iniciado neste período, mas muito antes, desde os tempos das primeiras civilizações que temos notícia (como a fenícia, romana etc.), ele, entretanto, é alavancado (no fim da Idade Média) pelo desenvolvimento demográfico nas cidades européias, o que aumentava a demanda mercantil por grande parte do continente europeu. Serviram de móbile as Grandes Expedições Ultramarinas, patrocinadas pela burguesia comercial nascente do século XV e XVI (HUBERMAN, 1986; MELLO, 1999).

Com estas expedições partidas de Portugal, Espanha, França, Inglaterra e Holanda, foi possível obter um extraordinário volume de mercadorias (como especiarias, matérias-primas e metais preciosos) da Ásia, África e América que alimentou as nascentes empresas manufatureiras da Europa ocidental. As relações internacionais entre o velho continente e o mundo foram estabelecidas sob o regime colonial imposto pelas potências européias, especialmente ao Novo Mundo (MELLO, 1999).

Além da remessa de riquezas (ouro, prata e especiarias), via tributos, às metrópoles européias, o Pacto Colonial consistia em privilegiar estas, fosse por meio da compra de produtos coloniais, fosse por meio das operações de venda às colônias, quando a estas impunham não apenas seus produtos, mas preços exorbitantes. Daí o fluxo de riquezas constante e crescente para o continente europeu (HUBERMAN, 1986; MELLO, 1999).

Nessa dialética do comércio em ebulição intercontinental, cada zona do planeta tem sido, desde os primórdios, forçosamente incorporada à dinâmica da civilização da mercadoria, transformados seus produtos particulares em matérias-primas de consumo universal [...] (MELLO, 1999, p. 81).

Num segundo momento, com a manufatura, esta relação desigual entre as metrópoles européias e as colônias se acentuou (HUBERMAN, 1986; MELLO, 1999). Na balança comercial, as mercadorias manufaturadas (com maior valor agregado), pesavam em favor dos primeiros. O fato é que o capitalismo comercial estava difuso pelo mundo, ditando sua lógica de subsunção (a princípio, tão somente) formal das economias periféricas. Nestas, portanto, foram estimuladas, segundo palavras de Mello (1999, p. 157), a "metabolização [gradual] de todos os produtos a valores-de-troca, e de todas as atividades produtivas a processos de criação de novos valores-de-troca" em escala mundial, supondo não só "o desenvolvimento do comércio", mas o "das relações monetárias".

A monetarização generalizada da economia é o terceiro aspecto que Mello (1999) apontou como parte do processo histórico de constituição do modo de produção (ampliada) de mercadorias. Antes de as "relações monetárias" se generalizarem na economia, ou melhor, antes do dinheiro se tornar instituição reguladora da vida social moderna, já servia como intermediário nas trocas de mercadorias (M-D-M) em muitas épocas e lugares distintos, assumindo a condição de equivalente geral (MELLO, 1999). Havia também ocasiões em que servia de fim, (D-M-D), mas, pelo caráter provisório e mesmo acidental, retornava à sua primeira condição (MELLO, 1999). A peculiaridade da monetarização no sistema capitalista é, a propósito, dissertada por Mello (1999):

Como resultado da intensificação e difusão do mercado, o dinheiro, além de meio de troca e de medida universal de valor [...], vai também assumindo (contraditoriamente) uma terceira determinação, que o torna cada vez mais autônomo em relação à própria circulação: desponta como fonte de acumulação, meio para gerar e expandir riquezas (MELLO, 1999, p. 159).

Mesmo com este novo ciclo (D-M-D'), o dinheiro não se tornou fonte imperecedoura da qual o capitalista extraísse o elixir mágico a garantir à sua empresa rentabilidade crescente e segura. O enriquecimento do capitalista não se deve, também, ao fato de ter ele melhor aproveitado as oportunidades do mercado, fazendo desfalcar dos pares o que, então, lhe cai à mão de forma copiosa: um montante de dinheiro relativamente superior ao que dispunha.

