Mundialização Do Capital à Luz Da Teoria Marxiana



André R. Pureza [i]

Embora o capitalismo tenha sofrido mutações consideráveis, ao longo do século XX, proporcionando, no encalço de seu desenvolvimento contraditório, a elaboração de uma pletora de estudos marxistas e de alternativas distintas de abordagem sociológica que nos ajudam, hoje, a compreender a dinâmica sócio-histórica desse modo de produção global, a recorrência aos escritos do pensador alemão do século XIX, Karl Marx, parece-nos ser ainda uma imposição em nossos dias.

É escusado dizermos que o fenômeno da globalização expressa a materialização planetária do modo de produção capitalista. O mundo social tornou-se com seu advento mais complexo. Hoje, fatores de nível global, aparentemente distantes dos de natureza local — embora ainda mediatizados pelas realidades nacionais e regionais — são também inclusos, obrigatoriamente, na presente formulação dos problemas microssociológicos. Diante da globalização cada vez mais evidente dos fatos humanos, os conceitos sociológicos fundem-se, plasmando novas epistemologias (IANNI, 1996).

Como versão de um capitalismo sem fronteiras institucionais (econômicas, geográficas, culturais e políticas), que, se não destruiu ainda, subsume à sua lógica reprodutiva as demais formas residuais de organização societárias tradicionais, a globalização vem sendo reputada como um fenômeno contemporâneo inédito, ao qual emprestam cientistas sociais de vários países um sem-número de definições — além de Globalização, "Globalismo", "Globalitarismo", "Era global", "Aldeia global", "Economia-mundo", "Ordem mundial", "Formação global", "Sistema global", "Modernidade mundo" ou "Modernidade global" etc. (IANNI, 1996; SANTOS (org.), 2002).

Mas mais do que frisar um rol de conceitos atribuído ao modo de produção capitalista em sua conformação planetária, interessa-nos saber como Marx foi (re)inserido no presente debate sobre o tema da globalização. Isso se justifica, com mais forte razão, por pesar em nossas lembranças o ruidoso refluxo que, no período transicional das décadas de 1980 e 90, sofreu o marxismo no âmbito da militância partidária e, de modo especial, acadêmica.

Dahrendorf (1991) explica tal refluxo nos movimentos sociais e estudantis de inspiração socialista, apontando dois importantes fatores: 1) a queda do Muro de Berlim (1989) - símbolo de um mundo bipolarizado ("Guerra Fria"), construído depois do fim do segundo grande conflito mundial do século XX, em pleno continente europeu; 2) o que, em 1991, o mundo todo assistia como a consubstanciação final de um processo falimentar de um modelo de sociedade estatizante, em cujas idéias marxista-leninistas se apoiava, a saber: a dissolução da União Soviética (EVANGELISTA, 1997).

Diante disso, muitos se perguntaram: Marx não havia se tornado, em definitivo, um pensador obsoleto, deixando de justificarem as releituras acerca de seu pensamento social? Fazia sentido insistir numa teoria social mantida, no decurso de boa parte do século XX, mais pela força das armas que do argumento e a cujo domínio político-ideológico metade da população mundial teve que se render? Cientificamente, Marx estava ou não completamente defasado, assim como, ideologicamente, ficara fora de moda para militâncias universitárias e partidárias de muitas partes do planeta? No que alude à questão da obsolescência de Marx face à globalização do capital, justificaria afastá-lo, então, de todo e qualquer esforço de teorização, mesmo se tratando ele de uma das principais referências à análise sociológica do capitalismo?

Para muitos, Marx, por ser considerado um pensador datado, não daria definição alguma à forma global tomada hodiernamente pelo capitalismo, tampouco ele entenderia o porquê desta dimensão planisférica apresentada por tal modo de produção social. A constituição tentacular do capital, argüiriam, tomando o mundo por palco, não se permitiria a uma fácil apreensão por parte do marxismo (uma ferramenta heurística erigida nos limites do século XIX, quando ainda não se cogitara algo parecido).

Goytisolo (1996), em romance biográfico inspirado na família Marx[ii], escarnece dos marxistas, apontando-lhes com dedo em riste fatos bombásticos, como a queda do muro de Berlim e a derrocada do socialismo russo, descrevendo, inclusive, em face desses eventos políticos de repercussão mundial, um Marx, "o mísero exilado de Dean Street", como um vetusto (ora abobalhado, ora furibundo), sentado em frente da televisão, assistindo, "por fim com consternação", "ao desmantelamento dos sistemas supostamente fundados no [seu] pensamento" (GOYTISOLO, 1996, p. 24).

