A Maldição da Lenda - Conjecturas, Confidências e Arrumações







CAPÍTULO SEIS
Conjecturas, Confidências e Arrumações

Alberto reuniu a rapaziada do som para mostrar as reformas da guitarra. O instrumento tinha ficado novinho em folha. Curioso, o Marquinhos perguntou o que ele pretendia fazer no cargo de delegado, e ele respondeu:
_ Sabe que ainda não sei? Não pedi pra ser delegado e me colocaram ali porque quiseram. Se aparecer alguma bronca e eu puder, eu resolvo, se não puder, quem pariu Mateus que embalance. Eu é que não vou arriscar minha cabeça por um povo que não tem coragem para nada. Não sei quem foi o engraçadinho que indicou o meu nome, mas se eu descobrir, vou perguntar por que não indicou o nome da mãe dele pra vaga.
_ E sobre a morte do Euclides, o que vai fazer? Vocês eram amigos. Vai deixar por isto mesmo ou vai tomar providências?
_ Se os outros nada fizeram, eu é que não vou mexer em casa de marimbondo, pode dizer isso. Se tiver outro pra vaga, que se candidate num dia pra tomar posse no outro, pois já vou estar me mandando, que eu não sou otário.
_ E o telefonema do pato, você já recebeu?
_ Que pato, que nada, rapaz, até agora, nem sinal de pato nem nada. Acho até que foi invenção do Epaminondas pra deixar de ser delegado.
_ Mas ele morreu!?...
_ Tomando suco, na sua própria casa! O que isso prova?
_ Mas o Fulgêncio, não morreu também?...
_ Olha só, o Epaminondas abriu o bico e morreu, envenenado ou não, ninguém sabe. O Fulgêncio, usando a história do Epaminondas, quis dar uma de machão e assanhou a casa de marimbondos. Resultado, bim! bim! chumbo na asa e adeus. Vou lá me meter com o que não conheço? ? E, feriu com força as cordas da guitarra, convidando ao som e dando o assunto por encerrado.
Mais tarde, em casa, trocou impressões com Agnelo:
_ Papai, o senhor nunca ouviu falar de nada que justificasse essas mortes?
_ Não, filho! Nestes anos que tenho vivido em Serra Dourada, nunca ouvi nenhum comentário que fugisse à rotina do cotidiano. É verdade que temos tido atos de violência, verdadeiros vandalismos, como o Zé Marques e o Amâncio que mataram o Nenê Peão e o Dominguinhos e falsificaram os documentos pra tomar as fazendas, mataram o Glostora, bêbado, pra tomar aquela micharia de dinheiro que ele ganhou deles no jogo, tivemos assassinatos por questões políticas, ciúme de mulher e coisas semelhantes, mas um caso como este de morrerem três delegados e quatro se afastarem, sem motivo aparente, não! Este caso por aqui é único e inédito. Se você quer levar adiante, meu filho, acho que vai ter muito trabalho pra descobrir. O melhor mesmo seria desistir enquanto é tempo, pois não se sabe o que há por baixo desse angu.
_ O senhor não está falando sério, não é, papai? Logo o senhor?!...
_ É, filho, alguém tem de assumir. Vá fundo, meu filho, e boa sorte!...
_ Só uma coisa, papai, por favor, não conte a ninguém nada, mas nada mesmo, das nossas conversas, OK? Preciso ter um confidente da mais absoluta confiança e não há nesta cidade ninguém mais indicado do que o meu próprio pai. Quando falei a respeito da estranheza do Euclides, o senhor me recomendou sigilo pra evitar problemas, agora sou eu quem pede pra evitar problemas incalculavelmente maiores do que os daquela época. Pode crer, meu pai, que não é o cargo de delegado que está me subindo à cabeça. Eu daria, neste momento, mil agradecimentos a quem me livrasse desta responsabilidade que caminha a passos largos para a catástrofe e tenho de suportá-la como homem, mas sozinho não vou conseguir levar adiante. Preciso de um confidente que saiba guardar segredos, de um bom ouvinte que possa colher o máximo de informações através da opinião pública e, acima de tudo, de um conselheiro que me dê diretrizes e repito, ninguém melhor do que o meu pai pra assumir tal posição, estou certo?