Se assim fosse, de um ponto de vista global, não haveria mudança significativa no volume das movimentações comerciais intermediadas pelo dinheiro. A posse individual deste, como equivalente universal das trocas mercantis, não mostraria à classe capitalista senão a substituição da riqueza monetária por riqueza material e, doravante, desta por aquela — ainda que tais operações fossem regidas por "atos generalizados de fraude" (MELLO, 1999, p. 160).

Tanto o volume da riqueza monetária quanto o da riqueza material não apresentam magnitudes estáticas. Marx se propôs conhecer qual mecanismo fazia aumentar a riqueza global, uma vez que esta aumentava em relação à anteriormente produzida. Suas atenções se voltam para o processo de produção e não mais de circulação das mercadorias (MELLO, 1999). A partir de então, uma segunda dimensão da teoria marxiana do capitalismo surgirá sob a lupa do prof. Alex F. de Mello: a produção (ampliada) de mais-valia.

II – MODO DE PRODUÇÃO (AMPLIADA) DE MAIS-VALIA

Em O Capital, encontramos uma das narrativas mais dramáticas em toda literatura sociológica universal, a que versa sobre o desenraizamento bestial de populações inteiras do campo, arrancadas de suas condições objetivas de produção e lançadas ao que Lefebvre (2001, p. 33) denomina "teatro dramático dessa gigantesca metamorfose": a cidade do capital. Marx em "A chamada acumulação primitiva" denuncia — não há, para nós, outro termo — as práticas desumanas de governos e de uma classe economicamente ascendente, a burguesia, contra o campesinato europeu (modelarmente o inglês). Antes desse processo de expulsão ser desencadeado, diz-nos o prof. Alex:

De uma maneira geral, nas diversas formações socioeconômicas pré-capitalistas, ora o trabalhador se apresenta como um pequeno proprietário de seus meios de produção, um proprietário que trabalha (como o camponês), ora se constitui em propriedade direta ou indireta (instrumento de trabalho) de outrem (escravo ou servo), mas sempre ligado às condições objetivas de produção (MELLO, 1999, p. 29).

Não importa qual sua roupagem, tais formações econômicas pré-capitalistas são reguladas pela lógica da economia de uso, ou seja, produção voltada ao consumo direto — pois quando o excedente de trabalho não é casual, contingência do processo produtivo, é destinado ao consumo conspícuo mais imediato das classes detentoras, em geral, do controle direto e indireto dos meios de produção sociais. Ora, isto fere o princípio mais elementar da produção capitalista: a formação de excedente produtivo destinado ao mercado. Somente com a diluição dessas relações sociais de produção dar-se-ia maior vazão às práticas econômicas burguesas, à vista que o modo de produção capitalista supõe:

[...] 1) a dissolução da relação de vínculo direto do trabalhador com a terra; 2) a dissolução das relações de propriedade deste com os instrumentos de trabalho; 3) a dissolução dos vínculos diretos entre trabalhadores e condições objetivas de produção — ainda que sob a condição de 'objetos' de apropriação (escravos ou servos) — cujo resultado final vem ser o trabalhador 'livre' (reduzido à força de trabalho); o indivíduo que, como trabalhador nesta sua nudez (como observa Marx), é, em si, um processo histórico (MELLO, 1999, p. 29).

E conclui Mello (1999): "[...] as conseqüências impiedosas da gigantesca e evidente revolução que servia de parto à emergência da era do capital" (MELLO, 1999, p. 35) foram, então: demolição de casas e choupanas dos camponeses, espoliação das terras eclesiásticas, expulsando, de quebra, os rurícolas que ali residiam e trabalhavam como servos, ampliação das terras agricultáveis, intensificação da cadência de trabalho nas atividades agrícolas e diversificação e ampliação do comércio entre campo e cidade (MELLO, 1999).

O processo histórico pelo qual o capitalista se vê livre das amarras do passado é o mesmo que escraviza o trabalhador assalariado na civilização da mais-valia (MELLO, 1999). Tal processo duplo de concentração dos meios produtivos nas mãos de poucos e a depossessão de muitos relativa a tais meios criou as condições para o surgimento do trabalho assalariado, sem cujo emprego generalizado nas novas unidades produtivas fabris nem os meios de subsistência, nem o dinheiro e tampouco as mercadorias se converteriam, nas mãos da classe burguesa, em capital (MELLO, 1999, p. 28-30).