Entretanto, nem tudo na referida obra se resume a pontas de baionetas acuando Marx para o canto obscuro da tragicomicidade. Goytisolo (1996) permite a seu biografado respirar. Pondera ao dizer que, no século XX, as idéias marxianas sofreram com um sem-número de interpretações, dentre cujos efeitos o desgaste teórico e o desinteresse generalizado foram os mais visíveis e duradouros, desde fins da década de 1980. Diz Goytisolo (1996):

[...] a aplicação perversa e distorcida das doutrinas dele [Marx] para restaurar a idolatria czarista e os atributos de poder mais execráveis do velho despotismo asiático o obrigara a se calar durante décadas, embalsamado em vida por aqueles que haviam suprimido a cruel exploração da burguesia e governavam em nome da ciência e do pensamento correto (GOYTISOLO, 1996, p. 25).

De qualquer modo, Marx continuaria desterrado do cenário atual de debates relativos à globalização, se não fosse pelos esforços exegéticos de um especialista, dentre poucos, atuando nos hiperbóreos deste país. Professor do Deptº de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA), Alex Fiúza de Mello, ao longo de mais de 25 anos de dedicação ao magistério e à pesquisa no ensino superior, tornou-se um especialista do tema globalização, isto depois de alçar vôos próprios sobre as pradarias da vasta e fecunda obra marxiana.

Sua importância, como pensador marxista contemporâneo, pode ser aquilatada pelas contribuições dadas à reflexão sociológica relativa ao capitalismo globalizado, reabilitando, no que concerne a esse tema, à mesa de debates o próprio pensamento de Marx. Suas obras, "Marx e a Globalização" (1999); "Capitalismo e Mundialização em Marx" (2000) e "Modo de Produção Mundial e Processo Civilizatório: os horizontes históricos do capitalismo em Marx" (2001), dentre outros textos (artigos e ensaios do gênero), habilitam-no a ser uma voz amazônica na plêiade de especialistas (não só nacionais) versada no tema da globalização. Antes de tudo, o prof. Alex, por compreender os termos da discussão acerca da validade da teoria social de Marx para os dias hodiernos, acresce:

Desde o final de 1989, com a derrocada da URSS e a regressão dos países do Leste ao regime capitalista, o que se ouve e lê, todo o tempo e nos quatro cantos do globo, é um ensaio orquestrado de réquiem anunciando o 'sepultamento' de Marx (MELLO, 2001, p. 9-10, grifo do autor).

E, no entanto, questiona-se:

[Até] que ponto, efetivamente, as evidências do atual momento histórico, e sobretudo aquelas trazidas à tona pelas transformações operadas no tecido da sociedade mundial pelo processo de globalização em curso, estão a autorizar, cientificamente falando, uma condenação fácil e tranqüila dos postulados centrais da teoria de Marx, particularmente aqueles que tocam a sua leitura medular a respeito das leis gerais do desenvolvimento do capitalismo...?(MELLO, 2001, p. 11, grifo nosso).

No caso de a globalização capitalista ter sido, de algum modo, um tema abordado por Marx, ainda que sem o expresso domínio terminológico, tal como nos é, hoje, familiar, esclarece o prof. Alex:

Globalização, entretanto — há de se convir —, não é um conceito marxiano; nem mesmo um tema que tenha chegado a merecer um tratamento específico por parte do autor de O Capital — e nem poderia. Como se sabe, Marx não assistiu, em vida, o impacto do advento da era dos impérios, nem era ainda suficientemente visível, em seu horizonte empírico, as grandes transformações monopolísticas posteriormente deflagradas no terreno da economia mundial. O mundo, ao tempo de Marx, o que é óbvio, não apresentava a formatação global nos moldes em que hoje pode ser vislumbrado; nem estampava, em alto relevo, todos os sinais de sua concreta planetariedade. Contudo, já continha alguns dos seus indícios (MELLO, 1999, p. 17).

