A Maldição da Lenda - Dois Coelhos de Uma Só Cajadada e o Médico Arranca Lágrimas Do Delegado







CAPÍTULO VINTE E CINCO
Dois Coelhos de Uma Só Cajadada e
o Médico Arranca Lágrimas Do Delegado

Menos de duas horas da tensa expectativa que pareceram séculos, as respirações mal contidas a todo movimento fora do normal, excitavam as suprarrenais e aumentavam a sobrecarga de adrenalina nos sistemas nervosos. Era o vento numa janela, um animal pastando, um cachorro atrás de um gato, um casal em busca de intimidades mais discretas, até que as suspeitas se confirmaram. Nenhuma dúvida... Alguém batera discretamente em uma janela, e era indubitavelmente a do quarto em que se encontrava o suspeito. Alguns segundos, e o ruído da janela sendo aberta e fechada dois ou três segundos depois, passos furtivos... A porta do quarto sendo aberta... Passos no corredor... A porta do quarto que o médico indicara sendo aberta e os três rápidos e silenciosos flashes, diferentes da máquina fotográfica, envermelharam o recinto, seguidos do intenso clarão que iluminou o quarto e denunciou o atirador ainda com o rifle apontado para a cama com as almofadas à guisa de moribundo, e a voz firme que ordenou, às suas costas:
_ Largue a arma e levante as mãos!...
Rápido como um raio, o marginal virou-se e disparou, mas o projétil foi cravar-se na parede do corredor. Prevendo o gesto, Alberto se abaixara e, da cama vizinha, de revólver em punho, Falcão gritou, às costas do assassino:
_ Solta a arma, senão atiro!...
Tarde demais, o bandido percebeu o logro de que fora vítima. Carregou o cenho, olhou para o rapaz com ódio mortal, vacilou, olhou por sobre o ombro e viu a expressão firme do soldado apontando a arma. Voltou-se para a porta e foi novamente surpreendido pelos dois soldados que entraram atrás de Alberto e outro sentado na cama do outro lado, sorridente e também apontando um revólver. Desmoralizado, baixou lentamente as mãos até cair o rifle e ergueu as mãos. Alberto ordenou que se virasse de costas e pegou a arma pelo cano, um moderníssimo rifle munido de silenciador, e perguntou:
_ Foi com este que você matou Euclides e Fulgêncio?
_ Não fui eu!... ? Foi a resposta lacônica e seca.
Dono da situação, Alberto ordenou que o algemassem.
_ Vou ver se os dois lá de fora estão precisando de ajuda!...
O bandido percebeu o logro e soltou um palavrão que faria enrubescer uma manada de vigários pedófilos.
Sem ligar, Alberto deu a volta ao prédio e encontrou os soldados no posto em que deixara. Eles apontaram um vulto sob um arbusto próximo de uma janela. Entendeu que o vagabundo esperava a devolução do rifle, e falou em voz alta:
_ O de lá de dentro já está preso!... Agora, esse daí!...
Como impulsionado por uma mola, o bandido despregou-se em tal carreira que surpreendeu os soldados, mas não Alberto que esperava algo semelhante, e disse em tom de mofa:
_ Vamos ver quem corre mais?... Quero ver pra onde esse moço vai levar a gente!... ? E desatou a correr, com os soldados no seu encalço.
Bom atleta, dos melhores no futebol de Serra Dourada, entrava e saía das ruas, sem perder de vista. O objetivo era descobrir o esconderijo, e mantinha distância. Sabia que seria o rio, mas queria ter certeza. A preocupação era a resistência dos soldados que tinham pouco menos que o dobro da sua idade. Comprovou que estavam indo para o rio e acelerou a corrida deixando de ouvir a respiração ofegante dos militares. Alcançou o meliante e gritou:
_ Pare, senão, atiro!...
Como se despregara na carreira, o vagabundo parou, ergueu os braços tão alto que se poderia supor tentava segurar as pontas da lua de quarto - crescente. Ele não esperava ser obedecido tão prontamente e deu-lhe um encontrão nas costas, fazendo-o cair de quatro. Aproveitou a proximidade e a visível covardia do safado, e algemou-o. De volta, encontraram os soldados, que faltavam poucos centímetros para dois palmos de língua, do lado de fora.
_ Descansem um pouco, que nós vamos andando!...
Com visíveis mostras de cansaço, o prisioneiro implorou:
_ Deixa eu descansar um pouquinho, também?!...
_ Vocês não merecem isso, não, mas, vá lá!... Sente-se!...
_ Obrigado, delegado!...
_ Não agradeça, só não sou como vocês. É o tempo do pessoal descansar. Vá preparando a história. Temos muito o que falar. O outro também está preso!
O bandido olhou o delegado com ar súplice, quase chorando, atitude que o alarmou. Estavam lidando com assassinos da pior espécie que não vacilavam em matar, desde que fosse para salvaguardar seus instintos criminosos. Assim pensando, ordenou, categórico:
_ Sinto muito, mas depois vocês descansam!... Temos de andar depressa!...
