A Maldição da Lenda - Pesadelos e Balas Vindas do Nada







CAPÍTULO NOVE
Pesadelos e Balas Vindas do Nada
Alberto quase não conciliou o sono. Sempre que fechava os olhos, apareciam as visões mais esquisitas. Máquinas que não identificava, homens cavando e carregando, navios e caminhões, porém, quase tangível, era o escafandrista, chegando em determinado momento parecer-lhe vê-lo à porta do quarto. Sentou-se na cama de um salto e ao perceber o delírio, sorriu, virou-se para o canto e dormiu até as seis. Quando levantou, encontrou Agnelo a se barbear.
_ Bom dia, papai! Dormiu bem?
_ Oi, filho, um pouco de insônia, mas tirei um bom cochilo. Dormiu bem?
_ Na verdade, papai, minha noite não foi das melhores. Muitas visões desconexas, mas que me deram uma certa diretriz pra hoje. ? Ia começar a falar mas lembrou do microfone, apontou o quadro e disse: Vou tomar banho!...
_ Não demore pro café!...
_ É pra já, doutor!...
Durante o café, Agnelo perguntou quais os projetos para a manhã, sabendo que não seria dita a verdade. Cuidadosamente, Alberto apontou o quadro e disse:
_ Sabe, papai, esse negócio de ficar fazendo papel de bobo não está me agradando. Acho que vou conversar com o prefeito e colocar o cargo à disposição. Não estou mais ligando pra os estudos, estava quase noivo e não ligo pra a namorada, nunca mais pisei na farmácia. Em resumo, minha vida está toda desorganizada. Dentro de algumas semanas será o vestibular e tenho de voltar aos estudos. A propósito, acabo de lembrar ? disse, piscando um olho ? que tenho um trabalho de Química pra fazer, quer dizer, não é bem de Química, é de Geologia, mas envolve reações de silicatos e vou procurar o engenheiro da ENGETEC pra ver se ele me dá alguma dica. Vê que eu já tinha esquecido e era para entregar no dia que os professores entraram de greve no cursinho. De certo modo foi até bom pois tenho tempo e campo pra pesquisar.
Na delegacia, espanou a mesa, arrumou alguns papéis, verificou a correspondência que era quase nenhuma e preparou-se para ir à barragem, quando o telefone tocou. Tentou adivinhar quem poderia ser mas surpreendeu-se ao ouvir mais uma vez a voz do Pato:
_ Escuta aqui, otário, vê se faz o que eu mando. Tu só vai deixar isso aí quando eu quiser, se não a espelunca do teu pai vira churrasquinho, tá sabendo?
Quando tentou dizer alguma coisa ouviu o som intermitente do aparelho. Impossibilitado de falar, tentou ligar os fatos mas achou muito pouca coisa para alguma conclusão. Sentou-se, tentando descobrir o que lhe martelava a mente mas obstinadamente o cérebro se recusava a fornecer a informação desejada. Tentou não pensar e descobriu que não podia, que se encontrava por demais envolvido no processo e se não se integrasse ficaria como o aro do barril: por fora, sendo o fator segurança e desconhecendo o conteúdo. Envergonhado, prometeu a si próprio que não abandonaria o caso até descobrir os culpados ou uma bala o estendesse no solo. Voltou à carga, e quanto mais tentava se envolver no raciocínio mais se sentia impotente, como se uma parte importante do seu EU houvesse fugido para longe, aumentando-lhe ainda mais a angústia e arrancando grossas gotas de suor da testa, frontes, axilas e costas, molhando a camisa e permaneceu naquela posição por mais de uma hora, sem nada lograr de êxito.
Levantou, cambaleante, com a premente necessidade de algo que não conseguia definir. Mecanicamente, disse ao policial que ia sair, e foi para casa.
Como um autômato, apanhou a guitarra, foi para o quintal e sentou-se num galho do abacateiro que crescera na horizontal e lhe permitia sentar para tocar. À medida que feria as cordas do instrumento, percebia que a mente se aclarava e entendeu que sua capacidade dedutiva era inspirada pela música e recordou o que dissera ao governador: "É como desvendar os segredos incomensuráveis do Universo nos álbuns de figurinhas!". Diacho, então era isso! Ele desvendava tudo e sabia de tudo porque na verdade sempre fora um filhinho do papai e nunca se interessara por nada que dissesse respeito aos seus semelhantes, nunca tivera responsabilidade direta com o trabalho duro e agora estava enterrado naquele poço cheio de merda e ainda ameaçavam jogar seu pai, seu amado pai lá dentro e ele precisava de provas, de muitas provas, e iria conseguir, nem que tivesse de entrar naquela caixa de ferro ou fosse lá o que fosse.
Enquanto refletia, o rapaz não percebeu que atacava a guitarra num ritmo frenético que só não arrebentava as cordas pela perícia no manuseio. Descobriu porque não atinava com a realidade. A música era terapêutica ao seu sistema nervoso. Ele se acalmava e conseguia raciocinar com a lucidez de um erudito. Ele praticamente via os fatos, mas não via como levantar as provas e não podia arriscar a farmácia e muito menos a vida do seu pai. Sim! Precisava urgentemente dar um basta naquele estado de coisas. Teria de levantar as provas ou não mais se chamaria Alberto. À medida que se acalmava, suavizava também o ritmo da melodia, terminando por tocar baladas tão suaves que deleitavam os ouvidos da vizinhança, arrancando os mais diversos comentários.
