A Maldição da Lenda - O Piquenique







CAPÍTULO TRÊS
O Piquenique
O som da guitarra se confundia com os da natureza, fazendo coro à algazarra dos jovens, à sombra da enorme castanheira. As moças pulavam corda, as crianças jogavam bola, os adultos conversavam animadamente, os rapazes variavam entre futebol, namoro, cavalgada ou o banho no límpido regato que serpenteava por entre as pedras, um pouco mais distante. Qualquer pessoa que conhecesse A Lenda poderia facilmente identificar os pontos dos fatos ocorridos séculos antes, e cada circunstante como querendo apagar as imagens dolorosas do passado, elevavam os pensamentos como em preces harmoniosas ao Alto, procurando aproximar-se dos amigos como se tivessem a presença viva do cacique e estivessem a pedir desculpas pelas ofensas sofridas no passado, numa invasão profana aos costumes mais puros e às tradições mais sagradas.
O que mais chamava a atenção era o toque da guitarra havaiana que conduzia os pensamentos às mais variadas divagações conforme a circunstância em que eram feridas suas cordas. Quando parava por alguns instantes, outro a tomava, dedilhando, de parceria com o cavaquinho, timbale, violão, pandeiro e acordeão, transformando aquele recanto outrora palco de batalha em ambiente divino de festa. Barbosa entregou-a para Alberto, que deu início aos acordes de uma guarânia, e foi acompanhado pelo grupo. Antônio pegou o microfone e cantou com voz roufenha, mas não foi censurado, porque todos ali tinham liberdade de fazer o que bem entendessem. Depois Alberto entoou uma música country que reboou pelos ares nas notas agudas, fazendo a quem as ouvisse ser transportado aos plácidos campos de preces celestiais.
Ao pé da castanheira, Dominício e Malaquias, secretários municipais de Administração e de Fazenda, comentavam a luta, como fato ocorrido na véspera.
_ Foi neste local que o cacique caiu. A Lenda diz que uma raiz descoberta da castanheira serviu de travesseiro no seu último sono!...
_ É verdade ? respondeu Malaquias. ? É como se a gente tivesse presenciado. Cada ataque, cada um que tombava, está presente, como verdade de hoje.
_ Mas como podem ter tanta certeza, se a batalha foi há tanto tempo?
_ Amigo, ? informou Dominício sem atinar na intromissão do desconhecido ? nós nascemos e crescemos com A Lenda e ela faz parte da nossa vida. Não existe uma criança de Serra Dourada que se entenda por gente que não conheça ao menos algum detalhe dela. O restante vai enriquecendo à medida que ouve as narrativas ou lê os escritos.
_ Mas todos na cidade adotam esta concepção, quer dizer, todo mundo aqui acredita realmente que os fatos tenham ocorrido conforme as narrativas que se sucedem de geração para geração, ou porventura haverá alguém que coloque alguma dúvida na história, ao menos por supô-la diferente do que dizem?
Os homens se olharam como se não entendessem e Malaquias informou:
_ Amigo, o senhor é novo na cidade e por certo quer se inteirar do nosso modo de vida, mas para seu próprio bem, aconselho a aderir aos ensinamentos, pois as tradições seguem cada um dos lances daquela luta fatídica de mais de trezentos anos. Ninguém por aqui tem a menor sombra de dúvida quanto à veracidade dos fatos ocorridos. Se há alguma pequena discordância em relação aos bandeirantes e aos índios, é que não temos escritos de todos os detalhes, mas do que houve de mais importante, não prescindiram os da época de repassar a nós, descendentes, as experiências vividas durante a batalha.
_ Se os amigos permitem, apenas uma pergunta!...
_ Toda pergunta será bem vinda!...
_ Por que insistem em chamar de lenda o que está provado por registros?
Outra vez eles se olharam, mas para soltarem a mais gostosa das gargalhadas, e Dominício explicou:
_ Nós e nossos avós sempre soubemos, mas o senhor há de convir que com registro histórico ou não, a palavra LENDA oferece um toque misterioso, convidando qualquer um a ser um bom ouvinte, ainda mais com a MALDIÇÃO!...
