Você se Lembra, Jerry?!...







VOCÊ SE LEMBRA, JERRY?
Raul Santos

Fatos inusitados como o que aconteceu "conosco" não são comuns e por isto acho que ainda resta uma pontinha de lembrança na sua memória, mesmo que não conheça na íntegra todos os detalhes. Creio.
Foi mais ou menos no ano de 68 ou 69, época da JOVEM GUARDA, e nós tínhamos vinte e poucos anos. Eu era cabo radiotelegrafista da Aeronáutica, no aeroporto de Ilhéus, e já estava me acostumando a ver o Wanderley Cardoso, a Vanusa de pernas encruzadas no avião da SADIA, o Brasinha Roberto, o Tremendão Erasmo e a Ternurinha Vanderléia correndo do avião para o carro, de sacolas nas mãos com uma tonelada e meia de fãs no encalço, em busca de autógrafos ou mera curiosidade, ver o velho Nelson após uma noite de seresta em que foi engambelado pela curriola e quando foi cantar no ginásio de esportes Herval Soledade estava tão alto que dava nó na língua, mas ninguém reclamou porque o Nelson era o Nelson e pronto, assobiando com o cotovelo no balcão do box do aeroporto e também o Mané, é, eu vi o Mané correndo e brincando no mesmo salão com e como um garotinho de recados. Bons tempos aqueles, não foram? Foi também quando morreu o grande Barnabé, com o mal de Chagas. Que saudade!...
Mas no dia em que você chegou, quer dizer, na hora que você estava chegando, foi algo de absolutamente espetacular, de incrivelmente inacreditável e só quem estava lá foi que viu. Os detalhes fluem-me da mente com tal rapidez que tenho de agilizar os dedos para não deixar as lembranças passarem à frente.
Foi assim:
A TRANSBRASIL ainda era a SADIA, os aviões ainda eram os Dart Herald?s movidos a turbo-hélice e a segurança dos aeroportos ainda era uma m..., ops, ainda era uma porcaria. Bons tempos, aqueles, não?
O avião sobrevoava a cidade e o aeroporto estava abarrotado de menininhas que na época nos chamavam de Pão, lembra? Hoje elas dizem Gato, mas é a mesma coisa. As épocas são maravilhosas e a juventude, a única coisa que na verdade nunca envelhece, sempre está se renovando. O que seria da humanidade, se não fossem os jovens, mimosas flores que devem ser cultivadas com carinho para que possam dar bons frutos?
Pois é! Tudo ia dar certo como das outras vezes, se algum engraçadinho não houvesse soprado discretamente que um carro estava esperando para lhe pegar na cabeceira da pista. Morou, Cara, a zorra que deu? O pátio do estacionamento totalmente, completamente, redondamente tomado por elas, que invadiam até a pista de rolamento dos aviões. Meu Deus, são passados quase quarenta anos e elas já são avós mas ainda sinto angústia só de lembrar. Sob o barulho ensurdecedor dos motores, as da frente tentavam recuar diante das enormes pás das hélices que giravam vertiginosamente sobre suas cabeças, enquanto que as de trás queriam avançar, pois nem de leve imaginavam o perigo a que expunham as próprias coleguinhas de folguedo. Ilhéus na época era um grupo fechado e todo mundo se conhecia. Transportei-me mentalmente à minha infância, no Pau d?Alho, hoje distrito de Itamaraju, o monomotor de Agnelo, chamado de teco-teco, pousou na fazenda de Fausto Oliveira levando o gerente Elísio Brito. Um enorme cachorro preto que ele tinha conhecia a aeronave foi festejar a chegada do dono, pela frente do avião, e a pontinha da hélice o atingiu no focinho.
Da porta do DAC, contígua à Estação de Rádio, eu acompanhava aquela odisséia, me perguntando por que o piloto não desligava os motores, e concluía comigo mesmo que talvez fosse uma questão de regulamento, às favas os regulamentos quando põem em risco a vida humana, que os motores só podiam ser desligados depois de estacionado o avião, para não dar problema de inquérito administrativo para a empresa ou coisa semelhante.
Foram, na verdade, momentos terríveis de angústia para todos nós que assistíamos ao avanço milimétrico daquele monstro metálico. Novamente veio a recordação de outro fato da infância mais longínqua, aos quatro anos de idade, em Canavieiras, vi um garoto passar todo ensangüentado, carregado com a cabeça quebrada numa brincadeira de quebra-pote e a cada segundo me parecia ver um corpinho em roupas brancas ou coloridas ser atirado para o alto com um esguicho de sangue a banhá-lo.