_ Filho, você já pensou bem no que está me pedindo?
_ Sim, papai! Pensei tanto que o senhor nem imagina o quanto, mas só vou poder adiantar qualquer coisa quando tiver certeza de que vou poder confiar no sigilo do senhor. Não é desconfiança da integridade moral do homem, que sei muito bem ser bem maior do que a minha, mas é a implicação que o caso exige. Em poucas palavras, digamos que seja o resultado de algumas investigações que já realizei e são tão comprometedoras que não podem ser ditas nem ao padre em confissão, entendeu, papai? ? Exagerou o rapaz.
_ Sim, filho! Meu primeiro impulso é arrancar você disso debaixo de palmadas, mas lembro de que meu filho já é um homem de vinte e dois anos e faz parte da sociedade de Serra Dourada. Desculpe, filho, se não o vi crescer, mas na verdade o que mais gostaria de ver neste momento era você em fraldinhas com uma mamadeira na boca e um chocalho ao invés de um revólver na mão, prestes a matar ou morrer. Desculpe mais uma vez, mas preciso consultar meu travesseiro esta noite pra tomar a decisão mais acertada, se é que vou conseguir. Sei, na verdade, que a única coisa que vou conseguir é ver a noite passar sem pregar os olhos, mas seja o que Deus quiser!...
_ Obrigado, papai! Eu sabia que podia contar com o senhor. Sozinho, sei que não conseguiria dar mais que dois passos sem cair na rede desse maluco, pois ele já provou que é bastante astuto. Em um ano já matou três delegados, escorraçou quatro e nem ao menos sabemos o motivo que o leva a agir dessa maneira. Se ao menos ele se traísse!...
_ Uma coisa só, filho, você já recebeu o telefonema do tal pato?
_ O senhor faz mesmo questão de discutir isso hoje, ou quer deixar pra amanhã, quando já tivermos colocado os nossos pensamentos em ordem? Desculpe, papai, mas acho que falar disso hoje tem uma certa dose de precipitação!...
_ Como quiser, filho. Eu não sei o que está ocorrendo e se você faz tanto mistério, acho que devo me acautelar, fechar o bico e aguardar o que vem dessa cabecinha-de-vento que nunca toma juízo.
_ Papai, você não existe!...
_ Então, pára de falar sozinho, se eu não existo!...
_ Se o senhor não existe, de onde eu vim, então?...
_ Boa noite, filho!... ? Disse Agnelo, beijando a fronte do rapaz, que permaneceu sentado, tentando coordenar as idéias para o dia seguinte.
_ Boa noite, papai. Bom sono!...
* * * * *
Enquanto Alberto conversava com o pai, Bonifácio distribuía os serviços para o dia seguinte, no acampamento da ENGETEC:
_ Recebi correspondência do Rio, mandando agilizar o serviço e vocês sabem que o chefe é intransigente quando se trata de cumprir contratos.
_ E como vai ficar o caso da castanheira, Boni?
_ Ele telefonou na semana passada, perguntando como estão as coisas e disse para a gente não se meter pois tem envolvimento com o pessoal do IBAMA e da Defesa Ecológica, e coisa e tal. Eu por mim, vou aguardar as ordens do alto. Não quero saber de perder um emprego que me dá bons rendimentos com todos estes anos de serviço, além da família que formamos!...
_ O aterro está quase terminado, faltando só a parte do concreto. As máquinas vão permanecer aqui ou vão ser mandadas de volta para o Rio?
_ Vou ligar pro Dr. Carlos e ver o que decidiram. Ele disse pra gente ficar quieto quanto ao caso da castanheira, mas agora, ou eles decidem se fazem a irrigação ou não. Do contrário, a gente vai ficar de braços cruzados, vendo o tempo passar, o que não é do meu feitio. Peão desocupado e faturando só arranja encrenca, tomando pinga.
