Dez Minutos Fora







DEZ MINUTOS FORA
Raul Santos
No primeiro semestre de setenta e um, no aeroporto de Ilhéus, meu horário de serviço em dias alternados com Roberval começava às oito da manhã e ia até as quinze horas, quando não havia mais nenhum avião para pousar. Eu saía do serviço e ia tomar umas pingas com o Dr. Pedro enquanto o sargento radiotelegrafista acumulava as posições de telegrafia, controle de vôo e ainda fazia os boletins meteorológicos de hora em hora, até as dezoito horas. Nós só não fazíamos os Códigos Sinóticos, informações meteorológicas sofisticadas, cheias de números, que eu não sabia nem para onde iam.
Naquele dia, faltavam poucos minutos para meu horário e o sargento Hélio pediu:
? Raul, o que você vai fazer, agora?
? Bom, nada de especial, algum problema?...
? Eu queria bater um futebol de salão. Você fica pra mim?
? Ta, eu fico!
? Só tem este avião da TRANSBRASIL pra decolar e mais nenhum pra pousar, por hoje. Você dá a decolagem dele pra Salvador, pra mim?...
? Tá bom, vai que eu tomo conta!...
Aquela rotina era normal e o sargento Hélio saiu para a quadra, que ficava a cem ou duzentos metros, na área do destacamento, enquanto eu assumia as posições.
Minutos depois, ouvi as turbinas do DART HERALD sendo ligadas e a voz na freqüência VHF 126.7 MHZ, pedindo direção e velocidade do vento, pressão atmosférica, em milibares e pista de decolagem. Atendi rotineiramente, enquanto o observava pela porta do DAC e janelinha de entrega dos PLANOS DE VÔO, rolar para a interseção da cabeceira da pista Onze.
Antes porém que invadisse a pista, ouvi a mesma voz informando que o PAPA-TANGO-BRAVO-DELTA-ÍNDIA da BATA (Bahia Táxi Aéreo) estava a dez minutos fora, com o motor embandeirado. Eu não estava ouvindo o BATA e pedi ao TRANSBRASIL para fazer ponte, até que eu pudesse ouvir, o que também era rotina.
Corri à sirene de alarme e dei três longos toques para a pista ser desimpedida. Apesar dos muros ao redor dos mil e cem metros, que foram feitos depois de um soldado haver atirado em um burro, poderiam surgir pequenas aeronaves.
Porque o aeroporto de Ilhéus separa os bairros do Pontal e da Barreira, as pessoas para não darem a volta pela praia, cortavam o arame da cerca e até carroças víamos no caminho que formaram. Certo dia, uma aeronave comunicou que um burro estava na pista. Os quatro soldados vindo de Recife o perseguiram por muito tempo dentro do matagal das laterais, enquanto o avião sobrevoava a cidade. Quando viram que seria impossível a captura, deram um tiro de COLT 45, abatendo-o. Até o momento, ninguém sabia quem era o proprietário, que logo apareceu, querendo matar os soldados, os quais foram colocados em um avião e devolvidos para Recife.
Sete ou oito longos minutos se passaram antes de eu começar a ouvir o BATA, quase num sussurro.
Inadvertida e surpreendentemente, ouvi a TRANSBRASIL solicitando autorização de taxiar para a cabeceira. Aquela foi a solicitação mais estúpida que eu jamais ouvira no tráfego aéreo. Além de haver tocado a sirene, foi a própria tripulação daquela aeronave quem tinha feito ponte na comunicação entre o BATA e a estação, e, acima de tudo, o comandante, eu sabia, era o coronel aviador Rebelo, da Reserva Remunerada da FAB, e não podia ser verdade o que estavam pedindo. Deduzi que tinham visto apenas um cabo operando na estação e ele quis aproveitar o momento da emergência para dar uma cadeiazinha para alguém. Poucos meses depois, numa cerração, no Paraná, chocou-se com uma montanha, e morreu.
Sem ligar para a solicitação, chamei o BATA e perguntei:
? BRAVO-DELTA-ÍNDIA, confirme sua posição?!...
O grito desesperado veio do outro lado:
? Um minuto foooooooraaaaaaaaaaaa!!!!!!!!!!!.............
? SIERRA-DELTA-HOTEL, mantenha posição! ? Ordenei, categórico.
Ouvi o ruído do AERO-COMANDER sobre a estação, dei-lhe todas as condições de segurança que me foram possíveis, até que o vi taxiando, e liberei o TRANSBRASIL.
Dei o pouso de emergência do BATA e a decolagem do TRANSBRASIL para Salvador e fui ver o que acontecia. Reconheci logo um dos passageiros como sendo o Repórter Amaral Neto. Aproximei-me e vi de perto, incrível, um dos cilindros explodira, a biela atravessara o pistão e a carcaça do motor, indo rasgar a fuselagem do avião pelo lado de fora, lambuzando toda a área com óleo escuro, como se fosse um monstro ferido que perdera muito sangue.
O mais importante, porém, foi que conseguiram pousar em paz, e, exceto a irresponsável brincadeira de mau gosto de um coronel da reserva da FAB, tudo correu na mais santa paz, graças a Deus. Afinal, aquela não foi uma tarde banhada em sangue, mas apenas em óleo. Amaral Neto que o diga, onde estiver.
Quanto ao coronel, se eu houvesse errado, ele me teria dado uma cadeia, não teria?... Mesmo assim, que Deus perdoe suas intenções, onde estiver.
E a montanha do Paraná, como foi?... Brincou?...
Impressionante é que ele ia me prender sem nunca ter falado comigo. Mas não é assim também na guerra?... As pessoas se matam só porque os... (quem são mesmo?...)... mandaram?...

Autor: Raul Santos


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