Capítulo 20



– São Paulo era uma cidade menos opressiva naquela época... – suspirou Val.

– Qual época? – Vítor falou por falar, virando a cabeça para trás e para os lados, uma cabeça que buscava alguém que ele julgava conhecer.

– Não! – exclamou Olavo de repente, batendo na mesa – se eu saio com uma mulher que pede um "x-frango-salada-vinagrete" eu juro que mando a filha da puta para casa tão logo ela dê a última mastigada. Já pensou? Depois de uma noitada dessas...

Estavam numa lanchonete. Olavo, Vítor e Val. A moça em questão, duas mesas ao lado, acabara de se levantar para ir ao banheiro.

– E a sua maravilhosa esposa come o que?

A pergunta viera de Vítor, que com o pescoço dolorido cansara-se de tentar reconhecer alguém que talvez no fundo não fosse ninguém.

– Rosas. Come rosas, peida rosas, caga rosas. … um ser angelical, como só poderia ser, a minha esposa.

É uma retarda, pensou Vítor.

É uma coitada, pensou Val.

Olavo, Vitor e Val. Três amigos de longa data, todos com mais ou menos a mesma idade, todos com sérios problemas monetários mas esperançosos, sim, volta e meia sedentos, sim, e entre um ano e outro matavam a sua sede e viviam as suas vidas, boa parte das vezes juntos.

– Antigamente ela era menos opressiva – tornou Val, suavemente bêbado. – Quem, a mulher do Olavo? – perguntou Vítor, cujo olhar não negava uma tênue sacanagem.

– Talvez sim...não, não, eu me referia a São Paulo. A Cidade de São Paulo. Lembram, lá por 1980?

– A gente era mais novo – concedeu Olavo com ares de envelhecida sabedoria misturado a um certo alívio, porque no fim de contas não falavam de sua esposa.

– Quase 15 anos mais novo – devaneou Vítor.

– Fodam-se vocês... – arrematou Val, querendo que os presentes prestassem atenção na sua temática – haviam menos automóveis e é isso que eu quero dizer quando falo que São Paulo era menos opressiva.

– Década e meia menos automóveis – suspirou Olavo – e hoje parece que eles estão grudados na nossa cara, mais barulhentos e mais fumacentos.

– Uma merda – gemeu Val, que além de tudo era alérgico.

Alguém tentou desviar o assunto para uma tal de Gabriela, que estudara com eles no Liceu, ao passo que Val, indemovível de sua partitura, rugiu que não estudara no Liceu, e que o monóxido de carbono, no cotidiano, parecia uma imposição pior que sequestro relâmpago. Olavo não despregava os olhos da moça, uns olhos de ojeriza, saibam, cujo "x-frango-salada-vinagrete" era abatido implacavelmente. Vítor, que foi e voltou do banheiro como que num passe de mágica, já chega exclamando:

– Ah, vocês são uns pentelhos. Val sempre se queixando dos escapamentos e suas virtudes. Olavo eternamente perdido em lamúrias contra o trânsito. E por que? Porque vocês não tem um veículo decente.

– Até parece que você tem! – reagiram, quase ao mesmo tempo.

