A Maldição da Lenda - Conversas Que Fazem Sonhar








CAPÍTULO TRINTA E QUATRO
Conversas Que Fazem Sonhar

O Dr. Carlos e Boni estavam em calorosa discussão, assistidos pelas mulheres que, interessadíssimas, acompanhavam a conversa. Fizeram uma pausa com a chegada do delegado, para as boas vindas. Cauteloso, o rapaz procurou se manter à margem da conversa, vez por outra dando uma lacônica opinião. Sua intenção era a de não passar informações e ouvir, para comparar com os dados de que dispunha. O gerente relatou os dispositivos administrativos e técnicos, que iam recebendo ligeiras sugestões. Quando se referia, à jazida, o estado emocional do engenheiro se alterava e passava a acusá-lo de inobservante e negligente. Boni, que naquela manhã tinha sido acusado de traidor, mostrava-se bastante aliviado. Alberto se manteve neutro, consciente de que fizera a sua parte, mas quando percebeu que a esterilidade das admoestações estavam roubando um precioso tempo, lembrou, delicadamente:
_ Eu peço ao Dr. Carlos refletir que, mais do que o Sr. Bonifácio, foram negligentes o Dr. Charles, que é o Secretário de Obras e o tesoureiro, que é o meu pai. Se o dinheiro aplicado em tão vultoso aparato saiu dos cofres municipais, deve ter sido descarregado em alguma conta. Em qual, eu não sei. Agora à noite, nos reunimos com o prefeito e solicitei o levantamento dos gastos das obras. No início, eu queria uma CPI, mas eles ponderaram que o ano passado foi eleitoral e muitas arrumações tiveram de ser feitas. Pedi uma auditoria e o máximo que consegui foi os três, das sete às dez, trabalhando. Por falar nisso, como futuro genro, quero adiantar, que amanhã será preparado um almoço na residência do seu. Afonso, no qual deverá constar de mais ou menos umas dez pessoas, incluindo o Sr. Bonifácio e as senhoras!...
_ O delegado disse futuro genro?...
_ É!... Desde a minha infância, ele e meu pai têm sido muito amigos. Todas as tardes, ele saía com Maristela e, da farmácia, nós saíamos para a sorveteria. Enquanto eles tomavam umas cervejas, nós tomávamos sorvetes e no sério ou na brincadeira, acertaram um namoro que dura mais de quinze anos!...
_ Curioso... Na época atual, quem diria que ainda podem acontecer arrumações de casamentos, ainda na infância!...
_ Devo lembrar que foi uma arrumação espontânea, baseada na ternura que nós sentíamos um pelo outro e permanece. Vez por outra, me surpreendo, perguntando a mim mesmo se é amor ou uma ternura fraternal, e sempre obtenho a mesma resposta: Somente o tempo dirá! E se ainda somos imaturos pra o casamento, por quê preocupar com os sentimentos que nos unem? Melhor, então, curtir a vida dentro dos padrões da moral e dos bons costumes, até que a gente se decida a dar um passo mais sério, que é o natural!...
Interessada no assunto, Sandrinha interveio:
_ Delegado, se esse namoro vem de tão longas datas, quer dizer que o senhor nunca se envolveu com nenhuma outra mulher?!...
_ Devo responder francamente ou usar um subterfúgio? Eu estudo na capital, vou à praia, ao cinema, ao futebol, rotina normal. Se disser que não, estarei mentindo e se disser que sim, posso ser considerando um fanfarrão, depravado e cínico. Então, o que dizer?
_ Desculpe, se fui indiscreta. Fui mesmo uma boba!...
_ Não tem importância, no seu sentido real. Nunca pretendi ser modelo de virtudes e além do mais, como disse, o namoro vem de longos anos e sei que Maristela não tem a mínima idéia do que significa o relacionamento sexual. Na escola, aprendeu alguma coisa na teoria. Os pais, movidos por um incompreensível instinto de proteção, obstinam-se em ocultar os ensinamentos, e ela, de conformidade com o ambiente em que vive, se mantém razoávelmente pura. Posso dizer com segurança que ela é inocente. No colégio, as amizades são bastante selecionadas, no lar, os pais mantêm um padrão discreto de vida que não admite certas intimidades como palavrão e anedotas. Quando sai, via de regra, comigo, a própria música não dá oportunidade de travar relacionamento mais íntimo que o de cantar e bater palmas. Os momentos de intimidade não passam de leves carícias, conseqüentes dos primeiros dias, na sorveteria, o que agradeço aos nossos pais nos terem conduzido por este caminho. Eles nos mostraram desde cedo o que é a ternura, quando, se houvessem proibido, teríamos, provavelmente, descambado para o terreno da rebeldia. Há casos de moças que se sentem tão atormentadas ao ponto de saltarem janelas e, por um natural instinto de vingança, entregam-se aos prazeres do sexo donde advém seguramente uma gravidez inesperada ou talvez até uma doença incurável que poderá levar à sepultura, sem que disso tenham consciência. Este, seguramente, não é o caso de Maristela.