Contudo, a cidade será, para muitos destituídos de seus meios de subsistência, um fulcro ilusório. Lá, nada mais encontrarão a não ser a miséria, o desamparo social e a preocupação dos citadinos com o aumento da mendicância, prostituição e criminalidade. Mas, as reações do poder institucional não tardaram. O Estado tratou de combater a proliferação inevitável de mendigos e ladrões. Uma passagem apenas, em O Capital, nos parece o bastante para entendermos porque Marx denominou de "sanguinária" a legislação da época (MELLO, 1999, p. 37). No governo britânico de Jaime I, revela-nos Marx (1989):

Quem perambule e mendigue será declarado vadio e vagabundo. Os juízes de paz, em suas sessões, estão autorizados a mandar açoitá-los e encarcerá-los por 6 meses, na primeira vez e por 2 anos, na segunda vez. Na prisão, receberão tantas vezes chicotadas quantas os juízes de paz acharem adequadas... Os vagabundos incorrigíveis e perigosos serão ferreteados com um R sobre o ombro esquerdo e condenados a trabalhos forçados; se novamente forem surpreendidos mendigando, serão enforcados sem mercê. Essas prescrições legais subsistiram até ao começo da segunda década do século XVIII, quando foram revogadas... (MARX, 1989, p. 854).

Com uma estreita compreensão histórica do problema – que era o fato de tantos mendigos, prostitutas e criminosos de toda espécie pulularem de diferentes cantos da cidade -, talvez bastasse aos antigos habitantes o que, zombeteiramente, lhes respondesse sobre esses novos (porém degradados) tipos urbanos, um bêbado e desempregado à semelhança do personagem dostoievskiano Marmiéladov: "Porque todo homem precisa de ter algum lugar para onde ir" (DOSTOIEVSKI, 2004). Esse descolamento histórico entre os dramatis personae da cidade do capital parece expressar a percepção geral e limitada dos citadinos sobre o problema dos socialmente excluídos.

No caso da origem dos trabalhadores assalariados, diriam aqueles habitantes que estes foram, um dia, recrutados daquela grande massa de miseráveis e maltrapilhos que ex abrupto perambulava pela cidade, sem saberem de onde ela vinha e para onde ia; já o capitalista lhes parecia um bem-sucedido legatário da nobreza feudal — e o dinheiro com que sempre o nobre capitalista compra a força de trabalho? Ah! Naturalmente que o adquiriu no comércio, especulando com a venda de sua produção(LEFEBVRE, 2001, p. 34-5). Desmistificam essa "coleção de mercadorias" na vitrine urbana as palavras de Mello (1999):

Na lógica da explicação marxista, sobressai antes de mais nada, a idéia de processo. Os fatos e acontecimentos não se precipitam repentinamente, como se não tivessem raízes históricas prévias sustentando e alimentando a impulsão dos novos desenvolvimentos (MELLO, 1999, p. 31).

Expostos os efeitos históricos da acumulação originária do capital, cabe-nos falar de sua reprodução. Esta só se processou devido à disponibilidade de capital (isto é, meios de produção apropriados por não produtores diretos) e força de trabalho abundante (produtores diretos destituídos daqueles meios). Segundo Mello (1999): a acumulação capitalista compreende a mais-valia, ou seja, o valor que sobrevém ao da reposição do capital, dotando este da faculdade de ampliar sua base produtiva originária e redimensionar sua composição orgânica (aumento do capital constante em relação ao variável); nos termos de Mello (1999, p. 162), "valor excedente (mais-valia) que represente[a] a possibilidade de renovação do ciclo produtivo". Segundo Marx:

O produto do processo de produção capitalista (...) não é simplesmente produto (valor-de-uso), nem simples mercadoria (um produto que tem um valor-de-troca). Seu produto específico é a mais-valia (...) No processo capitalista de produção, o processo de trabalho só se manifesta como meio, o processo de valorização ou a produção de mais-valia, é o fim (MARX In: MELLO, 1999, p. 163).