– Não, eu também não tenho, mas há muito já transcendi esse problema. Agora deixem-me tecer uma bela questão. Vamos, raciocinem comigo... – e seus dois olhos molhados de tanta cerveja iam para lá e para cá, e pareciam mesmo capazes de tudo exceto exibir raciocínio algum, e quando sua parca platéia estava prestes a bradar de revolta, Vítor retoma – Lembram do meu amigo Marcos, o tal que o pai é dono de uma usina? Bom, a gente costuma jogar tênis pelo menos a cada 15 dias, e da última vez que nos vimos, imaginem.... O cara me aparece com uma Mercedes, uma 500 SEL, 4 portas, preta, zero bala. Daí ele diz: Vítor, deixa essa lata velha aí e vamos dar uma volta. Olhem, não é por nada, mas quando você está dentro de um carro como aquele a sua percepção face ao mundo exterior se modifica. E assim você passa a se relacionar com esse "exterior" de uma outra forma. Buracos, qual, não existem. E com o ar condicionado ligado e o som num volume ideal, mais aquela coisa reluzente deslizando pela cidade, ora meus amigos, sem essa de trânsito, fumaça de caminhões, barulhos..."Qual o quê", como dizia o Chico. Meus amigos, aquela 500 SEL equivale a uma sala de estar móvel, mas eu acrescentaria uma certa docibilidade a este, hã, ambiente,um ambiente capaz de obediência e o mundo lá fora, pfiuuu....Em suma, parem de ganir porque vocês não vão interromper o ritmo consumista de nossos compatriotas. Eles vão continuar a comprar carros.

– E carros velhos... – sibilou Val

– Brasil! A maior frota de carros velhos do mundo – sentenciou Olavo, com ares de sabedoria embriagada.

– Exato. E assim, para se defender deste mar de latas desengonçadas...

– Espere um minuto, sr. Vítor – atalhou Val, com os olhos semi-cerrados – Partindo do princípio que o sujeito uma vez instalado numa maravilhosa máquina de deslizar altera a sua relação com o cotidiano...hã, diga-me, o mesmo conceito se aplica então ao afortunado que mora numa mansão ao invés de um barraco?

– Mas isso é brilhante, sr. Val. Um raciocínio digno de um mestre.

– Hã, hã, hã, ainda não terminei sr. Vítor. Há um dado a acrescentar, já que neste caso a mansão é imóvel, perdurando no alto da colina por mais de século ao passo que o barraco é móvel.

– De fato – suspirou Olavo – os barracos de fato deslizam.

Nesse instante, o estado de embriagues também tornara-se um fato para cada um dos ocupantes da mesa . Olavo pedira a conta pela segunda vez, sem ter percebido que a mesma acabara de ser quitada, por ele mesmo, 5 minutos antes.

– 52 chopps

– Não bebemos nada.

– 17,3 chopps para cada um. – Quero o dinheiro de vocês na minha conta amanhã bem cedinho.

– Certo, mas agora vamos para sua casa.

– Minha casa! Vocês estão loucos! Vão acordar a família inteira. A Brígida vai encher o saco. Sem falar na Lucinha. E as crianças vão acordar.

– Eu tenho um baseado para a Brígida – disse Val

– Eu também – assegurou Vítor.

– Certo – não sobrava a Olavo uma réstia de força para lançar qualquer oposição – A Brígida não será obstáculo. Mas o que vocês vão fazer na minha casa?

15 minutos mais tarde chegaram em casa. Passava da meia noite.

Brígida e eu jogávamos baralho na sala de televisão. Uma partida de tranca ferrenha. Já durava exatas duas horas e, volta e meia, a fim de aliviar a tensão, eu sacava do bolso minha gaitinha, tentando fazer um contraponto com as trilhas dos comerciais. Ainda que eu não tivesse a intenção, faz-se desnecessário observar que tal gesto irritava a minha oponente.

– Pôrra Guilherme, vai ser até o momento de arrancar isso da sua boca e atirar pela janela.

– Desculpe, desculpe, não faço mais, é compulsivo.

– Querida, cheguei!!! – eles falaram em uníssono, cambaleantes a abraçados, vermelhos de tanta cevada.

– Que bela trinca de trastes, vai Guilherme, joga, é a sua vez.

Mas nesse instante passava um comercial de cerveja, com uma musiquinha irritante e irresistível. E é como se todas aquelas pessoas ali dentro do televisor, brindando e molhando os lábios com a espuma branca, estivessem me chamando senão para beber, para alegrar ainda mais seu frenesi com um solo de gaita.

