Sob Efeitos Do Colonialismo



Eliomar Rodrigues da Rocha

O discurso racista estereotípico inscreve uma forma de governamentalidade que se baseia em uma cisão produtiva em sua constituição do saber e exercício de poder.

Hommi Bhabha - O local da cultura


Durante uma das aulas do curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Língua Inglesa e Respectivas Literaturas, da Universidade Federal de Rondônia/UNIR, ocorreu um episódio que servirá como motif para a elaboração deste texto e como um exercício pós-colonialista usado contra esse tipo de assertivas que tanto enaltecem a imagem do colonizador em detrimento do sujeito colonizado. Se ainda nos surpreendemos com tais posturas e atitudes em nossa sociedade é porque a situação colonial ainda governam a mente de muitos indivíduos. Estes – embevecidos com a ideologia colonialista - negam e apagam a sua história e seguem, obstinadamente, as idéias narcisistas e xenófobas propagadas pelo discurso colonial. Antes, porém, de adentrar esse espaço discursivo, relato o ocorrido para que o leitor possa refletir, também, sobre a situação de colônia em que, grande parte da população, ainda vive.

Enquanto conversávamos – eu e um colega de classe – exercitando-nos em língua inglesa sobre a análise de um dos poemas de Walt Whitman (Songs of Myself), que deveria ser analisado por todos os alunos ao final daquela disciplina (Teoria e Crítica Literária), um discente que nos vigiava, do outro lado da sala, disse em alto e bom som: "Olhem só que coisa mais engraçada!" "Um cabeça-chata, típico cearense, falando inglês!" Chocado com tal postura retruquei afirmando ser amazonense. Em contrapartida, continou-se ouvindo reafirmações de que eu, dado não ser de naturalidade cearense, deveria ser maranhense ou paraense, pois - acreditava o algoz - estava estampada nas características físicas (cabelo crespo, pele escura, etc.) a minha origem. Finalmente, enquanto o professor retomava a fala, pensei ser esse acontecimento, uma excelente questão para a discussão sobre os efeitos do colonialismo na mente do colonizado. Desse modo, procurarei demonstrar neste artigo o quanto, ainda, o discurso do colonizado reafirma e confere autoridade ao colonizador e, em larga escala, assume o lugar dele. Sua linguagem pode nos dizer - analisada numa perspectiva pós-colonial - de onde fala e que lugar ocupa no discurso colonialista.

Nessa mesma perspectiva de trabalho, Albert Memmi, em sua conhecida obra: Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador (1977), afirma que o discurso colonialista procura descobrir e por em evidência as diferenças entre colonizador e colonizado; valorizar essas diferenças em proveito do colonizador e detrimento do colonizado, e ainda, levar essas diferenças ao absoluto, afirmando que tais diferenças são definitivas e agindo a fim de que se tornem tais. De fato, quando o colonizado é completamente colonizado, nada lhe resta de si mesmo e de sua história, pois, o colonialismo, como afirma Frantz Fanon (2005, p. 244), "se orienta para o passado do povo oprimido e o distorce, desfigura, aniquila". Logo, nega a si mesmo e apaga-se completamente e, inconscientemente, assume o lugar do colonizador e reproduz o discurso colonialista. Assim, utilizando-se do discurso colonial, dirigi-se a seus concidadãos como o atual representante do "admirado" e "exaltado" colonizador que não mais está em meio a essa/aquela comunidade. Contudo, seus fiéis servos, continuam seguindo, propagando e reafirmando sua sórdida e contestada autoridade.

Tomado como um discurso de verdade, o colonialismo impera na mente de diversos indivíduos que, por razões históricas, geográficas, econômicas e, especialmente, genéticas (ao que lhes parece) crêem firmemente ser um indivíduo amazônico incapaz de dominar uma língua estrangeira, reproduzindo, dessa forma, o discurso de seu "senhor". Contra esses mitos - muitas vezes veiculados pelos próprios profissionais da área – e que circulam livremente em nossa sociedade - é que precisamos lutar. Mitos como - não aprendem nem o português, imagina o inglês/Inglês é coisa de rico, pobre não sabe nem falar a língua dele/Inglês é pra gente branca e de classe média e alta/Pra quê aprender inglês se moro no Brasil? - devem ser despedaçados, porque justificam e petrificam a imagem de um colonizado inerte.

