HISTÓRIA E EXCLUSÃO



HISTÓRIA E EXCLUSÃO.

Farei um rápido passeio pela história do Brasil na virada do século XIX e início do século XX para situar Lima Barreto frente aos valores cristalizados na sociedade brasileira em seu longo percurso.
Essa contextualização tem como objetivo tentar explicar o intelectual Lima Barreto e assim possibilitar sua desconexão com a critica, que o tomou como " o cão de patologia do indivíduo", quando o mais sensato seria analisar a patologia da sociedade com a qual a obra do autor dialoga desde sua estréia em 1909, com o romance Recordações do Escrivão Isaias Caminha, em que critica tanto a sociedade, como a política e a literatura.
Ora, se todos os criticados faziam parte dessa hipócrita e doente sociedade, é fácil entender porquê não aceitar um mulato pobre, filho de escrava, como literato, equiparando-se assim aos seus " medalhões" literários.
Vejamos que nos diz a História:
1888, ano da Abolição; negros livres e felizes.

O que a História não diz:

"Juridicamente, a nação estava livre.Novas perspectivas se abriam,mas as estruturas tradicionais persistiam inalteradas.
Herdara-se uma economia: o latifundiário exportador e escravista, e uma tradição cultural: a mentalidade senhorial.
Os africanos e seus descendentes foram atirados para fora da sociedade,a abolição exonerou de responsabilidades os senhores, o Estado, e a Igreja.Tudo cessou,extinguiu-se todo o humanismo, qualquer gesto de solidariedade ou de justiça social: o africano e seus descendentes que sobreviveram como pudessem." (NASCIMENTO,1978,p.65)

1889,Proclamação da República, um golpe liberado pelo mal.Deodoro da Fonseca.

O que a História não diz:

Que não houve participação popular, pois o povo nem sequer sabia o que estava acontecendo, enquanto o exército passava em direção ao Palácio do Governo o povo aplaudia com; viva o Imperador!

" O Brasil da república não é o brasileiro,mas daquele que vem de fora,enfim do imigrante... nunca tivemos aqui movimentos populares da massa.As alterações sociais ocorreram como produto de conciliações entre o novo e o velho, conforme os desejos das classes dominantes e não com a participação do povo. Eram sempre conciliações excludentes.." ( HOLLANDA,RAÍZES DO BRASIL, DVD).

1894- 1930: República do CAFÉ COM LEITE
Um acordo entre as oligarquias de São Paulo e Minas Gerais.

O que a História não diz:

Que houve um brutal empobrecimento do povo nordestino , pois aqui reinava com mais poder o Coronelismo que já vinha dos tempos do Império ,como conseqüência tivemos uma generalização de miséria entre o povo que dependia cada vez mais dos donos absolutos das terras.Surge então o Cangaço e Canudos,este último serviu de mote para Euclides da Cunha em, Os Sertões, autor contemporâneo de Lima Barreto.

1904,Revolta da vacina e urbanização do Rio de Janeiro:

Com a urbanização toda a população pobre foi enxotada de suas casas para se amontoarem nos subúrbios e quanto ao progresso não lhes sobraram absolutamente nada ,pois a maioria não sabia ler.Portanto, não havia para ele vagas nas fábricas,passaram a viver pelas ruas atrás de biscates.A maioria negros.A vacina veio para limpar e sanear a cidade,os pobres não aceitaram a obrigatoriedade esse rebelaram e sobre esses fatos nos fala Lima Barreto em os Bruzundangas.

"O visconde era ministro para evitar aos estranhos,aos turistas, contratempos e maus encontros com javaneses.Por isso chegou a limpar a cidade e até a preparar uma guerra criminosa para ver se dava cabos destes últimos."( BZ,133).

Vejamos o que nos fala Monteiro Lobato, também contemporâneo de Lima Barreto,pouco antes da urbanização do Rio:

"Estive uns dias no Rio. Que contra- Grécia é o Rio!O mulatismo diz que traz desonra de caráter.Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns produtos instáveis .Isso é normal.Floriano, da gente que volta para os subúrbios, perpassam todas as degenerescências ,todas as formas humanas- todas menos a normal .Os negros da África,caçados a tiros e trazidos à força para a escravidão, vingam- se do português da maneira mais terrível- amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde.[...}Como concertar essa gente ... que problemas terríveis o pobre negro da África nos criou aqui na sua inconsciente vingança!... talvez a salvação venha de São Paulo e outras zonas que intensamente se injetam de sangue europeu".( Broca, in NASCIMENTO, p.110).