Embora o título de sua principal obra seja "Marx e a Globalização", o prof. Alex, ao aludir à teoria marxiana do capitalismo constituído planetariamente, prefere usar mundialização[iii], visto que, em nossa avaliação, tal título encerra um tom provocativo à contemporaneidade como o fim explícito de nos chamar a atenção para um tema ainda não superado cientificamente, a saber: a validade teórica dos pensamentos do autor de O Capital. A partir de sua magnum opus ("Marx e a Globalização"), mais precisamente no penúltimo capítulo intitulado "Modo de Produção Mundial", o prof. Alex publica, subseqüentemente, outras obras em cujos títulos passa a optar por mundialização e/ou modo de produção mundial, termos com que seus leitores já se mostram habituados. E aí também reside um outro enfrentamento.

Devido às características, nos dias atuais, do processo civilizatório do capitalismo, abarcando a nossa vida não só material, mas cultural (portanto, de forma totalitária!), o prof. Alex provoca, ainda, quem enxergue na mundialização apenas uma versão cultural da globalização. Como ambos os termos se referem a um mesmo e único processo e, nos tempos de Marx, "mundo" e "mundial" eram comumente usados para definir as relações econômicas intercontinentais, internacionais, parece-nos mais razoável (senão sugestionável) mundialização ou modo de produção mundial, como propõe o prof. Alex. Sabemos que modo de produção mundial é um conceito de autoria deste e não de Marx; deixando claro numa entrevista a um importante jornal de circulação regional: "Marx nunca falou em modo de produção mundial, mas tento mostrar que no seu texto a idéia de capitalismo como modo de produção mundial já está subjacente" (O LIBERAL, 7/4/2002, Cartaz).

Esclarecido, como supomos, esse aspecto, avancemos para dizer que, como pedras preciosas incrustadas num veio quase inexplorado, os "indícios" – de que falou parágrafos acima Mello (1999) –encontram-se (não aleatoriamente) difusos por toda a obra de Marx, interligados entre si à medida que este depurava seu objeto científico, o capitalismo; dando-nos, por conseguinte, a medida de quanto um tema de nossa época foi, de um modo que nos desconcerta a todos, familiar ao velho Mouro[iv]. É, portanto, o prof. Alex quem nos conduz até essa galeria subterrânea "pouco explorada" (MELLO, 2000, p. 69), para nos explanar as minúcias de seu achado.

Para tanto, serão também neste reproduzidos alguns excertos, por exemplo, de A Ideologia Alemã, Manifesto do Partido Comunista e O Capital, transcritos e analisados por Mello (1999; 2001). Em A Ideologia Alemã (1846), seguindo os passos do prof. Alex, deparamo-nos com o seguinte trecho:

Foi ela [a burguesia] que criou verdadeiramente a história mundial, na medida em que fez depender do mundo inteiro cada nação civilizada e, para a satisfação de suas necessidades, cada indivíduo dessa nação, destruindo o caráter exclusivo das diversas nações que era até então natural (...) E finalmente, enquanto a burguesia de cada nação surge como uma classe cujos interesses são os mesmos em todas as nações, e para a qual a nacionalidade deixa de existir (MARX e ENGELS In: MELLO, 1999, epígrafe).

No Manifesto do Partido Comunista, escrito em 1848, há excertos muito ilustrativos, dentre os quais este célebre:

Por meio da exploração do mercado mundial, a burguesia deu um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para desespero dos reacionários, retirou da indústria sua base nacional. As antigas indústrias nacionais foram aniquiladas e o são ainda todos os dias. São suplantadas todos os dias por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão de vida ou morte para todas as nações civilizadas (...) O antigo isolamento local e nacional, onde cada um se autosatisfazia, cede lugar às relações universais, a uma interdependência universal das nações (...) [O capital,] em uma palavra, cria o mundo à sua imagem. (MARX e ENGELS In MELLO, 1999, epígrafe).

Ou ainda, em O Capital, publicado em 1867: "O mercado mundial é o verdadeiro ser, a verdadeira base e a atmosfera em que vive o modo capitalista de produção"(MARX In: MELLO, 2000, p. 33-34; 2001, p. 18). Em outro trecho, diz Marx:

Se o progresso da produção capitalista e o conseqüente desenvolvimento dos meios de transporte e de comunicação reduzem o tempo de circulação para uma dada quantidade de mercadorias, o mesmo progresso e a oportunidade gerada pelo desenvolvimento desses meios introduzem a necessidade de trabalhar para mercados cada vez mais distantes, [isto é] em uma palavra, para o mercado mundial (MARX In: MELLO, 2000, p. 56; 2001, p. 36).