Mas Deus existe, e isto por si só é suficiente para prová-lo, pois nada houve de grave para manchar a sua apresentação naquela noite, a não ser aquilo, lembra? Eu vi!... Quer dizer, eu vivi!... Foi até engraçado! Melhor, não é?
Lentamente, o enorme pássaro metálico foi avançando até que o piloto finalmente conseguiu estacionar sobre as marcas amarelas pintadas no solo orientado pelo funcionário do DAC, surgindo aí o novo impasse: como abrir a porta do avião? Devo citar que até aquele dia, ou melhor, até o show anterior, a meninada se comportava discretamente quanto a aproximar-se da aeronave. Mas parece que naquele dia ao quebrarem uma regra todas as outras deveriam ser quebradas também e plantaram-se, não é bem o termo, pululavam, saltitavam, gritavam agitadas em frente à porta do avião e o sargento Hélio, controlador de vôo, disse: "Raul, você já foi P.A. (Polícia da Aeronáutica) e deve saber o que fazer num caso como este. Vai lá ver!". Como "milico" é para essas coisas, saí pensando que poderia recrutar os carregadores, o pessoal do abastecimento e algum mecânico que por ali estivesse para formar o esquema de segurança do cantor Jerry Adriani, e assim fizemos. A porta foi aberta, a escadinha colocada e a confusão para você descer. Formamos um cordão de isolamento ombreados dos dois lados da escada, pressionados pela multidão de adoráveis inconseqüentezinhas e a kombi encostou, mas você demorou um século para descer. Foram exatamente cem anos contados de pandemônio. Eu já não sabia mais o que fazer, quando ouvi alguém gritar: "Traz o extintor de incêndio!". Antes que eu pudesse refletir sobre o que acontecia, senti um frio na perna direita e passei a mão, recebendo o tubo do extintor, daqueles que só param depois de esgotada a carga, mas eu não sabia e fiquei feito um "babaca" tentando desligar aquela coisa. Enquanto tentava em vão, ouvi alguém gritando: "Lá vem ele!". Num relance, percebi o aviãozinho descer a escada do avião e o que vi de Jerry Adriani foi a perna esquerda sobre o banco do meio da kombi e o pé direito tocando o teto, nada mais. O motorista agiu rápido e arrancou como pôde, perseguido pelas adoráveis avoadazinhas. Adoráveis, sim, porque naquele momento elas estavam apenas, ao modo delas, amando, como eu também amei, naquele momento, aquele momento, como amo, ainda hoje, a recordação daquele momento. Afinal, foi uma aventura fora da rotina e estou podendo contá-la, aos sessenta aninhos de idade!... Se eu tenho sessenta, então o Jerry,...!?... Eu nem vi como a porta foi fechada, acho que foi com o carro em movimento. Esta parte é sua!...
Acalmados os ânimos, afastaram-se todas atrás da kombi que não mais alcançavam, os rapazes às suas atividades, ficando apenas eu, com cara de idiota, tentando desligar um extintor de incêndio que obstinadamente obstinava-se em não querer ser desligado, até que alguém chamou o meu nome. Era Soriano, um cabo enfermeiro que suspeitava ser primo do Waldick Soriano, junto ao cabo Cavalcante mostrava-me o Paulo Paturi tirando fotografias, enquanto a carga do extintor se esgotava. Fui a ele e disse: "Depois de prontas, quero uma cópia de cada!". Furioso, ele respondeu: "Estas fotografias eu vou mandar para o Ministro da Aeronáutica, pois eu não sei como é que se joga CO2 nas pessoas desse jeito!". Entendi que ele só queria se promover às minhas custas e retruquei, afastando-me: "Tudo bem, mande e depois acertaremos!..."
Se ele mandou, eu não sei. Na verdade, acredito que elas em nada me acusaram. Afinal, depois que a kombi se afastou todos se retiraram e o que apareceu foi um cabo velho (de vinte e pouco anos) com cara de bobo e um extintor de incêndio na mão, perto de um avião. Mas que prova contundente, não? Acho que ele teria sido bem mais útil se tivesse ido ajudar na segurança, ou não?... Cada um é "babaca" como pode!...





Autor: Raul Santos


Artigos Relacionados


Dez Minutos Fora

Qual Foi O Erro Do Prefeito?...

As Estrelas

Novo Serviço De Estacionamento No Aeroporto De Lisboa, Porto, Faro...

Sonhei Que Embarcava Em Um Avião

Morte

Maravilhosa Juventude