O visitante, deu-se por satisfeito, agradeceu e saiu circulando por entre as pessoas, ainda arrancando um pequeno comentário dos interlocutores:
_Sujeito simpático, este!...
_ É! Parece gente boa!...
* * * * *
O estilo da festa era singular. Uma diretoria angariava fundos e as despesas corriam por conta da Tesouraria. Cada pessoa não devia tomar uma cerveja ou dose a mais da quota. Vez por outra, um morador trazia um convidado, certo de que ninguém levaria vários de uma só vez ou seguidamente, para evitar choque com outras pessoas, a menos que fosse feita comunicação prévia. Assim, os moradores eram livres de convidar quem quer que fosse. Além disso, eram eleitos garçons e garçonetes em cada temporada, que serviam sem fazer perguntas indiscretas, como: "Você pagou a quota?" ou "De quem você é convidado?".
De prato e refrigerante, o visitante deixou Malaquias e Dominício, circulando sem pretensão fixa, até que ouviu referência aos delegados e aproximou-se.
_ ... e Fulgêncio recebeu o telefonema às duas da madrugada. Dona Mercedes disse que estava cansada mas quando ele falou que ia sair, olhou no despertador e ainda tentou convencer de ir no outro dia, mas ele disse que a pessoa estava apavorada e precisava dele, pois estava com medo. Todo mundo sabia como ele era, temperamental e não mandava recado. Daí, terminou costurado de bala numa madrugada fria. Só não entendo como é que o cara sabia que ele ia sair naquela hora?!... Vai ver, tinha grampeado o telefone dele ou da pessoa que ligou, como nos filmes... ? E, malicioso ? ou em Brasília! Ah! Ah! Ah!...
_ Eu acho que ficam como os espiões, esperando a pessoa sair pra atirar...
_ Mas espião não atira em ninguém, eles só seguem...
_ Eles, quem, se a gente nem sabe quem foi? Nem os tiros, a dona Mercedes ouviu. O Tião que viu o Fulgêncio caído, no pé da roseira.
_ Eu sei é que se o prefeito não der um jeito, eu vou me mandar com a família. A mulher anda tão nervosa que até o sal na comida bota de mais ou de menos. Qualquer dia vai botar sal no café e açúcar na comida.
_ O prefeito não tem nada a ver com essa história, não! Quem tem de providenciar outro delegado é o juiz, que vive se metendo no que não é da conta.
_ Tudo que ele se mete é da conta. Ele se meteu no quê, sem ser da conta?
_ Comigo!...
_ Quem mandou você se meter com de menor?
_ Mas eu ia casar! Agora só vou casar obrigado por aquele enxerido.
_ Tem certeza de que não gosta nem um pouquinho dela? ? Perguntou o visitante, com olhar maroto. ? Eu, quando casei, disse a mesma coisa.
_O senhor também casou na marra?
_Não foi bem assim. Eu não queria me casar com uma virgem. Confessei à noiva, tentando convencer e ela disse que iria colaborar, deixando a vaga para outra que preenchesse os requisitos. Eu disse que só servia se eu desvirginasse, então ela perguntou o que era mesmo que eu queria. Eu disse que queria ter a sensação de estar em frente ao juiz com complexo de culpa. Sabem o que ela fez? Contou ao pai que contou ao padre e ao juiz, que decidiram fazer o casamento no religioso num dia e o civil no outro, quando ela já não fosse mais virgem. Percebi o engodo e quis cair fora, mas era muito tarde. Muito tarde demais, pois a viagem do juiz, só vim saber que fora simulada um ano depois, quando minha primeira filha nasceu. O presente que recebi foi a confissão. Fiquei com raiva, mas venceu o amor, não sei se por ela ou pela filha, ou por ambas!...