Disciplinados, os soldados levantaram-se, prontos para a caminhada.
* * * * *
Estavam saindo do hospital e o Dr. Odorico perguntou:
_ Então, rapazes, bem sucedidos?
_ Aí está, Doutor, este moço entrou aqui como doente, gritou, assustou todo mundo, pra depois receber um rifle pela janela, pra assassinar o colega. O que ele ainda não sabe é que atirou num monte de travesseiros!...
O bandido soltou mais um palavrão e o médico disse, em tom de mofa:
_ Filho, o hospital é lugar de salvar vidas, não de tirar!...
(A reação do bandido tornou-se impublicável...)
* * * * *
Alberto ligou para recomendar ao Dr. Odorico vigilância absoluta sobre o ferido. Contagiado pelo clima de agitação, o médico brincou:
_ Só se for pra evitar outro ataque como o de agora, mas não creio que este tenha mais importância, pois o outro agora passou a ser mais importante!... Este daqui, fica tranqüilo, que não vai se mover da cama em menos de uma semana!...
_ Há risco de vida pra ele, doutor?...
_ Sossega que vaso ruim não quebra fácil, e fizemos um ótimo remendo no seu protegido. Não entendo por que tanto interesse num cara tão feio?!...
_ Não brinca, Doutor!... Estou apavorado com a idéia de me tornar um assassino!...
_ Não esquenta! Se ele morrer, foi culpa do médico que costurou mal costurado!...
_ Isto não me isenta, Doutor!...
_ Alberto, chegou a hora de falar sério! Você já analisou a quantidade de vezes que nós, médicos, somos acusados e responsabilizados pelas mortes de pacientes? Já pensou se fôssemos sentar, remoendo a culpa, não faríamos mais nada? Quantas pessoas morrem nas mesas de operações dos grandes hospitais? Pensa que os médicos entram nas salas de cirurgias como computadores, só para cortar e costurar? Não, meu filho! Nós não somos máquinas. Nós somos homens que sentimos, amamos e vibramos quando um paciente dá sinal de vida, depois de o havermos desenganado, e sofremos, quando morre um paciente. Quantas mães já não se foram, deixando os filhinhos que acabaram de nascer, nas nossas mãos, sem ao menos os terem visto? Quantos pais de família doentes ou acidentados têm dado entrada, rodeados das esposas e filhos, desesperados, implorando de joelhos: Doutor, pelo amor de Deus, salve o meu marido ou o meu pai!, mas que, meia hora depois, quando fecham os olhos, estes mesmos que rogavam ajuda se voltam contra nós, nos tachando de assassinos? Pensa você que não sentimos os olhares carregados de ódio, cientes de que nos matariam, se pudessem? Pensa que não tememos até uma bala, quando nos deparamos com um destes nos corredores solitários, na rua, na porta de casa, ou até mesmo na praia ou na igreja? Pobre amigo!... Só Deus sabe o que sentimos!... Mas não pense que estou me lamentando. Pense apenas que se digo isto é para que você volte os olhos para o seu trabalho e esqueça que um dia apertou o gatilho contra um homem. Se você fez isto, não foi para obedecer ao tradicional espírito de sistema da mecânica legítima defesa. Você atirou contra um assassino que tinha atirado contra você e ferido um soldado. Está na hora de assumir a sua responsabilidade, como homem. Ou você pensa que está no piquenique, tocando a sua guitarra? Não pense que sou contra ela... Saiba que nos dias de festa, sempre que tenho uma folga, vou lá só pra ouvir você tocar, mas não é hora de falarmos de assassinos, é hora de falarmos da luta de vida ou de morte... Você tem a responsabilidade da guarda da sociedade de Serra Dourada em suas mãos, e tem que dar conta, como homem, como tem feito até agora, e não se deixar abater por um fato que aconteceu, não por culpa sua, mas dele próprio, que tem a maldade no coração. Você jamais pegaria numa arma, se não fosse a necessidade de agir como homem em defesa dos seus semelhantes. Lave a alma, meu filho!... Não se deixe abater por isso e verá mais tarde que é apenas uma molécula de H2O no infinito oceano da existência!... Como dizia o grande Vinícius de Moraes à sua filha: Vá fundo, meu filho!... A estrada é longa e difícil, mas com perseverança, torna-se curta e até divertida!...
Os militares aguardavam as instruções, enquanto Alberto, com os olhos rasos de lágrimas a escorrerem pelas faces, disse:
_ Obrigado, Doutor!... Desculpe, mas eu sou um molenga e preciso aprender a assumir minhas broncas. Muito obrigado, Doutor, nem sei o que dizer, depois do que acabo de ouvir. Só sei que tenho de seguir este conselho!... Ah, uma coisa que o senhor não sabe, é que capturamos o bandido que levou a arma pro atirador!... ? Disse, à guisa de informação, para se libertar da situação delicada em que ficara diante dos militares, como um mariquinhas choramingas. Concluiu que o médico não tinha muito tempo disponível, agradeceu mais uma vez e desligou. Para justificar as lágrimas, narrou aos companheiros o que ouvira do Dr. Odorico, sem imaginar que nos seus espíritos plantara-se a certeza de que se ele chorava ao telefone, o assunto devia ser da maior gravidade. Estava mais do que provado que molenga ele não demonstrara ser naqueles poucos dias. Recompôs-se, e notou nas fisionomias a solidariedade, e pôs-se mais à vontade. Respirou fundo, foi ao banheiro, fez micção, lavou o rosto e voltou.