Mello (1999; 2000; 2001) nos fornece um material profuso extraído do conjunto de obras de Marx que atesta a familiaridade deste autor clássico das ciências sociais com o que conhecemos, hoje, por globalização. Importa-nos acrescer que a globalização, como a encarnação institucional e material, propriamente dita, de um capitalismo (mais do que nunca) mundializado, não é um contraponto fatalístico face aos tão conhecidos prognósticos de Marx, ou melhor, face aos prognósticos que ele próprio ansiava por vê-los realizados em seu tempo - conforme o relevo das contradições do capitalismo se acentuava num ou noutro país europeu, onde uma conjuntura de crises sucessivas era justificada pela própria lógica (contraditória) de evolução do aludido sistema econômico.

Já não se trata de discutir exatamente sobre as famosas e, por toda extensão do século XX, polêmicas predições de Marx; não se trata de invalidar (ou asseverar), por exemplo, a predição marxiana sobre a pauperização da classe trabalhadora industrial assim como da proletarização crescente da classe média, ambas em curso de formar uma só classe-que-vive-do-próprio-trabalho-necessário; nem de enfocar as contradições entre relações de produção e forças produtivas avançadas, por meio das quais recrudescerão os conflitos entre as classes sociais, cuja conseqüência extrema seria o irromper estrepitoso e inevitável da revolução social acredenciar o proletariado industrial moderno a assumir o papel de sujeito histórico,e em cuja condição haveria de derruir as pilastras desse sistema econômico opressor e massificador das mazelas sociais em patamares cada vez mais amplos[v].

A inusitada predição de Marx poderia ser aceita por nós — depois de nos revelarem os estudos, em especial, de Mello (1999; 2000; 2001) — a que reputa o capitalismo um modo de produção mundial, à cuja inclinação tende desde sua origem histórica, inscrevendo-se, em sua própria genética civilizacional, o código de seu devir, de sua reprodutibilidade ampliada. Embora, nos últimos decênios, a globalização, em suas diversas manifestações (econômico-financeira, cultural, jurídico-política e ambiental), debute como questão central no temário deste século, Mello (1999) explica que sua vigência é a expressão mais acabada de uma engenharia civilizatória em curso desde o começo da Era Moderna, por volta do século XVI. A partir da análise marxiana, a globalização constitui,nas palavras de Mello (1999):

O corolário de todo esse processo de mundialização há 500 anos recortado pelo bisturi do capital, e que somente agora (a posteriori), no apogeu de sua manifestação, ganha finalmente inteligibilidade à luz do observatório mais elevado que é o tempo presente (MELLO, 1999, p. 195).

Por conta disso, o objeto sociológico de Marx, reitera Mello (2000):

não é, nem nunca foi, o socialismo (este, a sua utopia), mas sim o capitalismo. O Capital, sua principal obra, é uma crítica (no sentido científico-filosófico) do [ao] capitalismo. Um tema, portanto, atualíssimo! (MELLO, 2000, p. 12).

Baseado nisso, abrimos um parêntese para arriscarmos dizer que o Marx (mundializado) do século XX foi, especialmente, o Marx de trechos radicais contidos no Manifesto do Partido Comunista e o dos do Livro I d'O Capital, em cuja obra são encontrados elementos analíticos (conquanto de caráter científico, e talvez por isso mesmo) sobre a luta que se processa no interior da fábrica entre o capitalista (que objetiva aumentar a taxa de exploração da força de trabalho) e o portador desta, o proletariado (que resiste e, ao mesmo tempo, anseia por melhorar seu salário, bem como suas condições de trabalho).

Esses trechos constituíram, basicamente, o arsenal ideológico (de que Engels, Lênin, Stálin, Mao etc. também fizeram parte) com que se efetivou uma práxis beligerante revolucionária, de grupos sociais contrários ao jugo das classes sociais dominantes tanto quanto das elites políticas espezinhadoras. Daí porque mesmo que Marx, nos afiança Ianni (1988), não tenha se empenhado "em sistematizar a sua teoria da revolução operária", pois esta "surge no curso da análise dos movimentos e das leis que governam o regime capitalista de produção" (IANNI, 1988, p. 89), sua predição referente à inevitabilidade da revolução do proletariado mundial toma corpo porquanto o capitalismo gerou, nos séculos XIX e XX, extremas desigualdades sociais e econômicas pelo mundo, como, a propósito, nos bem instruem as palavras, sábias palavras, de O. Wilde (2003, p. 16): "é bem mais fácil sensibilizar-se com a dor do que com a idéia" ou, antes, "as emoções dos homens são despertadas mais rapidamente que sua inteligência".