Os ouvintes ensaiaram um ar de riso para o final da narração, mas perceberam que acabavam de ter uma das maiores provas de inteligência, sensibilidade, amor e formação moral de que é dotado um ser humano e concluíram que aquele homem, fosse quem fosse, devia ser muito feliz no casamento. tentaram dizer alguma coisa, sem saber o quê, mas foram salvos pelo próprio, que perguntou:
_ Quando cheguei, vocês falavam de pão e de roseira. O que significa?
_ O senhor pegou metade da história. A gente dizia que Fulgêncio recebeu um tiro, caiu no pé da roseira e foi encontrado pelo Tião, quando levou o pão.
_ Um tiro, não. Ele recebeu três tiros, pra ter certeza que matou.
_ Como é que você sabe que era pra ter certeza?
_ Ah! Quem dá três tiros, é pra matar, e não deixar nem sinal de vida...
_ Mas quem era Fulgêncio e por que ele foi alvejado?
_ Ele sabia que Epaminondas tinha recebido o telefonema do cara, dizendo pra ficar quetinho e de boca fechada. O Fulgêncio ficou com raiva e falou que ia ser delegado no lugar de Epaminondas e Epaminondas morreu de manhã cedo quando tomava suco de laranja e o Fulgêncio recebeu o telefonema de madrugada que a dona Mercedes não queria que ele fosse ver quem era de madrugada, mas ele disse que uma pessoa podia morrer e que confiava nele, e ele tinha de ir ver o que era perto da ponte que vai pela estrada velha do Córrego do Ouro.
_ Acho que entendi. Mas quem foi que telefonou e quem atirou no Fulgêncio e por que foi que Epaminondas morreu quando tomava laranjada?
_ Aí é que está o xis da questão. Ninguém sabe por que o Epaminondas morreu, nem quem telefonou e nem quem atirou no Fulgêncio. Tem mais, ninguém sabe quem telefonou pro Epaminondas com voz de pato.
_ Voz de pato?
_ É! O Epaminondas disse ao Fulgêncio que deixou a delegacia porque tinham telefonado pra ele com voz de pato, dizendo que ele ficasse quietinho, de bico e ouvidos tapados. Ele ficou com medo e caiu fora, mas morreu na hora que tomava o suco que ele mesmo preparou. Acho que tinha veneno no açúcar.
_ Não tinha, não, pois eu tomei café que a dona Benta me deu...
_ Então, ele morreu foi de coração, mesmo, e o povo só porque ele era delegado fica dizendo que morreu envenenado. Não sei por quê?!...
_ E agora, o que vocês acham que as autoridades vão fazer?
_ Quem sabe? Ninguém mais quer ser delegado aqui em Serra Dourada. Apesar de amarmos a cidade, depois da morte do Fulgêncio, todo mundo vive apavorado com a história da Lenda e se o prefeito ou o juiz não tomarem uma providência, a cidade vai virar cidade fantasma, feito os filmes de caubói.
_ Mas será que não aparece nem um homem capaz de ser delegado e vai ser preciso as pessoas abandonar a cidade? Pelo que sabemos, só os delegados têm morrido. Daí, se conclui que as outras pessoas estão livres da ameaça.
_ É aí que o senhor se engana, moço, pois os quatro que abandonaram eram homens alegres, amigos de todo mundo e depois que saíram, não falaram com mais ninguém. O Epaminondas foi o segundo, quer dizer, o primeiro depois do Euclides. Foi tudo muito rapidinho, mesmo. Depois que o Epaminondas saiu, assumiram o Baltazar, o Enoque, o Godô e o Miro. Eles levaram mais ou menos dois meses, entregaram a delegacia e se fecharam sem falar com mais ninguém. O único que abriu o bico morreu de laranjada. O outro quis ser mais macho e recebeu chumbo. Agora, o que é que falta? É a gente ver um monte de tanques entrar pela rua e os nazistas acabarem com tudo. Não! A gente vivia uma vida tranquila de apagar uma página vergonhosa e eu, pelo menos, não tenho mais nervos. Olha lá, o Alberto é que devia ser nomeado delegado. Sujeito metido a besta, só vive com aquela guitarra, parecendo que nunca precisa de ninguém. Há quem diga que é boa gente, mas eu, particularmente, não vou muito com a cara dele.