_ OK, pessoal, acabaram-se as férias... Hora de trabalhar. Que tal lavrar um flagrantezinho desses anjos que caíram do céu, por descuido? Quem sabe, eles não têm algumas coisinhas a dizer? Vamos buscar o escrivão que deve estar Assistindo um filmezinho ou no maior dos roncos. Seja como for, acabou a moleza!... Agora, mais do que nunca, devemos ter o máximo de cuidado. Os patifes certamente irão tentar apagar as testemunhas ou eliminar-nos. Mas, como disso o Dr. Odorico, se temos a guarda da sociedade serradouradense, temos de dar conta e não vamos fraquejar. Bom!... Quem vai buscar o Américo?
_ Eu posso ir!... ? Disse o cabo Magalhães.
_ Eu também!... ? Disse Falcão, levantando-se.
_ Então, mãos à obra, que o tempo não espera!...
Quando entravam no chevete, o gol parou à retaguarda, conduzido pelo soldado que tinha levado o sargento. Alberto ordenou que fosse descansar.
_ As investigações deviam ser em sigilo. Nós fomos ameaçados de morte pelo Pato e a farmácia de ser incendiada, como vocês testemunharam. Agora, que os bandidos estão desmoralizados, chegou o momento de contar mais. O sargento foi ao Rio investigar uma placa de caminhão que encontramos na agenda do Euclides. Acreditamos que ele deve ter descoberto alguma forma de contrabando, e por isso foi assassinado, mas só vamos saber depois que voltar ou telefonar. Se alguém falar com ele, pode contar, pra ele agilizar. Mas vamos ao que interessa... Tragam o atirador, que quero ver uma coisa!...
Alberto mandou o bandido tirar a roupa e os soldados ficaram surpresos mas nada disseram. Viram quando ele se levantou e examinou o corpo do homem, nu, entre eles. Mandou que se vestisse e o trocassem pelo outro. Repetiu a ordem e quando tirou as calças, viram o curativo na perna. Vacilou quando inter-rogado, mas no momento em que ele ameaçou arrancar o curativo, falou mais al-to a covardia e disse ter sido alvejado por um soldado. Alberto analisou a resposta e perguntou:
_ Então, foi você quem jogou gasolina na farmácia do meu pai?
_ Eu fui obrigado!...
Jerônimo, que descobrira a sabotagem, perguntou:
_ Então foi você, seu safado, que tentou me matar?!... ? Deu um passo, mas foi contido pelos colegas.
O meliante aproveitou a pequena confusão e ensaiou dois passos para a porta. Mal se mexeu, uma dúzia de mãos lhe caíram em cima, e um deles disse:
_ Tu é besta, vagabundo?... Tá pensando que a gente vai deixar você sair de fininho e depois cantar de galo lá fora? Tu vai cantar, mas é de pintinho, aqui dentro, tá bom?...
Alberto retomou a palavra e advertiu:
_ Daqui a pouco, o escrivão vai chegar e eu sugiro que você conte uma história bem convincente. Tem uns parentes do Euclides, outros do Epaminondas e outros do Fulgêncio que só estão querendo saber quem foi que matou os três. Se eles descobrirem que foi você, não dou nem uma fichinha furada pela sua vida!...
Apavorado, o bandido olhou para Alberto e implorou:
_ Por favor, delegado, não deixa me pegarem. Não fui eu quem atirou!...
_ Você se esquece que se não contar a história bem direitinho, não vai ter tempo de dizer a eles que não foi você?... E mesmo que tenha, com a raiva que estão, não vão acreditar em nenhuma palavra que você disser. Em resumo, as únicas pessoas em condições de acreditar em você, somos nós. É pegar ou largar.
_ Mas eles vão me matar!...
_ Eles, quem?...
_ Sei lá!... Os da quadrilha!... Os parentes!... Não sei!...
_ Agora é tarde pra lamentações!... O momento é decisivo e eu já sei quem é o chefão da quadrilha, se você quer saber!... Já até falei com ele sobre isso!...
O prisioneiro e alguns soldados arregalaram os olhos, incrédulos.
_ O delgado sabe quem é o chefão?... E por que ainda não prendeu ele?...
_ Por falta das provas que esta criança vai fornecer. Qualquer coisa que disser, pra mim será o suficiente. Ele confessou que jogou gasolina na farmácia e atirou no Jerônimo. Estas confissões são suficientes pra ele ficar atrás das grades, mas é muito pouco pra pegar todos. Por isto, temos de começar com o depoimento desse aí!... ? Indicou o prisioneiro com o queixo, fazendo-o estremecer.





Autor: Raul Santos


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