A mais-valia, por ser o excedente de trabalho não pago ao trabalhador assalariado, é sub-repticiamente apropriado pelo capitalista; à vista que o valor destinado àquele já está predeterminado (através de um contrato formal de trabalho) antes de lançar-se no processo produtivo. Nos tempos que antecederam à elaboração marxiana do valor-trabalho, a qual pôs a descoberto esse "roubo" institucional, a mais-valia era considerada, pelos economistas, a renda do capitalista, no caso, convencionalmente chamada "lucro" (MELLO, 1999).

O capitalista, ao apropriar-se da mais-valia na forma de renda, "fruto do capital produtivo" (LEFEBVRE, 2001), anseia por aumentá-la a cada processo rotativo de seu capital; pois é somente o sobretrabalho não-pago que garante a valorização do capital (MELLO, 1999, p. 103). Movido pela sede vampiresca de acumular, o capitalista, então, lança mão de uma série de maquinações (à margem ou sob a anuência da legislação trabalhista) a fim de extrair do trabalhador um excedente de trabalho dentro de suas expectativas de lucro para aquele período (MELLO, 1999).

A título de exemplo, o capitalista impõe o prolongamento da jornada de trabalho — o aumento do trabalho excedente relativamente ao trabalho socialmente necessário —, sem, contudo, compensar o trabalhador com acréscimo no salário (em suma, eleva-se a taxa de mais-valia absoluta) (MELLO, 1999).

No momento em que o capitalista depara-se com obstáculos que objetivamente o impedem de continuar a aplicar seus métodos convencionais de extração de mais-valia absoluta; no momento em que a margem de seus lucros é ameaçada pelo aumento da resistência coletiva dos próprios trabalhadores, assim como pela inusitada guerra que se desencadeia, no âmbito do mercado, contra seus pares, capitalistas concorrentes, lança-se à cata de novos meios tecnológicos que lhe compensem futuramente as possíveis perdas de então. Numa primeira fase da era capitalista, séculos XVI até XVIII, explica-nos Lefebvre (2001):

A taxa de mais-valia (relação entre os lucros e os salários) tem mais importância que a taxa de lucros, [isto] porque não há concorrência dos capitais no mercado dos capitais, mas somente concorrência dos produtos (LEFEBVRE, 2001, p. 108).

Num momento histórico ulterior, a concorrência entre capitais pela busca de lucros estipulados, força seus competidores a empregarem no processo produtivo meios mais eficazes de exploração da força de trabalho (taxa de mais-valia); razão que explica o desenvolvimento das forças produtivas (MELLO, 1999). A mais-valia a ser gerada pelas novas forças produtivas (mais-valia capitalizada) não incidirá na extensão da jornada de trabalho, mas na intensificação desta pelo aumento da produtividade do processo de trabalho.

Poderíamos dizer que, com a disponibilidade de volume de meios de produção (capital) bem como de trabalho dos destituídos de tais meios (força de trabalho), encontramos a base sobre a qual a produção capitalista se efetua, gerando uma acumulação mais ou menos proporcional ao quantum de mais-valia extraído durante seu processo. Entretanto, essa premissa não raro é posta em questão, pois, nem toda vez o mercado absorve a produção afluente, o que equivale a dizermos que a mais-valia pode não ser realizada de acordo com o volume de extração da mesma no processo produtivo (MELLO, 1999). Isso ocorre porque o capitalista se depara com outros concorrentes no circuito da circulação e dependendo de uma série de fatores estruturo-conjunturais terá lucros variáveis ao esperado (MELLO, 1999):

Fica então demonstrado que, embora a mais-valia se origine (sempre) diretamente no processo de produção pela exploração do sobretrabalho (não-pago) pelo capital, sua realização efetiva, para cada capitalista em particular, irá depender do jogo da concorrência, da capacidade de cada um em colocar seus produtos à venda com preços competitivos, decorrendo o maior ou menor ganho (e mesmo prejuízo) (MELLO, 1999, p. 166-7).