_ Impressionante, como as coisas parecem tão simples, quando as vemos por este ângulo. As crianças crescem num ambiente sadio, sem se preocuparem com o caminho das drogas, da gravidez precoce das doenças venéreas e do terrível monstro invisível que vem assombrando a humanidade, que é a AIDS. ? Disse a Sra. Sandra, que se mantivera em silêncio, durante a conversa. ? Nestes anos todos na capital carioca, jamais tive chance de ao menos imaginar que pudesse existir, quanto mais de vir conhecer de maneira singular uma cidade que guardasse pessoas de conduta tão discreta e respeitável. Nos encontros educacionais, temos ditado regras e normas, estereotipado os nossos alunos como se fossem computa-dores, e esquecido completamente da afetividade do ser humano e, principalmente, de dar às crianças a oportunidade de descobrirem por conta própria a beleza desse sentimento de se sentirem gente, e empurramos goela abaixo um sentimento que queremos dizer sexual. Vejo que o verdadeiro objetivo, a face oculta dessa atitude é nos vingarmos dos nossos pais, dos nossos avós, por nos haverem negado esse caminho, como se eles fossem obrigados a conhecer os fundamentos desses ensinamentos. Pobres coitados, que também foram criados sob a lei do chicote e do caroço de milho sob os joelhos, quando não sabiam a lição...
Alberto interrompeu a reflexão da gentil senhora e falou a respeito de um assunto que de há muito lhe atormentava o espírito:
_ Creio que por ser jovem, sou suspeito pra falar desse assunto, mas tirando por mim e por meus colegas, cheguei à conclusão de que a mente da criança é como uma página em branco. Basta que lhe dêem o título e ela escreverá a história. Por exemplo, as provas, ou como forem chamadas, o que provam? Que o aluno não aprendeu? Ora, isso é natural. Os professores deveriam saber antes de entrar nas salas. Eles próprios estão inseguros do que devem levar aos alunos. Os conteúdos estão nos livros!... Por que então não levam a oportunidade de se descobrirem sozinhos?... Como? Muito simples... O ano letivo não é dividido em quatro bimestres? Muito bem... De parceria com os alunos, o professor divide cada um em quatro ou cinco unidades, por exemplo, às quais dá o nome de força-tarefa, dentro dos assuntos a serem expostos. Assim, num processo de fixação entre si, eles vão buscando o que não foi aprendido e automaticamente estará derrotado o monstro apavorante chamado prova. Daí, uns ajudarão os outros na intercomplementação das respectivas FT?s, na sala ou fora dela. E, por quê, necessariamente, força-tarefa? Se desejamos combater a violência, usemos, então um termo próprio das operações militares, que ele se transformará em didático!...
