A Maldição da Lenda - O Jantar







CAPÍTULO QUATRO
O Jantar
_ Muito britânica a sua pontualidade!...
_ Londres tem o Big Ben, o Rio tem o da Central, Salvador tem o de São Pedro... Temos muitos relógios não tão famosos, mas que marcam certas as horas. Assim, não precisamos ir buscar longe o que temos aqui!...
_ Filósofo?
_ Não, apenas observador do que tenho em volta!...
_ Observador ativo, passivo ou indiferente?
_ Conforme o ponto de vista!...
_ Uísque ou cerveja?
_ Um uísque, por favor!
_ O uísque é escocês!
_ Eles também tomam pinga!
_ Vamos ao bar?
_ Com prazer!
_ Disseram que é filho do farmacêutico. Vai seguir a mesma carreira?
_ Ainda não fiz o vestibular, por motivos alheios à minha vontade. Sabe como é, minha mãe faleceu, cuidei dos afazeres do meu pai na rocinha que temos, eles se amavam muito, substituí uma professora em licença maternidade, a guitarra, essas coisas... mas não pretendo demorar para o vestibular. A idade está chegando e o meu pai já se mostra um pouco preocupado com o meu futuro. Nos damos muito bem. Posso até dizer que somos ótimos amigos, apesar dos comentarios que fazem à minha volta.
_ Você sabe do que falam a seu respeito?
_ Um olhar furtivo, um sorriso maldoso, um cochicho irônico dizem bem mais do que pode parecer à primeira vista. É como desvendar os segredos incomensuráveis do Universo nos álbuns de figurinhas!...
_ Diga-me algo sobre a lenda?!...
_ Registros de trezentos anos falam da existência de uma tribo neste local que vivia pacificamente da caça, pesca e agricultura, até que chegou uma leva de bandeirantes. Acolhidos com hospitalidade, fixaram acampamento para o plantio e suprimento de caça e pesca, e chegou o tempo da colheita. Pela brutalidade natural da época, havia rusgas e até escaramuças, decididas em pouco tempo e quando mais graves pelos chefes. Um desentendimento porém foi muito mais longe, quando um dos bandeirantes, indivíduo violento, dito até pirata e mercenário de guerra tomou-se de amores pela filha do cacique que tinha sido prometida ao filho do pajé, aguardando apenas a lua apropriada para o enlace. Em dado momento, encontrou-a à margem do riacho onde nos conhecemos, e quis tomá-la à força, mas foi rechaçado pelo noivo que desconfiava das intenções dele. Enquanto lutavam, a moça fugiu e avisou ao pai que veio em defesa do futuro genro, encontrou o branco ao pé da castanheira e entraram em luta corporal. Os índios quando viram o cacique em luta, tomaram os tacapes e os expedicionários tomaram as espadas e bacamartes, havendo ali uma das maiores carnificinas da história. Restaram umas pessoas feridas de ambos os lados que muito tarde entenderam a brutalidade daquele massacre mútuo. Com emplastros de ervas, curaram as feridas e juraram uma convivência pacífica. Os que sabiam escrever alguma coisa, procuraram reproduzir os fatos como se fosse um diário de bordo na línguagem rústica que lhes era peculiar. Quase nada se perdeu. Nossos avós, em respeito à solidariedade pós batalha, decidiram criar a Comissão Piquenique que atua ano após ano, há mais de um século. Quanto ao cacique, os escritos revelam que seu último sono foi repousado na raiz da castanheira que lhe servira de travesseiro para o descanso, quando em vida. A moça sobreviveu ao massacre e casou-se depois de muita relutância com um jovem guerreiro que tomou-a sob sua guarda. Conta-se a boca miúda entre os poucos descendentes dessa raça de bravos que ela ao morrer repassou um enorme segredo que o cacique lhe confiara nos momentos finais, mas jamais alguém conseguiu arrancar uma só palavra de nenhum deles. Dizem até que tentaram embriagar um deles para obter a verdade, mas falou mais alto a lealdade da raça e o segredo permanece.
_ Qual a sua opinião a respeito desse segredo?
_ Os escritos nada dizem. Talvez seja algo que tenha passado despercebido.
_ Haverá alguma ligação desse segredo com o caso dos delegados?
_ Tudo pode ser possível. Conta-se que o Euclides pouco antes de morrer andava pelas ruas com ar preocupado de quem sabia algum segredo...
_ Quantas pessoas notaram essa preocupação?
_ Bem! Creio que uma, apenas...
_ Você?!...
