A IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO INSTITUTO DA FUNÇÃO SOCIAL NOS CONTRATOS DE LOCAÇÃO REGIDOS PELA LEI Nº 8245.



A IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO INSTITUTO DA FUNÇÃO SOCIAL NOS CONTRATOS DE LOCAÇÃO REGIDOS PELA LEI Nº 8245.

Thiago Pereira Gun


RESUMO


O presente artigo versa sobre o conceito de função social e sua abrangência na lei 8245/91, mediante uma exposição de função social dos contratos para depois dissertar sobre tópico relevante da referida lei que não é condizente com a ótica da função social. Demonstra-se a inserção do instituto da função social na Constituição Federal de 1988 e no Código Civil de 2002, atrelando tal paradigma constitucional aos contratos. Revela-se, ao final, o ponto central do texto: a incompatibilidade referente às garantias locatícias da lei nº 8245/91 com a tendência atual da preeminência do interesse público sobre o privado, no Estado Democrático de Direito.


Palavras-Chaves: Estado Democrático de Direito; Função Social; Contrato; Novo Código Civil; Constituição Federal de 1988; Interesse público; Garantias Locatícias no Contrato de Locação de Imóvel Urbano.


ABSTRACT


The current article is about the "social function of the contracts" and it?s influence in the law 8245/91. It?s an exposure about the meaning of the term and the aspects of the law that don?t match this concept. Mostly, the article shows how the social function reached its importance and the status of one of the main principles of the 1988?s Constitution and the 2002?s civil code. In conclusion, it discusses about the different points of view between the law 8245/91 and the current idea of the considering the public interests above the private interests in the Democratic State of Law.


1 INTRODUÇÃO


Hodiernamente, o Estado, em sua acepção de Estado Democrático de Direito, diligencia em prol da sociedade, mormente, referente ao direito contratual.
No Código Civil de 1916, dava-se maior importância aos interesses individuais e a autonomia da vontade direcionava o cumprimento dos contratos, representado, mormente, pelo princípio da pacta sunt servanda. Somente com o advento da Constituição Federal de 1988 que os valores coletivos se tornaram extremamente relevantes, inspirando e dando o status de social a todo ordenamento jurídico confeccionado após o referido diploma. Nessa linha, o Código Civil de 2002, conforme estabelecido por nossa Carta Magna, fomenta também a prevalência do interesse público.
A Constituição Federal de 1988, decorrente dos denominados "direitos de terceira geração", modelados pela solidariedade e fraternidade social, inseriu o instituto da função social nos incisos XXII e XXIII do artigo 5º em que garante o direito da propriedade a qualquer pessoa desde que atendida a sua função social. Assim, o direito ilimitado de propriedade foi restringido em prol dos direitos difusos e coletivos, que se manifestam nas limitações sobrevindas do Direito de Vizinhança, Direito Urbanístico e Direito Ambiental.
A função social institui a preeminência do interesse público sobre o privado, bem como a prevalência da utilidade coletiva sobre o meramente individual, buscando uma justiça de natureza equitativa, promovendo, por consequência, a redução da desigualdade social.
Assim, o Novo Código Civil, indo ao encontro da Constituição Federal, em seu artigo 421, dispõe que "a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato", afastando, portanto, o individualismo jurídico e estabelecendo a socialização contratual.
A função social dos contratos tem o escopo de amparar não apenas os anseios dos contraentes, mas também os interesses de toda a coletividade, ou seja, visa harmonizar os interesses privados com os interesses de toda a sociedade.
A função social da propriedade correlaciona-se com a dos contratos, pois seu desempenho interessa a toda coletividade e não apenas as partes contraentes.
Essa determinação (atender a função social do contrato), conforme alguns doutrinadores, poderá causar insegurança e minorar as garantias para os contraentes que ratificaram seus contratos fundamentados na certeza de que o estabelecido será respeitado por ambas às partes.
Entretanto, tal argumento não merece prosperar, pois prevalece ainda na seara civilista o axioma do "pacta sunt servanda", apesar deste não vigorar mais em toda sua plenitude. Assim, deve-se fazer uma releitura do referido axioma, pois os contratos não podem se pautar somente pela ótica individualista, mas é necessário que possua um sentido social para toda a coletividade.
Sobre o assunto, dispõe o processualista Humberto Theodoro Júnior :