Diferentemente das formas pretéritas de produção social, onde a produção é apenas "reprodução simples", no capitalismo (desde sua gênese) sua reprodução se efetua em escala sempre ampliada (MELLO, 1999, p. 164). Como a concorrência entre capitais gera taxa de lucro (encontrada na razão direta entre mais-valia e totalidade do capital), o capitalista precisa melhorar a produtividade do trabalho de sua empresa, a fim de obter maior lucratividade no mercado. Para tanto, investe no emprego de novas tecnologias: máquinas são introduzidas no processo de trabalho, potenciando-o; e como seu efeito imediato, há uma liberação de força de trabalho, gerando desemprego tecnológico.

Em obtendo os resultados esperados, repetirá novamente o processo, qual seja, reinvestir o novo montante de mais-valia na produção convertendo-o em novas tecnologias (forças produtivas) poupadoras de mão-de-obra — a exemplo das máquinas que fabricam máquinas, máquinas-instrumentos destinadas à produção de bens de capital. E tudo isso para que faculte ao capitalista uma renovada expectativa de lucros além da taxa média, além da anteriormente obtida. No entanto, como nos mostra Mello (1999), não só fará ele uso de tal método, como as demais empresas capitalistas terão suas oportunidades de empregá-lo.

Como os empresários estão presos à lei férrea da acumulação capitalista, o método, com o tempo, generaliza-se, provocando um aumento na composição orgânica de seus capitais, isto é, mesmo que diminuam seus custos com capital variável (pagamento de salários), disporão de menos trabalho vivo que gera valor (ao contrário da máquina, trabalho morto¸ que o transfere, mas ainda assim este substitui aquele a cada rotação do capital completada).

Com a elevação da taxa de composição do capital e decréscimo do emprego de trabalho vivo, o tempo de rotação do capital se torna mais demorado, incidindo, a longo prazo, na diminuição do volume global da mais-valia a ser capitalizada, logo na própria taxa média de lucro que tende a despencar pela generalização de métodos mais atualizados de extração de mais-valia ampliada (mais-valia relativa extraordinária) (MELLO, 1999). A solução inevitável, provisória e ainda assim renovável (mas não sem riscos), será o mercado mundial.

III – MODO DE PRODUÇÃO MUNDIAL

Explica-nos Mello (1999, p. 267) que o mercado mundial funciona como um dos "fatores contratendenciais à queda da taxa geral de lucro, com isso inibindo os efeitos mais danosos da lei geral da acumulação capitalista e, conseqüentemente, evitando um colapso do sistema". Esse é o momento chave para entendermos o conceito de modo de produção mundial desenvolvido por Mello (1999), mas não devemos esquecer que o processo de mundialização, para Marx, se inicia muito antes da fase do capitalismo concorrencial, pois as tensões do mercado mundial impulsionaram as mudanças no capitalismo — isto é, o mercado mundial é o fundamento de toda e qualquer transformação ocorrida não só, mas principalmente, no modo de produção capitalista — transformações observadas tanto com a revolução comercial, quanto com a industrial em suas várias etapas (MELLO, 1999). Diz a propósito Mello (1999, p. 80): "Nascido com o alargamento do mundo, o fato é que o capitalismo sempre encarnou, desde a sua gênese, a vocação à mundialização [...]".

A Revolução Industrial (seu exemplo mais modular), nas duas etapas iniciais (mas, sobretudo, a partir da segunda, qual seja: a de meados de XIX) alcançou um elevado nível de desenvolvimento das forças produtivas que ensejou (dentre outras conseqüências) um novo patamar de mundialidade do capital, pois, em todo continente europeu, como nos assegura Mello (1999, p. 103): "A grande indústria será (processualmente) o ato final de desterritorialização da produção de seu antigo patamar nacional". A propósito, diz Mello (1999) nesse extenso trecho:

Ao lado da expansão das novas fábricas de bens de consumo surgem as indústrias de bens de capital (unidades fabris destinadas à própria fabricação de máquinas). Penetra-se, ao mesmo tempo, na era do carvão e do ferro, das estradas de ferro e dos navios a vapor, registrando-se taxas de crescimento econômico como em nenhuma outra época anterior da história do capitalismo. Sobretudo depois de 1840, graças às conquistas da Química Orgânica e do Eletromagnetismo, as transformações se fazem sentir em todos os setores da economia, abrindo-se oportunidades inéditas de exploração de campos produtivos até então desconhecidos. Ampliam-se investimentos em pesquisa e renovam-se os padrões tecnológicos. As novas possibilidades de inversão lucrativa passam a exigir um tratamento mais eficiente das novas matérias-primas naturais que ainda eram estranhas para a época (como a borracha e o petróleo), impondo um processamento operacional em bases mais científicas (MELLO, 1999, p. 112).