_ Sim! Eu! Nós tínhamos uma saudação de "sarava", quando nos víamos, desde o dia que visitamos um candomblé para comer caruru. Naquele dia ele entrou na farmácia do meu pai procurando remédio para dor de cabeça. Desprezei a falta da saudação e brinquei, perguntando se era para dor de cabeça ou para nervoso. Ele não respondeu e saiu como se lembrasse de algo inadiável. Ainda não eram dez horas, quando foi dado o alarme da sua morte. Ninguém ouviu os tiros, em pleno centro da cidade.
_ Você comentou com alguém essa observação?
_ Apenas com meu pai, no outro dia, que me aconselhou a silenciar para evitar envolvimentos de testemunho. Afinal, eu não sabia de nada, mesmo.
_ Na sua opinião, o que o Euclides descobriu de tão grave, para ser morto?
_ É difícil dizer. Muitas coisas podem acontecer numa cidade por menor que seja, desde uma insignificante leviandade conjugal ao mais intrincado dos casos de espionagem industrial ou internacional.
_ Você considera a infidelidade conjugal insignificante?
_ Pra isto, existe o divórcio!...
_ O que você entende de espionagem industrial ou internacional?
_ Apenas o que vejo nos filmes, leio nos livros e jornais e o noticiário da televisão. Transporto-me mentalmente ao cenário, não do vídeo, mas dos bastidores. Quando o fato é noticiado, muitas coisas antecederam a ele e é a elas que procuro dedicar minha atenção. Como, o quê, quem, onde, quando, por quê, etc., enveredando-me por este caminho até discernir o raciocínio ou perder-me no labirinto. Daí, dou com a varinha mágica e acordo para a realidade. Pena que com o Euclides e os outros a realidade tenha sido um bocado rude, mas creio sim, que pelos bastidores pode-se chegar ao palco, mas indo diretamente ao palco, jamais chegaremos aos bastidores, pois os seguranças estão lá para impedir.
_ Nesta... viagem, o que você tem encontrado sobre os delegados?
_ O ser humano é muito prático, muito tecnocrata, e em tais circunstâncias age com presteza. Morto o Euclides, em menos de uma semana lá estava o Epaminondas pronto para o serviço. Comedido nas suas atitudes, iniciou a função instaurando o inquérito da morte do antecessor intimando as pessoas que encontraram o cadáver, pobres coitados que de nada sabiam. O Lourenço apresentou-se dizendo que trocara palavras de boa noite com ele às nove e quarenta e cinco, entrara em casa e antes das dez dava-se o alarma. Euclides baleado na praça da Bandeira, cujos projéteis poderiam ter vindo da igreja, da delegacia, da prefeitura, de qualquer lugar, conforme o ângulo da posição do atirador.
_ Que quer dizer com ângulo?
_ Se Lourenço entrou em casa e ele foi baleado na praça, quer dizer que o atirador o esperava de frente. Como eu não vi o laudo, não sei em que posição recebeu os tiros nem como as balas penetraram, nem tampouco para onde se diri gia. Se ele passou na casa do Lourenço, então vinha de casa ou imediações.
_ Ele comentou com alguém a causa das suas preocupações?
_ Ninguém, que eu saiba, ao menos de leve mencionou...
_ O que aconteceu depois?
_ Aparentemente, rotina normal. O Epaminondas chegava às oito e saia às doze, voltava às quatorze e saia às dezoito, mas solucionar o caso, nada. Supúnhamos fosse inexperiência, quando inesperadamente, por volta dos dois meses, pediu afastamento em caráter irrevogável, tomando a comunidade de surpresa. Quando foi questionado, acusou excesso de trabalho e que estava cansado, precisando repousar. Aceitas as explicações, foi substituído pelo Baltazar que deu os mesmos passos, demorou o mesmo período e pediu afastamento, queixando-se do mesmo mal e a coisa virou brincadeira para o povo, depois que o Enoque fez as mesmas coisas seguido do Godofredo e do Miravaldo. Todo mundo dizia que os pedidos de afastamento eram causados pela incapacidade de resolver a morte do Euclides. Com a saída do Miro, quando se preparavam para arranjar outro substituto, o Epaminondas não resistiu e se abriu com o Fulgêncio dizendo que recebera um telefonema mandando ficar calado, receber os proventos e fechar os olhos e os ouvidos. Indignado, o Fulgêncio abriu o berreiro, contando a todo mundo e se apresentando como voluntário para ser delegado. Resultado, Epaminondas morreu com a laranjada e Fulgêncio recebeu um telefonema controvertido durante a madrugada, saiu de casa e foi baleado à porta para ser encontrado de manhã pelo entregador de pães, ficando a cidade em pânico, sem saber quem dá os telefonemas, quem é o atirador misterioso, por que Epaminondas morreu e qual a causa de todo esse mistério, se não temos nada de especial a não ser o segredo que o cacique, dizem, deixou com a filha, antes de dar o último suspiro.