Brígida jogou as cartas em cima da mesa e saiu praguejando, enquanto os 3 palhaços, ainda confusamente abraçados, começaram a bradar:

– Guilherme é um grande cereja, Guilherme é um grande cereja, Guilherme é um grande cerejaaaa, e ninguém pode negar.

Cereja. Era apelido, daquela época lusco-fusco, meio criança meio pré-adolescente. Algo há muito esquecido, um nome que nunca teve o menor sentido, exceto o de me atormentar por esses idos, até que se tornou um troço engraçado, quase simpático, tendo desvanecido ao longo dos anos, ou ao menos até o presente momento, quando destes idiotas terem-no ressuscitado.

Não pude deixar de gargalhar.

Brígida, apesar de irascível, possui também um tremendo espírito maternal. Fez questão de preparar litros de café aos dois que teriam de enfrentar o trânsito de sexta à noite – um jogo automobilístico em que os embriagados, em geral, detém grandes chances de ensejarem perdas irreparáveis.

– Ah, cereja – disse Vítor ao mesmo tempo em que cutucava com o cotovelo as costas de Val.

Val ficou me olhando, a face encovada e o nariz saliente, enquanto Vítor, com suas pupilas eternamente saltadas dava-lhe outro cutucão.

– Vamô, meu, o texto, já esqueceu porque a gente veio aqui?

– Ah, o texto...- remexe no bolso do paletó, remexe nos bolsos da calça, todos eles, daí me entrega um papelzinho todo surrado. Uma xerox.

– Sei... – murmurei examinando o conteúdo – e o que vocês querem que eu faça?

– Traduza.

– Quanto pagam?

– Ah, deixa disso guilherminho (agora era guilherminho), pô, quebra essa pros seus tios.

– Vocês não são meus tios.

– Um chope! adiantou-se Vítor. E o imediato do meu silêncio elevou o salário – 3 chopes!!

– Meia dúzia – falou Val – mas tem de ser já.

– Já? De jeito nenhum.

– Ah vai Guilherme, é um parágrafo só. A gente precisa apresentar isso o quanto antes, para um cliente.

Prevendo que eu não ficaria livre deles tão cedo, disse que fazia mas não iria mover uma palha para mais nada. Ordenei que trouxessem papel, caneta, dicionário e um copo de água bem gelada.

– Isso é Shakespeare, sabiam? Ou vocês achavam que era um folheto de propaganda de geladeiras? Eis porque preciso de um dicionário! Shakespeare. Só não me lembro de qual peça. A tradução em si não levou muito tempo. O problema é que eu queria sentir o ritmo, e assim exigi que alguém lesse em voz alta, alguém sóbrio, e aí nos deparamos com um segundo problema, que consistia em traduzir minha letra.

– Por que você mesmo não lê, ô pentelho?

– Porque minha voz não é boa e, meus caros, trata-se de Shakespeare.

Enfim, Brígida se prontificou à declamação e uma vez o papel passado a limpo, o dramaturgo inglês estava pronto para fazer-se presente.

A mulher do Val, que já ligara 2 vezes, na segunda querendo saber em que estado ele estava e por fim avisando que se ele demorasse mais 10 minutos haveria corrente na porta, ligou outra vez mais, para assegurar a quem interessar possa que a corrente fora decididamente acionada. De resto, a fim de martirizá-los um tantinho além, ou talvez não satisfeito com a finalidade de meus esforços, decidi saber o propósito dos mesmos.

– Para o layout de uma campanha, que saco Guilherme, dá logo esse papel.

– Layout, campanha, ué vocês viraram agência?

– Não Brígida, ainda não viramos, mas estamos querendo apontar o barco nessa direção. Um cliente mínimo, uma campanha mínima, nós vamos ter de comprar nota para poder agir, hã, de modo publicitário,caso a coisa toda venha a ser aprovada...saciados?

– Qual cliente?

Mas desta feita Vítor foi ágil como uma cascavel, arrebatando-me o papel das mãos e deixando minha pergunta no ar.