Dahrendorf (1991, p. 63-64) ressalta que Marx fazia sentido "para todos os países que ingressavam tardiamente no mundo moderno", sendo sintomático disso a implantação açodada de regimes socialistas, à estaliniana, "em países em desenvolvimento"[vi]. A esse respeito, inúmeras foram as (re)interpretações marxistas (sejam clássicas, sejam contemporâneas) sobre o fato de a teoria política de Marx balizar iniciativas de cunho revolucionário. Por fim, parafraseando Anatole France, diríamos que ao povo opresso o marxismo, no século XX, nunca deu tanto quando deu esperança.

Se, ideologicamente, Marx perdeu terreno no âmbito das instituições partidárias de esquerda internacionais, devido ao fim da União Soviética, que, a seu modo, sustentara-o como ideologia de estado; sociologicamente, o fim de sua validade deve ser ainda uma questão a ser ponderada. Como nos assegura Mello (2001, p. 20-22), "o capitalismo é sinônimo de mundialização", isto se evidencia não apenas como "dado histórico [...] mas, também, como lei sociológica intrínseca de seu movimento"!

Os argumentos do prof. Alex, em defesa da atualidade da teoria marxiana da mundialização capitalista, têm seu cume de evidência residindo no que ele nos revela dos Grundrisse, aquilo que viria a ser "o projeto arquitetônico de toda obra de Marx"! (MELLO, 2000, p. 17)[vii]. Ele arranca do veio mais profundo e quase inteiramente esquecido de todo constructo teórico marxiano a pedra sobre a qual ergue, então, sua tese em defesa de Marx; tal pedra vem ser:

[...] o plano completo de publicação [...] do Tratado de Crítica da Economia Política [a ser escrito por Marx em cinco grandes tópicos, porém] em seis volumes, sendo o último destes o que versaria sobre o 'Mercado Mundial e das Crises' (MELLO, 2000, p. 18-19).

Por que Marx discutiria, apenas no final de toda saga teórica, sobre o mercado mundial? Segundo explica Mello (2000), porque ele não poderia partir do capital mundializado ou, melhor dizendo, do capitalismo em vias de (lógica e historicamente) se mundializar por completo[viii], apesar de este representar o verdadeiro ponto de partida de toda e qualquer análise sociológica. Era central para Marx a questão do mercado, "só que a explicação de seu dinamismo não poderia ser decifrada, tão somente, a partir de uma leitura de suas manifestações mais epidérmicas" (MELLO, 2000, p. 41).

Em consonância com o método dialético da Concepção Materialista da História, todo esforço de teorização do real pressupõe a separação e análise de cada elemento constituinte da realidade estudada, posto que confusamente percebida, a olho nu. Kosik (1976) propugna que um método de investigação dialético deve ter em linha de conta três graus:

[...] 1) minuciosa apropriação da matéria, pleno domínio do material, nele incluídos todos os detalhes históricos aplicáveis, disponíveis; 2) análise de cada forma de desenvolvimento do próprio material; 3) investigação da coerência interna, isto é, determinação da unidade das várias formas de desenvolvimento (KOSIK, 1976, p. 31).

E completa: "Sem o pleno domínio de tal método de investigação, qualquer dialética não passa de especulação vazia". Kosik (1976) diz a respeito do método histórico-dialético de interpretação da realidade:

A ascensão do abstrato ao concreto é um movimento para o qual todo início é abstrato e cuja dialética consiste na superação desta abstratividade. O progresso da abstratividade à concreticidade é, por conseguinte, em geral movimento da parte para o todo e do todo para a parte; do fenômeno para a essência e da essência para o fenômeno; da totalidade para a contradição e da contradição para a totalidade; do objeto para o sujeito e do sujeito para o objeto (KOSIK, 1976, p. 30).

Se Marx era sensível para com as condições históricas mais desenvolvidas de uma sociedade complexa e resultante de múltiplas determinações (no caso, a formação social burguesa), intentou compreendê-las, antes de tudo, levando em conta a lógica interna do capitalismo, da inteligibilidade mesma desse modo de produção inscrito numa relação dinamicamente contraditória com o processo de auto-realização alargada; subentendendo disso as suas diversas estratégias históricas de dominação e exploração do trabalho vivo (MELLO, 1999; 2000).