_ Temos delegado novo. É bom ele ir treinando pra enfrentar o matador, se é que tem coragem e não vai meter o rabo entre as pernas, como os outros.
_ Eu contei ao chefe ? disse Boni ? porque se não, quando estourasse a bronca, ele ia montar nas minhas costas. Ele não deu opinião e só recomendou a gente ficar com o problema da castanheira que não é para ser derrubada.
_ Como foi que começou esse caso, Boni, você que está assim com os homens?
_ Assim com os homens, não sei, mas começou quando o prefeito tomou posse e lançou o Projeto, pra aproveitar a água do Córrego Dourado e fazer uma barragem pro abastecimento da cidade e irrigar uma horta comunitária e um pomar, pra acabar com a fome. Diz que vai fazer um criatório de cabras pra dar leite às criancinhas desnutridas. Um problema, é que pra fazer isso tem de canalizar a água por onde está a castanheira. E aí começa. No passado, alguém foi ao Ministério da Agricultura e requereu o subsolo da área. Daí, num raio de cem metros pra qualquer lado e vinte pra baixo da árvore, ninguém pode tocar. Estou contando em caráter profissional e particular. O pessoal da cidade não pode saber. Pensem do que serão capazes? Vai ser a maior polêmica, uns contra derrubar a castanheira e outros a favor da horta e do pomar. A Prefeitura contratou a ENGETEC pra os dois serviços, mas só vamos iniciar o segundo depois que o Dr. Carlos autorizar. Ele disse que a Assessoria Jurídica está cuidando do caso e tem de esperar o resultado.
_ E como descobriram, se o pessoal da cidade não tem conhecimento?
_ Simples. O homem está com oitenta anos e bem lúcido. Tem acesso na Prefeitura e na Câmara e quando soube do projeto, bastou um ofício e pronto, a ENGETEC recebeu a notificação de não dar início às obras, sob pena de ter a licença cassada. Eu sei é que o Dr. Carlos está ficando careca e de cabelos brancos de tanta preocupação, quer dizer, medo de alguém meter a motosserra na árvore e a culpa ficar nas nossas costas.
_ Que bronca, né, compadre?...
_ É! Agora vamos ao que interessa. Roberto cuida do aterro. Use as máquinas disponíveis, pra terminar esta semana. Paulinho cuida da tubulação. Confira os tubos e as conexões. Rivaldo, o almoxarifado está em ordem?
_ Claro! Antes de me arranjarem o fichário KARDEX aquilo era um inferno, mas agora posso achar uma agulha na maior escuridão.
_ Qualquer dia desses vou colocar um D8 lá dentro, para ver se você acha.
_ Valendo uma dúzia de geladinhas?
_ E a sorte?!... Carvalho, verifique o cimento e a ferragem, quero tudo na contagem certa, pra dar a posição aos homens lá de cima.
_ Boni, que diabo de caixão de ferro é aquele que assentaram naquele buraco que cavamos no leito do rio? É segredo, ou você pode nos explicar?
_ Segundo os entendidos, é pra filtrar a água e não deixar passar sujeira. Trocando em miúdos, ela vai funcionar como uma espécie de tanque subterrâneo. Em épocas normais, as válvulas ficarão abertas ou fechadas, conforme a conveniência, porém, em tempos de chuva, aquele caixão é dotado de vários compartimentos semelhantes a uma casa, só que o morador, ou melhor, a moradora será a água. Quando estiver chovendo ela entrará em um dos compartimentos que repassará a outro através de filtros especiais, os quais terão manutenção diária pra retirar o barro retido, e assim, de um compartimento a outro, quando a água subir pra a caixa, estará tão limpa que ninguém perceberá se é tempo de sol ou de chuva, além do combate à verminose.
