A Tragédia Da Vida Privada (ou Da Omissão Pública) No Rio De Janeiro



Caminhando de manhã por uma rua onde cerca de meia dúzia de transeuntes, como eu, circulava, pensava nas atividades daquele dia. Precisava reunir material para desenvolvimento de trabalho na faculdade, texto da monografia, e andava preocupada com pesquisas e prazos. Trajava roupa esporte, minha vestimenta preferida: jeans, casaco e mochila. Distraída, há certa altura fui abordada por dois homens de moto, que me cercaram próximo a um carro estacionado. Um deles desceu do veículo e me pediu para entregar a mochila. Minha reação, instintivamente, foi apertar suas alças, gesto que o assaltante certamente interpretou como esboço de alguma reação, pois imediatamente agarrou-me pelos braços e jogou meu corpo contra a parede, em seguida atirando-me ao chão e chutando-me algumas vezes, até que o outro gritou e alertou para que fossem embora. Ele apanhou a mochila, sentou na garupa da moto e fugiu. Pessoas que passavam, que na hora simplesmente sumiram, foram reaparecendo aos poucos e quiseram prestar o auxílio que há pouco haviam negado. Aceitei uma mão estendida e uma carona até em casa.

Ainda assustada, tomei um chá, um banho e sai com um amigo para prestar queixa do ocorrido, visto que tinha perdido todos os documentos, incluindo cartões de bancos e talões de cheque. Na delegacia, soube que deveria me dirigir a outra, que fazia parte da área distrital onde houve o assalto, mas que antes, como fui agredida, precisava ir ao hospital fazer um exame e gerar um número de atendimento a constar do boletim de ocorrência.

"Qual o hospital mais próximo daqui?" Perguntei.

"O Souza Aguiar", responderam.

Eu tenho plano de saúde, poderia muito bem ser atendida sem demora num hospital conveniado. Ocorre que àquela hora já havia baixado a vocação de repórter, e eu resolvi ver até onde aquilo tudo iria dar.

"Vamos ao Souza Aguiar", disse ao meu aturdido amigo que, no entanto, acompanhou-me sem hesitar.

Chegando lá, primeiro equívoco: na entrada principal, ou na qual julgamos que fosse, informamos a situação e indagamos a um guarda aonde devíamos ir. Ele pediu que interpelássemos a mulher vestida de branco que estava do lado de fora, cercada por um grupo de pessoas que a crivavam de perguntas, as quais ela respondia andando, na intenção de adentrar logo o prédio. A mim ela ignorou, mas meu amigo cercou sua entrada pondo o braço na frente da porta. Ela mandou que nos encaminhássemos ao trauma, porta uns vinte metros adiante. Chegando, explicamos o ocorrido a outra mulher de branco – não tem como dar outra denominação a elas – que solicitou que voltássemos a porta anterior e fizéssemos um boletim. Voltamos e revelamos as instruções à primeira mulher, que disse que o tal boletim era feito justamente no trauma. Meu amigo sugeriu que ela então nos acompanhasse a fim de aclarar as circunstâncias, o que ela fez a contragosto. Apontou a guarda que estava na porta:

"Você perguntou a ela?"

"Não, perguntamos a mulher de branco", respondi.

Ela, contrafeita, nos fez entrar e saiu resmungando algo ininteligível. Feito o boletim, fui encaminhada a uma sala – sozinha, pois meu amigo fora barrado – onde um grupo de médicos (ou assim julgo que fossem) atendiam a grupos de pessoas que jaziam espalhadas em macas. Numa mesa encostada na parede alguns profissionais, se é que posso chamar assim, estavam reunidos. Logo uma moça, que não estava entre os da mesa, acercou-se de mim e perguntou o que houve. Entreguei o papel e expliquei. Ela disse que era com a cirurgia, que eu esperasse ali que ela iria encontrar alguém para me atender. Acedi com a cabeça e encostei na parede, pois não havia cadeiras. Logo uma médica – ou julgo que seja – gritou de onde estava:

"E você?"

Respondi: "Assalto e agressão. Vim fazer o exame de..."

Ela cortou: "É na sala amarela, lá dentro."