– Vai Brígida, começa.

– Só isso – exclamou ela – tão curtinho

– E ainda por cima estamos pagando 6 chopes!

– Ainda não pagaram – avisei, com uma ameaça explícita em cada sílaba.

Buscando uma posição confortável no sofá, daí desistindo e pondo-se de pé, Brígida limpou a garganta e finalmente trouxe o Mestre:

"Se trabalhares na tarefa que tens diante de ti, seguindo tua razão correta, esperando nada, temendo nada, mas satisfeito com a tua atividade presente e com a verdade heróica em cada palavra e som que emitires, viverás feliz e ninguém poderá impedir-te".

Eram quase uma e meia da manhã quando Brígida cobrou dos rapazes, muito corretamente, um "chopes e duas pizza", nas palavras dela. Até então tivera o maior trabalho com Val, que passou mal, e cuja mulher já ligara 500 vezes, 499 delas para esculhambá-lo e uma, por sinal a última, dizendo à minha irmã que arranjasse um sofá para esse nó cego, porque nas próximas 3 semanas ele estava condenado à sarjeta. Brígida também teve problemas com Vítor, que falava alto e volta e meia declamava, mais alto ainda, trechos de poesia colhidos ao léu na Delta La Russe, o que por conseguinte acordou o caçula do Olavo, que por sua vez desentendeu-se com a esposa.

Parecia que uma espécie de onda, desordeira e assim meio maligna, estacionou sobre o apartamento durante, digamos, uns 15 minutos, e o inquieto embora não menos aconchegante lar dos Luz Alvim transformou-se num verdadeiro hospício, onde as pessoas ora gritavam, ora cantavam, ora vomitavam, não necessariamente nessa ordem, mas tendo em cada um desses eventos a firme presença de Brígida como mediadora e enfermeira.

Quanto a mim, único espectador desta tragicomédia relâmpago, coube a tarefa de dirigir o veículo que levaria a heroína da noite a empanturrar-se de uma merecida ceia paulistana.

Será possível ficar empaticamente bêbado? Digo, se a empatia significa colocar-se no lugar de outrem, com suas sensações e pontos de vista, no caso um porre tremendo, ora essa, eu não havia tocado numa só gota de álcool....Foi o ar que eu respirava que de fato consumou a famigerada empatia, o ar empestado dentro do carro com os vidros fechados.

Brígida disse que só encontraríamos comida de qualidade, a essa hora, se fôssemos ao Bexiga, antigo bairro dos italianos hoje consagrado pelo maior número de cantinas por metro quadrado. E pelo maior número de teatros também. Será isto uma coincidência?

Olavo bateu o pé dizendo que queria ir a um novo bar no Morumbi, que servia croquetes deliciosos. Croquete foi a palavra chave para que Vítor e Val ressuscitassem, pondo-se a cantar obscenidades. Brígida gargalhava. São Paulo me assustava. Uma cidade gigantesca, onde a história não fala pela estética das suas construções mas antes pela memória pouco dilatada de seus habitantes.

Nomes como Bexiga, Morumbi, Itaim Bibi não me diziam nada ao volante, e eu dirigia com cautela exagerada o Fiat de Brígida, trafegando a passo de égua nas avenidas largas de luzes amarelas. Os 4 não paravam de discutir um minuto, as avenidas se sucediam no pára-brisa, ninguém atinava uma conclusão e depois de muitas luzes amarelas chegamos ao bairro de Santana. Trata-se de uma espelunca cujo nome agora me escapa mas que já cumula 40 anos de tradição em empanturrar notívagos embriagados. Quatro fartas refeições madrugada a fora.

De tão atordoado resolvi trocar os 6 chopes de Shakespeare por um espaguete a carbonara e suco de acerola. Não obstante, sentia-me bêbado.

– Ontem eu vi no Jô Soares um sujeito dizer ...

– Que sujeito?

– Sei lá

– Deixa ele terminar, Olavo.