_ E tudo isso foi idéia do prefeito ou tem mais alguém por trás disso? Porque, se forem só dele essas idéias, era pra ele estar na Presidência da República, e não numa prefeiturazinha do interior, como esta!...
_ Dizem que ele está muito bem assessorado. Parece que contratou gente grande de fora. Veja há quanto tempo a ENGETEC está cuidando disso. O Secretário de Obras é um engenheiro da mais alta capacidade. Já viram como ele chega aqui? Examina detalhe por detalhe os serviços sem deixar escapar um sequer. O homem parece ter olhos de raios-X. É boca fechada e olhos abertos.
_ E você já foi lá dentro depois de pronta?
_ De vez em quando ele me chama pra olhar. Aparentemente, não tem nada de especial. Muitas válvulas, comportas, tubulação, etc. A coisa é tão perfeita que lá debaixo d?água a gente fica mais seca do que em cima. Aqui, se chover, a gente se molha, mas lá embaixo a gente nem percebe que está chovendo.
_ E como é que a gente entra sem se molhar?
_ É por aquela casinha na beira do rio. A gente desce por uma escadinha e já está lá embaixo como se fosse num submarino.
_ Será que eu podia dar uma espiadinha, também?
_ Se você pedir, talvez ele deixe!...
_ Não! Deixa pra lá!... Acabo de perder a vontade!...
* * * * *
Alberto não teve necessidade do despertador para acordar. Encontrou Agnelo com o jornal e uma xícara de chá de canela, na poltrona favorita, hábito que cultivava desde o falecimento da esposa, a cuja memória guardava na recordação, o que acentuava o amor do filho e os fazia mais amigos.
_ Bom dia, papai, dormiu bem?
_ Oh, filho, bom dia, dormi otimamente bem. Até com os anjos sonhei!
_ Que felizardo!... Papai, vire o jornal, a menos que o senhor esteja relendo, pois está de cabeça para baixo.
_ Ah, filho, é uma pintura que não entendi e virei pra ver se entendia!...
_ Sei! Sei! Papai, quantas horas o senhor dormiu durante a noite?
_ Bem, filho, você sabe que o que tenho de discreto, tenho de curioso, não é? Então não poderia ter dormido tão bem!...
_ Não, papai, o senhor não é curioso! O senhor está é muito preocupado com a minha situação. OK, papai, vou me arrumar e num minuto voltarei pra a gente conversar. Tenho noventa minutos inteirnhos pro senhor. Não vou me dar ao luxo de chegar atrasado, pra não dar o que pensar a certas pessoas por aí!...
* * * * *
Quinze minutos, e estava narrando desde a preocupação do Euclides, a declaração do Lourenço, o encontro com o governador, a nomeação, o telefonema do pato, a viagem à capital, o laudo pericial, as suspeitas que tinha do prefeito, a desconfiança de um caso de espionagem ou de uma jazida em Serra Dourada, deixando para falar da ameaça no final, propositadamente, para acentuar a cautela que deveriam ter em fazer segredo e não esquecer que a qualquer instante a farmácia poderia ir pelos ares ou coisa pior.
Depois de ouvir atentamente, Agnelo fitou longamente o filho e disse:
_ Me sinto bem melhor, meu filho! Eu sabia que você era um homem, em matéria de caráter, mas achava que fosse um cabeça oca que só queria tocar guitarra e brincar. Mas você há de convir que preciso digerir essa história que acaba de me empurrar goela abaixo, não é? Então, que tal falarmos ao meio-dia, quando eu tiver formado uma opinião? Quanto ao sigilo, fique tranqüilo. A farmácia, o seguro dá outra, mas o filho, quem me deu não vai mais poder dar e tenho de zelar por ele acima de qualquer coisa. ? Concluiu, com uma lágrima teimosa a bailar no olho, que terminou por escorrer pela face e foi enxugada ternamente pelo rapaz com o lenço, que beijou o local e disse, com voz entrecortada:
_ Obrigado, papai! ? E saiu para a delegacia, respirando fundo.





Autor: Raul Santos


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