Como as "categorias estão carregadas de historicidade" (MELLO, 2000, p. 28), Marx destrincha mentalmente o real de sua generalidade concreta, epifenomêmica, a fim de enfrentar heuristicamente as partes constitutivas desse real desnudo, então, de seus dados acidentais (históricos). Submetendo cada categoria (população, classe, mercadoria etc.) ao rigor da análise sociológica, propondo em tal análise um movimento lógico tendente a ir do concreto imediatamente percebido, preso à aparência, para o concreto pensado. Segundo Mello (2000):

A teoria, como material transposto para a cabeça do sujeito cognoscente e idealmente organizado e trabalhado como esforço de síntese aproximativa do real observado, é resultado extremamente complexo da capacidade de abstração do cientista, particularmente daquele voltado ao estudo da sociedade (MELLO, 2000, p. 29)

Pelo que podemos deduzir, Marx continua a ser um pensador cuja data de validade é tão incerta quanto a do capitalismo. Muitos o enterraram e continuarão a enterrá-lo. Num tom irônico, Mello (2000), a propósito, critica os coveiros de Marx, afirmando que:

A globalização, comumente, tem sido pretexto para empenhadas tentativas de enterrar Marx, entoadas provavelmente num réquiem prematuro face às gigantescas contradições (também globais) que se avizinham (MELLO, 2000, p. 13).

Obviamente que o pensamento marxiano não dá conta de muitas das questões tratadas, atualmente, por nossa sociedade, mas de todas as idéias sociológicas por ele formuladas e que ainda o mantêm vivo, decerto que a que concerne à análise da natureza do capital (enquanto um modo de produção social tendente a mundializar-se sempre e na medida em que precisa superar suas próprias crises diluvianas) continua a ressuscitá-lo, antes mesmo de vermos concluído o ritual de suas próprias exéquias.

Todos, agora, podemos divisar Marx para além da poeira inebriante içada pelos escombros do Socialismo Real e de sua vulgata marxista. Parece-nos bastante razoável deduzir de Marx (assim como de qualquer outro pensador também considerado Klassiker der Soziologie) que um estudo, desenvolvido por décadas — sobre um dado objeto (fenômeno, fato ou processo sociais), a fim de se saber deste qual sua natureza bem como seu funcionamento –, garanta, a quem assim o faça, uma compreensão tal desse objeto a permitir-lhe perceber virtualidades na constituição futura do mesmo.

Assim se sucedeu a Marx, cujo tema do capitalismo tornou-se, por toda sua vida, sua mais singular e trágica busca. Sua paixão. Em face do que, o prof. Alex nos trouxe dos insights marxianos o approach teórico da mundialização do capital, forçando-nos recordar a predileta frase, em latim, citada por Karl Marx, quase reveladora de um vaticínio – ainda nos meados do século XIX: De te fabula narratur (A história narrada é a tua).


REFERÊNCIA

DAHRENDORF, Ralf. Reflexões sobre a revolução na Europa. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.

EVANGELISTA, João E. Crise do marxismo e irracionalismo pós-moderno. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 1997.

FRANCE, Anatole. As sete mulheres do Barba Azul. 2ª ed. Rio de Janeiro: Casa Editora Vecchi, 1967.

GORENDER, Jacob. Marxismo sem utopia. São Paulo: Ática, 2000.

GOYTISOLO, Juan. A saga dos Marx. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

IANNI, Octavio. Dialética e capitalismo. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1988.

______. A era do globalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.

KOSIK, Karel. A dialética do concreto. 2ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

MARX, Karl. O Capital. Livro I, Vol. II. 13ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

MELLO, Alex F. de. Marx e a globalização. Campinas-SP: Boitempo, 1999.

______. Capitalismo e mundialização em Marx. São Paulo: Perspectiva, 2000.

______. Modo de produção mundial e processo civilizatório: os horizontes históricos do capitalismo em Marx. Belém: Paka-Tatu, 2001.

O LIBERAL. Reitor recorre a Marx para explicar globalização (Cartaz). Belém, 07/04/2002.

SANTOS, Boaventura de S. Processos de globalização In: ______ (org.) A globalização e as Ciências Sociais. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2002.

WHEEN, Francis. Marx (biografia). São Paulo: Record, 2002.

WILDE, Oscar. A alma do homem sob o socialismo. Porto Alegre: L&PM, 2003.


Autor: André Pureza


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