_ Quem é o Alberto?
_ É o filho do farmacêutico! Estuda na capital, namora a filha do prefeito, quer ser advogado ou médico, ainda não sabe... Não sabe porque nunca deu duro pra ganhar o pão. Queria ver ele na pele dos que saíram escorraçados. Eu acho é que já falei demais. Dizem que mato tem olho e parede tem ouvidos. Sei lá se vai sobrar pra mim, também... Por falar nisso, de onde vem o senhor, amigo, que mal pergunte, se não sou indiscreto?
_ Nada!... Tudo bem e muito bem perguntado. Acho até que o pessoal daqui nunca pergunta nada. Já comi, já bebi ? mostra o prato e a garrafa ? e ninguém, a não ser o senhor, me perguntou nada. Sou da capital e venho à procura de um pedacinho de terra pra pastagem. Disseram que aqui seria fácil encontrar, mas agora estou confuso, pensando em desistir, com esses acontecimentos. Não tenho muita coragem de enfrentar o desconhecido e tem muito fantasma na história, pra o meu gosto. ? Desculpou-se ao ver as fisionomias se fecharem e lembrou da Lenda. ? Mas por que não indicam o rapaz para o cargo, apesar de parecer muito jovem, ainda?
_ Jovem, nada!... Se é que ter vinte e dois anos significa ser jovem. Aí é que é bom. Sangue novo, nervos fortes, músculos ágeis, raciocínio agudo, se tocar guitarra, jogar futebol, lutar caratê e ler muito fazem tudo isso... Dizem que é muito inteligente!...
_ Bem, creio que estou me metendo no que não é da minha conta e pode sobrar é pra mim. ? Desculpem, mas vou dar uma circulada. Até mais ver.
_ Até! ? Responderam, em uníssono.
Depois que se afastou, o tagarelas perguntou:
_ Quem é ele? Veio a convite de quem?
_ Você não conhece a ética? Convidado de um, convidado de todos. Sozinho é que não ia aparecer por aqui. Era ser muito cara de pau, não acham?
_Ééééé!... Tinha de lavar o rosto com óleo de peroba, concentrado!...
Ele circulou entre as pessoas, sentindo-se muito à vontade. Cumprimentava um saudava outro, brincava com uma criança, chutava uma bola, até chegar onde estavam os músicos. Aguardou um pouco e no intervalo pegou o violão do Louro do Bode, conferiu a afinação e jogou um Lá menor para o Alberto, que rebateu à altura e tocaram um dueto de maneira que pareciam velhos companheiros. Música vai, música vem, a tarde declinava e resolveram dar uma parada para tomar alguma coisa, quando ele parabenizou:
_ Não acha que você deveria gravar um LP no estilo do Poly?
_ Eu não levo jeito. O senhor é que devia gravar um no estilo do Dilermando Reis!
_ Modéstia!... Com um bom patrocinador e um bom empresário, você seria sucesso em pouco tempo. Tenho uns amigos que gostariam de ouvir você tocar. Quer tentar?
_ Quem sabe, no início das aulas vá procurá-lo, então veremos.
_ Ótimo! Vou deixar meu cartão, e não deixe realmente de me procurar.
_ Devo marcar audiência ou simplesmente telefonar?
O rosto do homem empalideceu levemente, e ele respondeu:
_ Telefonar. Ouvi algumas referências a seu respeito, mas a melhor foi o dueto. Se quiser, após o jantar, poderemos continuar a tocata. O que acha?
_ Ah! Com muito prazer!...
_ Então, posso convidá-lo a jantar comigo?
_ Com prazer!...
_ Às oito?
_ Britanicamente!
_ Gosta da Inglaterra?
_ Muito fria. Sou mais o Brasil!
_ Sir. Conan Doyle?
_ Moysés Weltmann!
_ Sherlock, não?
_ Jerônimo! É mais brasileiro, mais romântico, sabe? Aninha, Saci!...
Um acorde e o dueto voltou a funcionar, chamando de volta os parceiros.



Autor: Raul Santos


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