Durante a reflexão, começou a sentir o mal estar que sentira na delegacia, mas procurou concentrar-se na música, ficando envolvido num misto de sonho e realidade, como à noite. No pensamento de ir à barragem, deixou-se envolver pela música, com o intuito de acalmar-se, quando, de repente, saltou do galho e ouviu atrás de si um ruído inusitado na casca do galho. Olhou, ainda abaixado, e viu a casca ser arrancada pelo nada, bem às suas costas. Percebeu, num relance o que acontecia e rolou pelo chão. Soltou a guitarra e ocultou-se atrás do abacateiro. Observando ao redor, tentou localizar o atirador, sabendo de antemão que não ouviria nenhum tiro pois a arma usada devia estar munida de silenciador. Esperou imóvel por alguns segundos, mas só ouviu o barulho de uns poucos carros que passavam e um ronco mais forte que parecia ser de um caminhão ou trator. Deu pouca importância e, percebendo que o astuto atirador àquela hora da manhã não poderia se dar ao luxo de atacar um delegado e permanecer muito tempo no local e ser descoberto, arriscou-se um pouco e vendo que o caminho estava livre, apanhou a guitarra e correu a toda velocidade para dentro de casa, guardou o instrumento e, desprezando todas as leis de segurança própria, correu à prefeitura. Entrou no prédio, mas sentiu-se frustrado ao passar pela Secretaria de Obras, pois o Dr. Charles Burnier estava de costas e ele não conseguiu avaliar o impacto da surpresa. Caminhou resoluto para a Tesouraria, fechou a porta atrás de si e colocou o indicador nos lábios logo que foi visto, para não denunciar sua presença. Fez outro gesto com o dedo frente à boca, como a dizer que tinha urgência para falar. Com o instinto da astúcia despertado, Agnelo foi à porta de maneira displicente e não notando ninguém no corredor, foi à sala vizinha e recomendou:
_ Se alguém me procurar, fui tomar um cafezinho em frente!
Saíram rapidamente para não serem notados e entraram no bar.
_ O que aconteceu, filho? Por que tanto mistério?
_ A coisa esquentou, papai! Não vá se assustar porque estou desmaiando!...
_ Não brinca, filho! Quer logo falar o que é?
_ OK, mas é que o assunto é muito grave. Como falei, não vá se assustar, hein? Disfarça, faz qualquer coisa, mas pelo amor de Deus, não escandaliza!
_ Tá! Tá! Mas conta logo o que é?!...
_ Tá bom! É simples. Eu tava tocando no abacateiro, quando lembrei de uma coisa. Pulei no chão para vir falar com o senhor e Tcheck!, ouvi a casca ser arrancada. Me escondi conforme o ângulo em que se encontrava o atirador, aguardei um pouco e, nada. Curioso é que os tiros pareciam vir do telhado, mas não vi ninguém descendo.
No fim do relato, estava vivamente preocupado com a fisionomia do pai que, nos seus cinqüenta e poucos anos jamais se envolvera em qualquer tipo de violência, tendo-lhe passado os conceitos de caridade, fraternidade, justiça, perdão e amor e estavam no meio de um fogo cruzado, sem ao menos saber de onde vinha, como ou quem era o atirador. Engoliu em seco e como já tinha começado, era imperativo continuar.
_ Lembra que falei em deixar o cargo e pedir ao prefeito pra me substituir? Pois é! Foi pretexto pra não dar com os burros n?água. Ou o que eu falei aborreceu o patinho ou eles ouviram as conversas de ontem. Certo é que ele telefonou, dizendo que eu não vou sair e vou fazer o que ele quer e não o que eu quero, ou a farmácia que ele chamou de espelunca vai virar churrasquinho. Quando vim da capital, falei pro Marquinhos que estava à disposição e eu queria saber quem me indicou pra perguntar por que não deu o nome da mãe. Eu tô careca de saber que quem indicou foi o governador. Quanto ao atentado, não sei também se ouviram a conversa de ontem ou se foi a de hoje. O certo é que eles têm recursos pra atacar à luz do dia e longe da prefeitura. Agora foi que a coisa arrochou. Acho que vou é fugir de Serra Dourada. Não quer vir comigo, papai?!...
_ Pára de brincar, filho!... Você ainda não atinou pra gravidade do caso? Eles querem acabar com a sua vida e você parecendo que vai pra uma festa!?...
_ Mas eu não sei raciocinar de outra maneira. Depois do almoço, eu quase fiquei maluco de tanto querer pensar feito gente grande. Deu foi uma suadeira dos diabos que vou ter de tomar banho. Foi só pegar a guitarra e as coisas clarearam. Se não fosse o bang-bang, eu estaria na barragem, que é pra onde pretendo ir, só que não vou sozinho. Fiz amizade com o Falcão que parece ser de confiança, gosta de música e foi com a minha cara. Vou dar uma dica da pesquisa e indiretamente advertir do risco que vai correr. Dois delegados mortos no exercício e um depois que saiu... Ele é inteligente e vai entender o que terá de fazer!...
_ Agora, sim, meu filho, estou falando com uma pessoa de juízo. Não quero ver você sair estirado num caixão tão cedo. A dor da perda de sua mãe ainda é muito grande. ? Disse, com uma lágrima teimosa a bailar no canto do olho.
_ Ela está olhando por nós, papai!... ? Disfarçou a voz para tentar quebrar a emoção do momento.


Autor: Raul Santos


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