– Pôrra, mas você é chata, hein, Brígida.

– Chata coisa nenhuma, deixa o cara terminar – atalhou Val.

– Eu vi esse programa – disse eu

– Bom, mas agora sou eu quem vai terminar – proclamou Vítor – o cara sinceramente não sei quem era, mas na entrevista, o negócio já estava na metade quando eu liguei a TV, o sujeito dizia que, cada vez que você defeca, libera energia negativa.

– Por isso que eu tenho me sentido meio carregado ultimamente.

– Isso é verdade meu irmão. Você anda mais rechonchudo. Tem se pesado?

– Tenho, minha irmãzinha querida, estou com 84 quilos.

– 84 quilos de pura merda – foi a vez de Val, o único ser humano que conheci capaz de continuar a ingerir precisamente o que o levou a passar tão mal 60 minutos atrás.

Nisso, todo mundo se deu conta de que havia algo de errado com Vítor. Suas mãos tremiam e os lábios ficaram roxos. As pupilas dilatadas conferiam-lhe uma expressão assustadora. Daí o corpo passou a tremer e o copo escapou-lhe das mãos partindo-se em milpedaços. A princípio até seria plausível supor uma brincadeira de péssimo gosto,mas a maneira que o corpo tremia mais a expressão facial dissiparam tais suspeitas. Vítor não estava bem, e a reação de Val, um misto de alarme com praticidade,foi o que mais mesurpreendeu.

- Ele tá mal, vamos embora. Já. Brígida, pague a conta.

- Mas o que é, o que é.... - repetia ela sem cessar, enquanto eu dirigia à toda seguindo as ordens de Val.

- Brígida, será que você pode calar a boca por um segundo ? - reagiu Olavo

- Mas o que é que ele tem ?

- Guilherme, você faz o seguinte, pega essa avenida até o fim...

- Por que a gente não vai para um lugar mais perto? - bradei completamente zonzo.

Minutos depois estávamos na porta do Hospital 9 de Julho.

Vítorfoi atendido às pressas sob o comando de Val, que parecia conhecer metade do hospital. Acenava para enfermeiras, algumas até chamava pelo nome, como pelo nome chamava também, através do telefone interno, pelo doutor fulano ou doutor sicrano. Puseram Vítor numa maca e desapareceram pelos corredores junto com Val, que antes cochichara longamente com um médico residente. Brígida, óbvio, fora encarregada de preencher a ficha.

Deviam ser 4 e tanto da madrugada quando uma moça muito magra veio anunciar que o paciente estava bem, que estava dormindo profundamente e que o doutorValpassaria noite com ele. Doutor, pensei eu, que coisa é essa de doutor, e como foram pensamentos em voz alta, meu irmão Olavo retrucou em voz baixa tratar-se de história antiga, longa e não menos interessante, embora inadequada para o momento.

De volta para casa, a irresistível conferência entre os Luz Alvim, não ocorrida antes porque o preenchimento da ficha de internação durou um século, porque Olavo dependurou-se ao telefone dando a impressão de estar explicando a São Paulo inteiraquando, ondee como dera-se o incidente e eu, um estranho nesse festival de insanidades, ora fumava cigarros lá na calçada, ora, na mesma calçada entregava meus passos a pensamentos distantes, numa espécie de angústia da madrugada onde algo semelhante a "saudades de casa" vinha-me à flor da pele, ainda queme perguntasseonde afinalseria a casa. Não obstante, de repente, estávamos os 3 entalados no carrinho de Brígida, ávidos por rasgarem o verbo acerca de tão insidiosa situação.

-Mas você é chata, hein Brígida!

- Pôrra Olavo, vá à merda, que o Vítor cheira tá todo mundo careca de saber. Agora passar mal! Um revertério daquele jeito, uma puta velha que nem ele, qualé meu?! Isso nunca ouvi contar. Juro por Deus ter pensado em algo mais sério.