_ Disseram no piquenique que gostariam de ver você na pele do novo delegado. O que decidiria no caso de ser convidado?
_ Muita responsabilidade, cedo pra viajar, incapacidade pra dirigir um inquérito, honesto comigo e com o meu pai pra me deixar influenciar pela chantagem e vontade de cumprir as tarefas a mim confiadas. Obrigado, Excelência, pelo convite, mas não aceito.
_ Quando e como descobriu quem sou eu?
_ Não foi difícil. Passei a observar as pessoas, tentando encontrar um gesto, uma palavra, um olhar que parecesse suspeito, depois que vi o Euclides daquela maneira. Hoje, só o senhor era estranho. As outras pessoas tinham as mesmas caras, os mesmos defeitos e virtudes, os mesmos sentimentos, as mesmas palavras sábias ou idiotas... apenas o senhor, como um elefante na panela de um formigueiro. Roupas comuns, bigodes, chapéu, barba por fazer... ilusão? Conversou com Malaquias e Dominício, pegou o prato e o refrigerante, aproximou-se do grupo que fofocava a vida dos outros: poltrões! circulou, jogou bola, cumprimentou um e outro, brincou com criança e pegou o violão, me desafiando para o som. Comparei a fisionomia com a dos jornais, televisão e cartazes... inconfundível!... Tenho orgulho de ter votado no senhor. Não poderia ter feito melhor escolha.
_ Uma coisa, só por prudência. Vamos manter a minha identidade em sigilo. Você não aceita, tudo bem, mas peço pra indicar um delegado que seja de acordo com as pretensões do assassino, covarde, corrupto, bajulador e língua solta.
_ Um só? Temos uma manada!...
_ Não, obrigado! Pra mim, um já é demais. Com fome?
_ Puxa! Quase me esqueço do jantar!...
_ Hoje só falaremos de música. A propósito, eu disse que estou procurando terra pra comprar, mas tem muito fantasma e fiquei com medo.
_ OK! Qualquer um pode parecer um governador ou um presidente, sem ser... Por falar nisso, como o senhor se parece com o nosso governador!...
_ É!... Já me disseram isso outras vezes!...
* * * * *
_ Quanto a espionagem, você acredita que aqui possa ter algo tão vultoso?
_ Ao ponto de envolver dólares ou rublos? Os satélites americanos e russos sabem primeiro que nós o que se esconde debaixo das nossas próprias camas. Numa época em que a tecnologia da informática ou espacial falam mais alto, não se pode duvidar de nada!
_ Acho que vale a pena pensar nisso com seriedade. Pensando melhor durante a noite, concluí que o melhor é você assumir e travestir-se do pusilânime que tacham. Um título a mais ou a menos não vai fazer diferença. O que vale na verdade são os objetivos, não importando os meios para atingi-los. Não responda agora. Dentro de dois dias, tempo de sobra pra decidir e fazer circular o boato de que você deve ser indicado, aguardo seu telefonema neste número. Basta dizer seu nome que estará sendo aguardado. Vou acertar a conta e dar um toque de leve no recepcionista, sugerindo a sua nomeação. Se ninguém quer o cargo, melhor, porque não tem concorrente.
_ Há momentos que por mais que um homem tente se esquivar, sente que não pode mais ser omisso, ainda mais quando se defronta com homens de peso cuja preocupação maior é o bem estar comum, a justiça e a segurança social. Prometo, Excelência, que farei todo o possível pra não decepcionar a confiança que o senhor está depositando em mim. ? E, enfático: Mesmo que tenha de me arrastar aos pés desses miseráveis, ou eu os entregarei de pés e mãos amarrados ou eles me pegarão primeiro, mas prometo que não vou fugir do compromisso.
_ Sei disso, rapaz! Sei disso! Lamento sinceramente ter de envolver você nessa sujeira. Seu lugar é no palco com uma guitarra, mas infelizmente não temos mais ninguém à altura que possa competir com a seriedade que o caso requer. Três assassinatos são muito para um assunto que não esconda algo de muito vultoso e terrível por trás.



Autor: Raul Santos


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