"É inegável, nos tempos atuais, que os contratos, de acordo com a visão social do Estado Democrático de Direito, hão de submeter-se ao intervencionismo estatal manejado com o propósito de superar o individualismo egoístico e buscar a implantação de uma sociedade presidida pelo bem-estar e sob efetiva prevalência da garantia jurídica dos direitos humanos."

Ademais, para reforçar e conferir maior credibilidade às obrigações contratuais, o artigo 422 do Novo Código Civil determina que "os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé". Desta forma, ao instituir o princípio da probidade e boa fé, o Novo Código Civil, impõe, aos contraentes, uma postura compatível com a função social.
A função social do contrato cerceia praticas abusivas que produzem prejuízos à outra parte ou a terceiros. Nessa linha, o artigo 187 do referido código determina que o titular de um direito, que ao exercê-lo, exceder manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes, comete ato ilícito.
Deste modo, o descuido ao valor social do contrato compromete o fim econômico e social, a boa-fé e bons costumes na execução do negócio jurídico.
A Constituição Federal, logo em seu primeiro artigo, dispõe que "a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa". Assim, o ato de contratar depende exclusivamente da livre iniciativa instituída pela Carta Magna.
É cediço que o encargo de função social aos contratos não visa obstar a manifestação livre para contratar, mas tal atribuição exige que a celebração não seja direcionada em prejuízo à coletividade.
Ademais, a função social dos contratos visa conciliar o princípio da liberdade com o da igualdade, pois, para a corrente liberalista é essencial o desenvolvimento da personalidade individual e, para a igualitária, é primordial a expansão da comunidade, ainda que esta diminua a liberdade individual.
Para ratificar melhor o tema, a Constituição Federal estabelece em seu artigo 173, §4º, que será vedado o negócio jurídico que "vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros". Ressalte-se que o referido dispositivo restringe o poder contratual relacionando-o ao interesse coletivo.
Nessa linha, a nossa Lei Maior corrobora a função social dos contratos, pois estabelece que seja pactuado em favor dos contratantes, mas essencialmente deve-se pautar no interesse público.
É mister trazer a tona à diferença entre a liberdade contratual e a liberdade de contratar. A liberdade contratual relaciona-se a critérios objetivos dos contraentes, ou seja, é limitada pela ordem pública e pela superioridade dos interesses coletivos, já a liberdade de contratar refere-se a critérios subjetivos discricionários a cada contratante no sentido de efetivar ou não a contratação.


2 AS GARANTIAS LOCATÍCIAS REGULADAS PELA LEI Nº 8245 DE 1991 FACE A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS .


Com o advento da Constituição da República de 1988 estabeleceu-se o Estado Democrático de Direito, requerendo, indispensavelmente, a adequação de todos os ramos do direito ao novo modelo constitucional.
A lei 8245/91 adveio como forma de tutelar e incentivar a moradia nos imóveis particulares.
É importante ressaltar que no contrato de locação de imóveis predomina um desequilíbrio entre o locador e locatário, já que este necessita do imóvel para sua moradia ou para desenvolver seu trabalho. Assim, a Lei do Inquilinato (8245/91) visa nivelar o desequilíbrio natural existente conferindo maior proteção ao inquilino.
De um modo geral, considera-se a locação como um contrato pelo qual uma pessoa, denominada locador, se obriga a ceder, à outra, inquilino ou locatário, durante certo lapso temporal, o uso e o gozo de um determinado imóvel, mediante uma contraprestação, usualmente denominada aluguel.
Tema de suma importância referente à locação de imóvel urbano é a possibilidade ou não de desoneração do fiador antes da devolução efetiva do imóvel ao locador.
Cabe ressaltar que o contrato de locação institui uma relação duradoura e por este motivo é indispensável a figura do fiador para conferir garantias concretas ao locador.
O Código Civil de 2002 dispõe nos artigos 818 e 835, respectivamente, que "pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra" e "o fiador poderá exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando obrigado por todos os efeitos da fiança, durante sessenta dias após a notificação do credor".
Depreende-se da leitura que o fiador nada aufere de vantagem, mas a ele somente é conferida uma imensurável responsabilidade caso o devedor principal não cumpra com sua obrigação assumida e ele não tenha notificado ao credor sobre seu intuito de se desonerar da obrigação.
Entretanto, a Lei 8245/91 institui em seu artigo 39, alterado pela Lei nº 12.112 de 2009, que qualquer das garantias, dentre elas a fiança, se estende até a efetiva devolução do imóvel, ainda que prorrogada a locação por prazo indeterminado. Desta forma, a referida lei institui a impossibilidade de exoneração do fiador até a entrega do imóvel locado.
Demonstra-se, portanto, uma contradição presente entre o Novo Código Civil e a Lei do Inquilinato. Assim, para solucionar a antinomia supra, faz-se necessário a inserção do princípio da função social dos contratos, elemento essencial no Estado Democrático de Direito.
Desta forma, com o advento da Constituição Federal de 1988, é inaceitável conceber que o fiador está impossibilitado de se desonerar da fiança, pois tal posicionamento contrapõe-se à ordem pública, ao fim comum. Por conseqüência, o artigo 39 da Lei do Inquilinato ultraja a função social do contrato, pois ao aplicá-lo causar-se-ia imensurável devastação aos fiadores.
Para corroborar o posicionamento ofertado supra, é importante ressaltar o art. 2035, § único do Código Civil de 2002 estatui que "nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos".


3 CONCLUSÃO


Diante do exposto, verificou-se que a inserção do instituto da função social tem o escopo não apenas de amparar os anseios individuais, mas os interesses de toda a coletividade para fomentar a inclusão social dos excluídos, promovendo a redução das desigualdades sociais. Ainda, a função social, na seara contratual, almeja o equilíbrio entre as partes contratantes, bem como o incentivo à circulação da riqueza.
É inegável que o descuido ao valor social do contrato compromete o fim econômico ou social, a boa-fé ou bons costumes na execução do negócio jurídico.
Os contratos sob a ótica do Estado Democrático de Direito não tutela somente a liberdade de contratar e os interesses individuais, mas os submete ao interesse público.
Conforme demonstrado, a Lei do Inquilinato, mormente no dispositivo que dispõe sobre a fiança, é incompatível com os ideais do Estado Democrático de Direito.
Verifica-se que a questão da função social é assunto extremamente amplo capaz de gerar um debate acirrado na doutrina. O que se pretendeu neste trabalho foi contribuir para tal discussão doutrinária tão importante para o Direito. No Estado Democrático de Direito, em que se propõe o asseguramento dos direitos do cidadão, justifica-se o intervencionismo estatal com o fim de superar o "individualismo egoístico". Desta forma, o estudo da função social dos contratos mostra-se fundamental para a efetivação do paradigma social constitucional previsto na Constituição da República de 1988.












REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro - Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. São Paulo: Editora Saraiva, 2006.

GANGLIANO, Pablo Stolze.; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume IV: contratos, tomo 1: teoria geral. São Paulo: Saraiva, 2008.

SIMÃO, José Fernando. A Lei do Inquilinato e o novo Código Civil Questões Polêmicas. Disponível em: www.professorchristiano.com.br. Acesso em 20 out. 2009.

TALAVERA, Glauber Moreno. A função social do contrato no novo código civil. Disponível em: www.cjf.jus.br. Acesso em 20 out. 2009.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O Contrato e sua função social. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 6 p.






Autor: Thiago Pereira Gun


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