- Ué, ele cheira e não oferece? - indaguei espantado.

- Não, o negócio dele é na moita. Não tem para ninguém, só pra ele.

- Mas o engraçado é que ele também não pede - observou Brígida - outro dia, na festa da Lígia, tava todo mundo mandando brasa e ele nem chegava perto.

- E também não toca no assunto - acrescentou Olavo - uma vez conversei com o Val sobre isso. Para o Vítor, a conversa a esse respeito é terminantemente proibida. Val é o único que, em raras ocasiões, dedilhacomele algumasabordagenssobreo caso. Deresto, saiba,

o Vítor não pede, não oferece, não compartilha de situações onde a coisa está presente, nada, nada, nada.

- E isso é frequente?

- Meu amigo, cocaína para o Vítor é remédio. Uma espécie de homeopatia. … é só você reparar quantas vezes ele vai no banheiro.

- E essa lambisgóia que ele anda saindo, uma tal de Dóris, também é da nevasca?

- Você tem uma língua, hein mulher?

- Ihhh, por que?

- Não precisa chamar a Dóris assim. Ela é séria. E muito gente fina também.

- E é cega. Então não vê que o namoradinho adora um "toalete"?

Olavo brecou o carro e nos olhou com suspense. Daí, num tom divertido indagou:

- Vocês querem gargalhar ? Ele falou para ela que sofre de incontinência urinária.

Passados alguns quarteirões, onde o riso de fato aliviou a tensão acumulada, concluímos que Vítor de fato era uma figura.

- De fato éum artista - murmurei pensativo.

- Ou só namora cegas.Mas como é que ele pôde passar tão mal?

- Ô santa ingenuidade! Controle de qualidade, mulher, essa merda dessa droga não tem o menor controle de qualidade. Vai saber onde acondicionam isso aí antes de chegar ao consumidor final.

- Éverdade - disse eu ainda imerso em abstrações - eles enfiam isso em tudo quanto é lugar.

- Em tudo, em tudo,em cú, em buceta,nos mais fétidos calabouços, aténos intestinos, depois misturam com racumim, com pó de mármore, pó de vidro...

- Cagam e mijam em cima - observou Brígida com muita elegância - Olavo, pisca o farol senão o porteiro não abre.

Dentrodoelevadorfomosunânimesemreconhecer o inesquecível da noite.

Um silêncio angelical dominava a residência dos Luz Alvim, e antes de meu irmão me convidar para um copo de leite na varanda, Brígida levantou uma questão pertinente. Não seria o caso da gente avisar a tal Dóris sobre o namorado ?

- Até seria, mas acho que agora vai ser meio difícil. Ela está em Maresias, ciceroneando um grupo de americanos, uns tais aí interessados em comprar a fábrica.

- A fábrica é em Maresias?

- Jesus Cristo, Brígida, é em Diadema. Esse fim de semana com os gringos é para azeitar o negócio em água do mar, entendeu? Os gringo tomam umas caipirinhas, a casa da Dóris é um espetáculo, essas coisas...

- Meu caçulinha querido - Brígida repetia essas palavras, enquanto alisava minha cabeça e me dava beijos na bochecha - tão feliz por você estar aqui. Pena que essa trinca de trastes só cause confusão.

- Afinal, o Val é médico? - indaguei

- Ele se formou mas nunca exerceu. Como eu já disse, é uma história longa e complicada.

Nós 3 na varanda, eu com os olhos fechando de tanto sono e com o coração apertado por uma deliciosa emoção de família, disse a ambos que iria desabar sobre os lençóis mas que antes sentia um desejo irrefreável de fazer um pronunciamento.

- E vou fazê-lo através de Shakespeare, que me parece o grande mentor dessa jornada. "Tudo é bom quando acaba bem".

(Trecho do livro "Os Detalhes da História", do autor,e à disposição no Recanto das Letras.


Autor: Bernard Gontier


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