E assim, tomados por um espírito empobrecedor, muitos indivíduos e até ditos profissionais em Educação, petrificam um discurso minimizador da habilidade e competência humana; um discurso que fora/é utilizado por aqueles que, de certa forma, sentem-se "superiores" e representantes da "melhor" parte da sociedade em que vivem. Embriagados pelo discurso adâmico (de meu ponto de vista, endêmico) – justificam-se a si mesmos através do discurso religioso que lhes mostra anjos e serafins de pele branca, cabelos louros e olhos azuis habitando o paraíso celestial. Negros, índios e caboclos não pertencem a essa esfera celestial; antes, foram/são submetidos aos mais sórdidos e inumanos delírios do "branco". Motivos de chacotas, piadas e assim, sucessivamente.
Nesse sentido, condenam o caboclo amazônico a um lugar de repudio e insignificância. De acordo com João de Jesus Paes Loureiro, "sobre questões relativas a este 'homem amazônico', o caboclo, têm-se abatido as mais sutis formas de preconceitos, que foram potencializados a partir do século XIX, em decorrência da grande expansão no Ocidente, de teorias decorrentes do chamado 'determinismo climático' e das teorias raciais" (1995 p. 43). Mas, se por um lado, quando alguém preso a esse discurso colonizador utiliza-se de enunciados racistas, preconceituosos e narcisistas, reproduz a situação de opressão produzida pelo colonialismo, por outro lado, quando esse discurso é reproduzido por um indivíduo letrado, duvida-se de sua competência intelectual. A duplicação de seu discurso nega-lhe o poder e deve servir como estratégia de resistência por suas vítimas.

Desse modo, nos diz Hommi Bhabha (2005, p.127), que "o discurso racista estereotípico (...) inscreve uma forma de governamentalidade que se baseia em uma cisão produtiva em sua constituição do saber e exercício do poder". Assim, nos diz o teórico que, "algumas de suas práticas (do discurso colonialista) reconhecem a diferença de raça, cultura e história como sendo elaborada por saberes estereotípicos, teorias raciais, experiência colonial administrativa e, sobre essa base, institucionaliza uma série de ideologias políticas e culturais que são preconceituosas, discriminatórias, vestigiais, arcaicas, míticas" (2005, p. 127). Por conseguinte, apesar de estarmos em época pós-colonial, essa prática colonizadora desestabiliza e ameaça a cultura – não apenas local – mas também nacional. Práticas narcisistas, que se enveredam pelos fios tessitivos do discurso maquiavélico e egocêntrico, devem ser retiradas de todo e qualquer ambiente que deseja libertar-se completamente do jugo do colonialismo.

Ao reconhecer a população como causa e efeito do sistema, o indivíduo a serviço do colonialismo tenta perpetuar uma ideologia de dominação "branca" sobre a nação não-branca, o 'caboclo amazônico', como serve de exemplo o caso relatado neste texto. Assim, interpelado por essa ideologia, o 'caboclo' é insultado, diminuído e ridicularizado perante toda a sociedade. Ao vê-lo falar uma segunda língua (senão uma terceira), o sujeito colonizador interpreta a cena como uma atitude semiesca. Qualquer gesto, ação, fala, em suma, qualquer atitude do outrora colonizado, é um espetáculo aos olhos daquele que se julga o seu vigia. Logo, o seu lugar de onde ele vê – o seu promontório – por si mesmo se justifica. Olhado (vigiado) e pintado com as mais vis palavras, esse 'caboclo' não merece o conhecimento em línguas estrangeiras que possui.

Para Albert Memmi, "o escritor colonizado, que chegou penosamente à utilização das línguas européias – a dos colonizadores, não esqueçamos – não pode deixar de servir-se delas para reclamar em favor da sua" (1977, p. 99). Logo, a aprendizagem de uma segunda língua por um colonizado, capacita-o para o diálogo com o colonizador. Sendo capaz de compreender a língua do Outro – do colonizador – o colonizado a utilizará como ferramenta de descolonização de sua literatura, de sua história e, principalmente, o ex-colonizado colocar-se-á como o profeta de seu povo.

Assim escreve Memmi em sua já citada obra, "um colonizado dirigindo um automóvel é um espetáculo ao qual o colonizador se nega a habituar-se; nega-lhe toda a normalidade, como a uma pantomima semiesca" (1977, p. 82). O mesmo pode ser dito da cena descrita no segundo parágrafo deste texto. Um nativo da Amazônia falando inglês é uma pantomima para o indivíduo a serviço do neocolonialismo. Como diz Memmi, "o racismo do colonizado não é, em suma, nem biológico nem metafísico, porém social e histórico". O que esclarece Memmi é que, na história do colonialismo, houve o esforço para se criar uma estrutura de verdades – através da criação de anedotas, lendas, hipóteses e narrativas – que justificasse a soberania do colonizador e a indolência, preguiça e incompetências - até mesmo lingüísticas - do colonizado. Assumindo a condição imposta pelo colonialismo, o colonizado, é verdade, se diz, implicitamente, pertencer ao grupo colonizador. Sua resistência é nula, sua história é a história do colonizador.