Justifiquei que a outra havia pedido que eu aguardasse ali. Muito grosseiramente, ela fez um gesto de mão e respondeu:

"Então fica aí."

Não repliquei e continuei onde estava. Instantes depois, imagino que esquecida de que já havia me abordado, pergunta de novo:

"E você aí?"

"Assalto e agressão. Vim fazer o exame de..."

"Aonde?"

"Me disseram pra esperar aqui."

"Tsc!" Seguido do mesmo gesto."

Quis responder um impropério, algo do tipo ela só estava ali porque nós, cidadãos civis, constantemente destratados pelo sistema que é sustentado por nossos impostos, bancávamos seu salário. Que ali ela não estava fazendo a mim, ou a quem que fosse, um favor, mas cumpria uma obrigação, pois aquele era o trabalho dela, e caso estivesse insatisfeita que procurasse outra profissão, uma vez que o mínimo que se espera de um profissional é respeito (e olha que nem cito cortesia e boa educação, que são regras de convívio em sociedade). Se ela andava estressada com a rotina, não era a única. As pessoas que, a contragosto, vão até ali, chegam em sua quase totalidade machucadas e traumatizadas. Não é de modo algum necessário complementar o quadro com indelicadezas. Mas nada disse. Limitei-me a ficar calada, e só me arrependo de não ter procurado saber seu nome, pois hoje seria com gosto que o revelaria aqui a vocês. Não tendo essa informação, contento-me em fazer sua descrição: cerca de um metro e sessenta de altura, gordinha, de óculos, cabelos curtos, castanhos e encaracolados. De plantão no Souza Aguiar na manhã de sábado, 13/04. Depois a vi na tal sala amarela, para onde efetivamente me encaminharam mais tarde.

Ainda parada no local onde haviam me designado, vejo chegar uma médica solícita – essa sim, solícita – vestida de azul. Olha minha ficha, faz algumas perguntas e me encaminha ao raio-x.

Subo as escadas e chego a um corredor onde me orientam – os próprios pacientes que ali aguardavam – a entregar a ficha na recepção e esperar o atendimento. Não havia ninguém. Uma senhora me diz:

"Tem que bater, senão não atendem".

"Bater aonde?"

"No vidro, assim."

Ela bate no vidro, que faz um pequeno estrondo, até que um homem de branco aparece na porta e se dirige a ela. Eu, com as mãos, estendia meu papel. Ela reclama:

"Meu filho está esperando há um tempão. Está com um dreno, com febre, estava deitado. Tem que atender logo."

"Vou ver", responde o homem de branco. E sai. Eu com as mãos estendidas. Não bati no vidro e resolvi esperar para ver se alguém aparecia. Nada. Cinco minutos depois, entra uma mulher acompanhada da filha, que tinha manchas pelo corpo e cuspia a toda hora uma gosma escura. Gritando lá para dentro, exige atendimento. Alguém sai. Aproveito a deixa e entrego a ficha. Sento-me ao lado do Alexandre, garotinho de doze anos que tem água nos pulmões e carrega consigo o dreno que é obrigado a usar. Já estava há muito tempo ali, como a mãe havia dito. Rostinho amuado, continua aguardando sem reclamar. Conosco outras pessoas lutavam contra o marasmo da hora, duas em macas encostadas na parede. Surge um homem com os braços e pernas inchados, diz que foi atropelado. Tem que ficar andando de um lado para o outro, balançando os membros para aliviar a dor.

"Como demora", alguém diz.

"É assim mesmo", respondem. "É que tem os estagiários".

Espero cerca de uma hora e meia. Quando entro, uma mulher mais velha fala comigo e dá instruções a duas outras pessoas. Coloca a chapa, me posiciona, tira meus brincos, meu boné. Me afasta, tira a chapa, baixa o aparelho, explicando tudo de maneira paciente e professoral. Me posiciona novamente. Sinto dedos riscando minhas costas, para achar a posição correta. Bate a chapa, revela, mostra aos outros, explicando detalhes. Me entrega e me despede. Quando saio, vejo mais gente chegando.