O Dr. Carlos Morales, de espírito prático, viu que a conversa tomava outro rumo e chamou para a realidade do momento. Começou por agradecer o convite para o almoço, consultou o relógio e viu que passava muito da meia-noite. Propôs encerrarem a reunião, para o merecido descanso. O dia seguinte seria longo e cheio. Combinaram para as seis, quando visitariam as instalações da ENGETEC, a caixa d?água com o Dr. Charles e se possível com o Dr. Gil e o Dr. Sinval a jazida de urânio. Ao pensar nela, Alberto assumiu a expressão grave de quem pretendia falar algo muito sério, pigarreou e disse:
_ Dr. Carlos, o Sr. Bonifácio sabe que temos nas imediações das obras uma Reserva Indígena. Eles vivem aqui há alguns ou muitos séculos. Próximo, existe uma enorme castanheira que foi e continua sendo uma testemunha muda do que tem ocorrido no local. O primeiro que temos registro é o de uma enorme luta entre índios e bandeirantes que acamparam há mais de trezentos anos, pra renovação de gêneros. Um deles tomou-se de amores pela filha do cacique e tentou pegá-la à força. O guerreiro a quem ela estava prometida, seguiu-o mas foi morto, enquanto ela corria e contava ao pai, que entrou em luta com o marginal, levando as duas facções a travarem uma violenta batalha, que terminou apenas com vencidos. O cacique que tanto amava a castanheira, deu o último suspiro com a cabeça pousada em uma das suas raízes, e deixou no ar uma maldição contra todos aqueles que ali pisarem com o coração impuro. Os sobreviventes que sabiam ler alguma coisa, procuraram registrar os fatos ocorridos naquele fratricídio, ao que, atualmente, chamamos de A Lenda, não por duvidarmos da veracidade, mas por um fato singular que vem atravessando os séculos. Sim, o cacique Jutorib, o que traz a alegria, deixou com a filha sobrevivente um enorme segredo, inviolável até os nossos dias. O Sr. Bonifácio tem conhecimento de alguma coisa, mas pediria ao senhor que aguardasse até amanhã, para continuarmos esta conversa.
_ E quanto ao...
_ É, ? interrompeu, impedindo-o de falar do urânio ? o motorista do caminhão que prendemos está detido. Tomamos o depoimento e acho que podemos liberar o caminhão. Vou pedir autorização ao juiz pra liberar, a menos que o senhor tenha outro ponto de vista.
_ Eu não entendo bem dessas coisas, mas a Sandrinha está terminando o curso de Direito e pode dizer qual a melhor solução. O que diz, filha?
_ Acho que devemos conversar com o motorista e depois com o juiz, pra ver o que aconteceu. Afinal, nem sabemos qual foi o motorista que foi preso.
Alberto percebeu que a conversa retornava perigosamente para o contrabando e apressou-se em sair. Apertou a mão de Sandrinha e perguntou:
_ Posso usar os seus conhecimentos na tomada de alguns depoimentos? Confesso que estou meio perdido. Minha vida era a que viram, e agora, o disco virou, totalmente.
_ Eu me envolvi com alguns casos, mas coisas de marginais comuns, de corrupção ou causas trabalhistas, tráfico de entorpecentes ou contrabando, mas coisas de lendas indígenas, confesso que não acreditava passassem de histórias infantis ou de folclore.
_ Então, acho que é meu dever advertir... Preparem-se para algumas surpresas e emoções, quando amanhecer. Até logo mais!
Na madrugada, os viajantes mal conseguiram conciliar o sono, que foi povoado de estranhos fantasmas, conforme o sentimento despertado em cada um. O Dr. Carlos viu-se dentro de um labirinto de ferro, cheio de válvulas e totalmente inundado. Ao seu lado, Boni se afogando, quando Alberto chegou com mão salvadora e o retirou. A fisionomia do gerente transformou-se na de outra pessoa muito conhecida, que ele não conseguia identificar. Por trás ocultava-se outra que ele sabia quem era, mas a identidade era uma incógnita. A Sr.a Sandra encontrou-se no colégio que dirigia, conduzindo um seminário de Educação Sexual, onde tentava levar os conhecimentos adquiridos na curta palestra, mas cada vez que tentava dizer alguma coisa, ouvia vozes que não conseguia identificar, dizendo que os conceitos estavam superados, que em plena era da Informática os critérios não deviam mais ser ditados pela emoção sentimentalista, mas pelo equilíbrio racional. Ouvia, como a fazer chacota dos seus objetivos, risos, gargalhadas ensurdecedoras, que a faziam revolver-se na cama, só recobrando o domínio de si quando acordava e se dava conta de que era apenas fruto da imaginação. Sandrinha, logo que se deitou, viu-se numa pacata aldeia indígena, usando trajes característicos, quando, inesperadamente, foi atacada por Roberto, encarapitado no alto de uma pá carregadeira. Tentou fugir, mas as pernas não obedeciam e a máquina ameaçadora avançava qual terrível dinossauro mecânico, para esmagá-la, quando surgiu Alberto tocando na guitarra uma guarânia tão suave que o monstro foi perdendo lentamente a brutalidade e se acomodando, até que o possante motor passou a ronronar suavemente, como um afável gatinho.



Autor: Raul Santos


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