Como se vê, é uma história calcada na exclusão.São seus acontecimentos que fazem de Lima Barreto um homem consciente e sensível aos problemas da discriminação social,por isso seu grito não pode ser entendido como individual ,mas um grito coletivo, grito de uma raça, de uma cor, um grito da verdadeira gente que fez e faz o Brasil.É o grito de todos os brasileiros excluídos, é o retrato do país.



A CRITICA LITERÁRIA NA VIRADA DO SÉCULO XIX E INICIO DO SÉCULO XX.

A critica literária no Brasil não era diferente de sua sociedade, uma vez que dela fazia parte,ambas eram totalmente influenciadas pela cultura européia,cujas idéias em relação à mistura étnica eram extremamente negativas, o que resultou na discussão sobre o racismo e a inferioridade dos povos não brancos.
Na Europa, a idéia dominante era que por ser uma região de clima frio tornava-se o lugar ideal, e principalmente, onde habitavam os homens mais inteligentes e civilizados.
Essas idéias são encontradas em Montaigne,Montesquieu, Buffon,Rousseau e outros, cujas obras eram lidas pelos intelectuais brasileiros,na Escola do Recife tiveram esses autores uma grande receptividade, eis aí as influências racistas de Graça Aranha , que tanto sonhou com um Brasil " embranquiçado".
Bosi,nos confirma que essa visão negativa do homem tropical e especificamente do mestiço passava então por cientifica e realista e que permaneceram na abordagem do caráter brasileiro até o início do século XX,nas obras de Silvio Romero, Paulo Prado, José Veríssimo e outros.
Sobre Lima Barreto, falam José Veríssimo e Medeiros de Albuquerque,Alcides Maia , respectivamente:

" Tem muitas imperfeições de composição, de linguagem e de estilo" .

"Mau romance ? explica- porquê é da arte inferior dos romanos à clef".

"A sua nota pessoal, que o reduz a quase um "álbum de fotografia".


Obs.: As citações acima foram retiradas da obra "A vida de Lima Barreto", de Francisco de Assis Barbosa,1975.


Ora, vivendo nesse meio, restava a Lima Barreto criar uma linguagem própria e expressiva, cria ele então a denúncia satírica, e sua comicidade irrita, com seus erros de linguagem propositais, deixando os intelectuais incapazes de compreender o óbvio, a denúncia, a partir da língua com "erros" que caracteriza o negro.Lima Barreto provoca, com suas ideais renovadoras e assim promove uma ruptura com as estéticas; parnasiana e simbolista ainda cultuadas em sua época.


LIMA BARRETO POR ELE MESMO .

Nasci sem dinheiro,mulato e livre...
Não me canso nunca de protestar.Minha vida há de ser um protesto eterno contra todas as injustiças.

Escolhi a palavra como arma para combater a opressão, os preconceitos, a violência social e política.

Eu quero ser escritor porque quero e estou disposto a tomar na vida o lugar que colimei. Queimei os meus navios,deixei tudo,tudo,por essa coisa de letras,Por mais que não queiram ,eu também sou um literato, e o que toca às coisas de letras não me é indiferente.

A arte só ama a quem a ama inteiramente,só e unicamente; eu precisava amá-la,porque ela representava não só a minha redenção,mas toda a dos meus irmãos na mesma cor.

Assim se fez escritor, o brasileiro Lima Barreto, o que denuncia é a necessidade do país encontrar seu caminho, se engravidar de si mesmo para parir sua própria identidade, uma identidade com sua cara e não com a que lhe deram.
Quanto ao comentário de Alcides Maia,tinha ele toda razão,pois o que Lima Barreto fez foi realmente fotografar,mas em preto e branco e imprimindo em seus livros a sociedade e o Brasil, deixando o filme colorido nas prateleiras da bélle epoque.




Autor: Luciana Carneiro Nunes


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