É na era industrial moderna (século XIX em diante) que o capitalismo conquista sua autonomia frente ao mercado mundial, que, ao contrário de antes, passa a responder à oferta crescente de mercadorias jorradas das indústrias inglesas, francesas, belgas, alemãs etc. No final do século XIX, a concentração do capital (aumento da taxa de composição orgânica de cada capital) provoca outro fenômeno: sua centralização. As empresas maiores passarão a desbancar as menores, incorporando-as às suas bases produtivas e aumentando o controle em determinados ramos produtivos e comerciais em escala planetária. Surgem, desta fusão, os monopólios, grandes empresas capitalistas que passam a ditar a dinâmica da acumulação capitalista (MELLO, 1999).

Os monopólios apresentam uma taxa de composição orgânica elevada, precisando encurtar, sempre que possível, o tempo de rotação do capital durante seu ciclo natural (produção, circulação e realização de mais-valia ampliada) para efetivar seu lucro não menos estratosférico; com efeito, são notadas melhorias significativas nos meios de transporte e de comunicação. Notamos, nessa "epopéia reprodutiva" do grande capital, a ampliação de sua plataforma produtiva já em curso mundo à fora (MELLO, 1999).

No último quartel de Oitocentos, sucedeu-se o "maior surto de criação de estradas-de-ferro e o crescimento da indústria naval vaporizada em toda a Europa" (MELLO, 1999, p. 113), sem, contudo, evitar o aumento da produção num ritmo frenético e acima da demanda. Essa superprodução provocou a queda geral de preços – isto é, nesse período, o capitalismo viveu uma longa crise econômica (MELLO, 1999, p. 121). A solução continuou ser o mercado mundial.

A concentração e a centralização das atividades industriais levam, por conseguinte, o capital a se mundializar num patamar mais elevado. Há um reordenamento da Divisão Internacional do Trabalho, a partir do controle militar dos Estados europeus ocidentais sobre as áreas colonizadas ou zonas de influência do planeta, domínio esse demandado pelas grandes empresas monopolistas (MELLO, 1999). Esclarece Mello (1999):

O aumento da exportação de capitais produtivos europeus já é significativo no segundo quartel do Oitocentos, e vem acompanhado por um acirramento do processo de colonização que, desde então, vai assumindo formas diferenciadas de manifestação. Entre 1830 e 1880, a política (neo)colonialista — movida pelos interesses hegemônicos do capital industrial — atinge raios ainda mais amplos de incidência, abrindo um novo ciclo de lutas (diferentes no ritmo e no grau) entre países metropolitanos pela partilha do globo (África e Ásia) e pelo domínio do mercado mundial (MELLO, 1999, p. 118).

Portanto, a auto-regeneração do capital industrial (europeu) tem ocorrido em nível de mundialidade mais amplo, desde o início da Era Moderna. Em decorrência desse devir histórico-civilizacional, novas edições de concentração/centralização se processaram, fazendo surgirem os oligopólios, fusões de empresas monopólicas aliançadas ao capital financeiro em seu novo surto de mundialização (MELLO, 1999).

Os oligopólios, empresas gigantescas que se fundem sobre uma base produtiva cada vez mais ampliada, são, na transição do século XIX ao XX, a expressão de um domínio cada vez mais consolidado do capital industrial em escala progressivamente mundial (MELLO, 1999). Marx não vivenciou esse novo movimento expansionista do grande capital produtivo europeu (ao que se associam o norte-americano e o japonês) nos albores do século XX. Entretanto, Marx o antecipou, em certa medida; pois não desconhecia a direção que doravante a grande indústria européia tomaria em seu desenvolvimento histórico[vi].