O teatro sugerido pelo vigia (me refiro ao indivíduo que se quer colonizador) da cena presenciada por ele, cria uma atmosfera densa e ameaçadora à cultura nacional da qual faz parte a sua vítima. Tentado por esse discurso de "verdade", só lhe resta fechar-se na sua insignificância (diz o colonizador), ou partir para o embate, nos adverte Frantz Fanon em sua obra Os condenados da Terra. Segundo esse teórico pós-colonialista, "no interior de uma relativa opacidade, cada geração deve descobrir sua missão cumpri-la ou traí-la" (2005, p. 239). Assim, nos aconselha Fanon à "perder o hábito de minimizar a ação dos nossos pais ou de fingir incompreensão diante do seu silêncio ou da sua passividade" (2002, p. 239). É preciso que ordenemos todos os atos desesperados de descolonização de nossas mentes, de nossos gostos, hábitos e veneração pela cultura da metrópole. Na Amazônia, há inúmeras formas de representações oriundas dos diversos lugares que, muitas vezes, negam-lhes o valor de representação de determinada comunidade. Nas escolas, como nos demais aparelhos a serviço do Estado, conferem o lugar de primazia à cultura estrangeira em desfavorecimento da cultura local. Os conteúdos lhes são impostos, sabe-se, mas a forma como são trabalhados é a arma para a descolonização. Contudo, cabe aí, a invenção e intervenção do sujeito encarregado do serviço de reprodução do saber e, logicamente, da sua inteligibilidade.

A subversão dos vários discursos estereotípicos e narcisistas deve ser utilizada com por todos os povos que foram submetidos ao colonialismo. Posicionar-se contra os mitos colonialistas, deve ser a tarefa não somente de intelectuais. "Admirar-se e cantar-se", escreve Fanon (2002, p. 246), ao referir-se à legitimidade da reivindicação de uma nação. É preciso que mergulhemos em nosso passado e cantemos nossos feitos heróicos, do contrário sofreremos mutilações psicológicas extremamente graves, como confirma o fato que me empurrou para este discurso. "Para garantir a salvação", afirma Fanon (2005, p. 250), "para escapar à supremacia cultural branca, o colonizado sente a necessidade de retomar a raízes ignoradas, de perder-se, aconteça o que acontecer, nesse povo bárbaro". Logo, ao sentir-se alienado, o colonizado deve lutar pela libertação de sua mente.

Diana Brydon e Helen Tiffin, escrevendo acerca do processo de descolonização, afirmam: "Our mind, as well as our economies, must be decolonised" (2001, p. 11). Ainda sobre esse assunto as autoras sentenciam: "countries that are officially independent yet suffer the continuing pressures of economic and psychological dependency" (2001, p. 215). Assim, não se suporta mais certas acusações, certos insultos, falácias, xenofobia e narcisismo. Na era atual de globalização e contato instantâneo com outras culturas (quem sabe a língua inglesa, por exemplo, e comunica-se com pessoas de outros países e continentes), nosso maior dever é nos conscientizar de que o conhecimento de uma língua mundialmente falada, como é a língua inglesa, é um instrumento imprescindível na luta pela libertação de nossa cultura. Se certos paradigmas imbricados em nossa sociedade ainda são seguidos, é preciso que se reflita sobre nossa grande missão: a luta pela libertação de nossa mente. Uma mente liberta jamais se admira ao ver um colonizado tendo certo domínio de uma língua estrangeira. Essa postura deve ser banida de sua mente imediatamente, ainda mais quando parte de um lugar que deveria ser o lugar do intelectual; o lugar de discussões e reflexões descolonizadoras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRYDON, Diana e TIFFIN, Helen. Decolonising Fictions. Toronto: Dangaroo, 2001.

FANON, Frantz, Os condenados da Terra. Trad. Enilce Albergaria Rocha e Lucy Magalhães. Editora da UFJF, 2002.

BHABHA, H. K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis,
Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2005.

MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. 3. ed. Trad. Roland Corbisier e Mariza Pinto Coelho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultua amazônica - uma poética do imaginário. Belém: CEJUP, 1995.
Autor: Eliomar Rocha


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