Certamente não sou contra residentes e estagiários. Não sei muito sobre o assunto. Apenas tenho a impressão de que, se pensado, haveria soluções melhores para conciliar o aprendizado de futuros profissionais com a necessidade de pronto-atendimento de dezenas de cidadãos feridos que aguardam durante horas para realizar procedimento corriqueiro como um raio-x. Outro detalhe: será que a verba da saúde é insuficiente para contratar recepcionista(s), por salário mínimo que seja, para simplesmente recolher fichas na recepção?

Desço as escadas. Não encontro quem havia me atendido. Pergunto a um clínico de passagem, explico a situação. Ele me manda para a tal sala amarela. Entro na sala. Ambiente caótico, onde misturam-se pessoas com diversos tipos de problemas, maioria idosos. Me posiciono numa espécie de fila, onde uma médica ausculta um senhor semi-acordado, sentado numa daquelas cadeiras hospitalares. Vejo a mal-educada passando. Ao mesmo tempo, ouço chamarem meu nome. É a moça solícita. Olha o raio-x e me libera, após anotar a numeração necessária que deveria ser informada no boletim de ocorrência.

Saímos, meu paciente amigo e eu, a caminho da delegacia. Na ouvidoria, informo o ocorrido a uma das jovens (são duas) que pede para nos aproximarmos. Um homem – inspetor, eu acho – começa a interrogar rapidamente, como se esperasse me pegar em contradição:

"Foi aonde? A que horas? O que você estava fazendo lá? De onde estava vindo? Por que só veio aqui agora?"

Respondo pacientemente a todas as perguntas, até que ele autoriza a atendente a registrar a ocorrência. Azar o nosso, era hora do almoço. Uma delas está de saída, pergunta a outra se não quer ir na frente. Não quer, prefere ir depois, obrigada.

"Quer que eu traga pra você?" Pergunta.

"Quero. Pode trazer".

"Você quer o quê?"

"O que é que tem?"

"Ah, o de sempre... arroz, feijão, batata, salada... frango..."

Não havia comido nada, nem meu amigo. Nosso estômago se contraía a simples menção da comida, e mais tarde, indignado, ele me confidenciava que por pouco não interrompeu o diálogo para dizer que trouxesse a nossa também, com batatas. A jovem anotou demoradamente em um papel o que queria comer, pensou um pouco e decidiu:

"Não precisa trazer. Deixa que depois vou lá. Prefiro."

"Tem certeza?"

"Tenho, senão não me decido."

'Ta bom se você prefere..."

"Prefiro."

"Então tchau."

"Até daqui a pouco."

"Até."

Voltando ao trabalho interrompido, fez as inquirições de praxe e me encaminhou ao inquérito com o inspetor – este sim atencioso. De forma menos acelerada, respondo as mesmas perguntas anteriores, com algumas variações:

"Elementos novos ou velhos?"Pergunta.

Resposta: "De capacete."

Repete, pausadamente:

"No-vos-ou-ve-lhos?"

"De-ca-pa-ce-te. Não deu pra identificar."

No meio da conversa chega um policial a paisana, armado de fuzil, indagando sobre preso que estava causando confusão. Vai meu interrogador, acompanhado do homem, para levar o detento que seria transferido naquele momento. Entram e saem escoltando o tal, que vem algemado e pulando em um pé só. O inspetor senta-se novamente e conclui o minha ocorrência. Agradeço e saio aliviada. São duas da tarde.

Chego em casa cansada e deprimida. Mais que o assalto e a agressão (provavelmente executado por trogloditas semi-analfabetos), magoou-me o tratamento despendido nos setores públicos. Tenho meu plano de saúde que poderia ter utilizado. Também poderia ir a delegacia acompanhada do meu pai, ou de um parente policial, caso tivesse um. Certamente a conclusão seria diferente. Mas e quem não tem acesso a hospitais particulares, parentes ou conhecidos que exerçam algum tipo de influência? Estará por acaso entregue ao abandono? É triste compreender, do modo mais difícil – na pele – que nesta cidade de fato a violência é constante, a saúde é precária e a segurança é insuficiente. Muito mais latente que as feridas no rosto e cotovelo, e a dor no peito, que se curam facilmente, é a dor da revolta, da impotência. Essa sim, é uma chaga permanente...


Autor: Daniele Barizon


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