A concentração e a centralização constituem, portanto, o binômio da mundialização do modo de produção capitalista; sendo uma de suas fases (no século XX) o Imperialismo, que, por sua vez, não foi, como pensara Lênin, a fase superior do capitalismo mundializado, mas intermediária (MELLO, 1999). Mello (1999) sumariza o processo de mundialização por que passou o modo de produção capitalista na fase imperialista em diante:

A transformação do capitalismo concorrencial em imperialismo é vista como a passagem da livre concorrência (entre pequenas empresas) para uma fase de cartelização do mercado mundial entre grandes capitais (monopolismo), que passam a dominar todos os principais circuitos da produção em todo o planeta (...) induzidos pela necessidade de reprodução ampliada do capital, fundem-se em grandes oligarquias (o capital financeiro), encarnando e materializando, em cores vivas, a vocação do capital à progressiva mundialização (MELLO, 1999, p. 139).

A narrativa de Mello (1999) sobre o devir histórico do capitalismo, como modo de produção mundial, não pára por aí. No século XX, após dois grandes conflitos mundiais, após o desmonte das regiões coloniais afro-asiáticas — formalmente confirmado na Conferência de Bandung, em 1955 —, o que pôs fim à era imperialista, o capitalismo experimenta um novo surto de mundialidade: o Globalismo, que representa, na ótica de Mello (1999, p. 195), a fase superior do capitalismo mundializado. O que justifica (mais do que nunca) a alusão ao capitalismo como modo de produção mundial é, dentre outros, este trecho da análise de Mello (1999):

[A despeito do propalado pós-industrialismo,] Estatísticas do FMI, por exemplo, revelam que a produção industrial continuou a crescer nos últimos vinte anos, passando nos países industrializados (CEE, Estados Unidos, Japão, Canadá) de um percentual de 73%, em 1975 (tomando-se por base referencial de cálculo o ano de 1985 = 100%), para 113%, em 1993 (MELLO, 1999, p. 214).

Sobre os mercados de capitais, diz Mello (1999):

Cresceram (...) como bem ilustra o caso da Ásia, hoje o mercado de maior ascensão em todo o planeta. Sobretudo no Leste Asiático (...), os negócios deverão saltar de uma faixa de US$ 300 bilhões, registrada em 1994, para mais de US$ 1 trilhão por volta do ano de 2004. Um outro estudo (...) prevê que em torno do ano 2010 o mercado de capitalização naquela região emergente (incluindo-se, agora, a Índia e a China) terá aumentado para 11% do esperado total mundial de US$ 31.1 trilhões, bem como dos 6% do total de US$ 14,9 trilhões registrados em 1994 (Idem, ibidem).

Falar da globalização é falar das grandes corporações transnacionais; da financeirização do capital produtivo, como instância de sua transitoriedade necessária e estratégica a dotar-lhe de mobilidade extraordinária, isto é, de certa espectralidade mundial que assombra a soberania das nações; das privatizações que reduzem o poder de intervenção estatal nas relações econômicas em seus próprios domínios; da desregulamentação e flexibilização das relações de produção em todo o mundo — forçando, por corolário, à fragilização (jurídica) e subsunção (política) da classe trabalhadora global a metas cada vez mais elevadas de taxa de mais-valia (absoluta e relativa) ditadas pelo grande capital supranacional; do neoliberalismo, instrumento ideológico hegemonizado pela mídia mundial; da uniformização dos padrões de consumo, a despeito da fragmentação das bases produtivas em constante processo de reestruturação; da mundialização da cultura etc. (MELLO, 1999).

E pensar que Marx intuiu (um século antes) alguns desses efeitos do capitalismo em sua feição virtualmente global, como modo de produção mundial. Marx, segundo Mello (1999):

[...] prenunciou o monopólio, a centralização agigantada das bases produtivas capitalistas, a consolidação do mercado mundial, a abertura das fronteiras nacionais à livre concorrência entre capitais, as crises globais, o desemprego estrutural, a invasão mundial do capital, deslindando, com um século de antecedência, o motor de propulsão da globalização [...] [Marx] jamais deixou de reconhecer o poder de auto-reprodução, de resistência e de expansão do sistema [capitalista] (MELLO, 1999, p. 266).

Se, nos últimos decênios, a globalização, em suas diversas manifestações (econômico-financeira, cultural, jurídico-política e ambiental), debuta como questão central no temário de que já nos ocupamos; é mais verossímil imaginarmos, após as revelações de Mello (1999), Marx tocando a velha e empoada rebeca de cujas cordas extraísse notas escarnecedoras de seus coveiros de plantão.

CONCLUSÃO

Em conformidade com a análise de Mello (1999, p. 193), depreendemos que, sem o concurso simultâneo da referida "tripla dimensão (histórica e lógica) de reprodutibilidade, dialeticamente interdeterminante", o capitalismo, sob o prisma marxiano, ficaria inviabilizado como modo social de produção predominante. A complexidade do tema e a profundidade da abordagem de Marx demandaram do autor de "Marx e a Globalização" uma tarefa que se sucedeu do primeiro ao último capítulo dessa obra: tratar, de uma só vez, dos três elementos que fundamentam o modo de produção capitalista, em meio às suas gradações de mundialidade institucional e material (MELLO, 1999).

Conquanto a análise do prof. Alex Fiúza de Mello sobre a teoria marxiana da constituição triádica do capitalismo não fuja a essa exposição evidenciada desde o capítulo "A Acumulação Originária" até o que versa sobre "O Globalismo", abordamos, linhas acima, essa "tripla dimensão" separadamente, segundo uma seqüência lógica que facilitasse a compreensão de um público leitor mais amplo.

Por fim, deixemos ao leitor as palavras de Mello (1999) sobre a atualidade do pensamento marxiano, para que reflita, juntamente conosco, a propósito de ser o capitalismo um modo de produção (ampliada) de mercadorias e de mais-valia, sem cujas características fundamentais não poderíamos contemplar o que sempre esteve como parte do tripé do capitalismo: o modo de produção (ab ovo) mundial:

O século XXI, por tudo, ainda reverberará Marx, saboreando os efeitos mais amargos, e cada vez mais globalizados, de um tipo de civilização que [...] [insiste] em perpetuar os abismos de desigualdades que engendrou. Por muito, e não por menos, para o incômodo de tantos, ainda conviver-se-á com o espectro de Marx; um autor que, mesmo sem ter vivido a era do globalismo, com extrema sagacidade anteviu o design e o sentido último de seu desfecho (MELLO, 1999, p. 267).

REFERÊNCIA

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ROJAS, Carlos Antônio A. Braudel, o mundo e o Brasil. São Paulo (SP): Cortez, 2003.

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NOTAS

*Sociólogo formado pela UFPA e especialista em Sociologia e Educação Ambiental pela UEPA.

[i] Uma análise pontual dessa questão pode ser encontrada em PUREZA (2008).

[ii]Sahlins (2003, p. 169) assinala a importância de se pensar o modo de produção como algo mais abrangente, conforme postulou Marx: "A produção, portanto, é algo maior e diferente de uma prática lógica de eficiência material. É uma intenção cultural".

[iii] Huberman (1986, p. 115) sumariza os graus de complexificação da divisão do trabalho na história do capitalismo europeu; sem que tomemos por uma fórmula invariável tais etapas, segundo nos orienta o autor, nos servirão de guia ao expormos as considerações de Mello (1999).

[iv]No caso da Inglaterra, o fenômeno dos "cercamentos" se constituiu após se consolidar o processo de expulsão das famílias campesinas, que viviam secularmente na região, então, reclamada pelo capital; as propriedades se destinaram à formação de terras de pastagem para rebanho de carneiros.

[v]Lumpen é um termo de origem alemã, que significa "trapos". Foi utilizado por Marx, como prefixo de Lumpenproletariat, para definir uma parte da reserva de mão-de-obra citadina vivendo socialmente excluída: mendigos, prostitutas, falsários etc.

[vi] Sugerimos a leitura de nosso artigo, para a compreensão da tese marxiana da mundialização (PUREZA, 2008).


Autor: André Pureza


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