A Maldição da Lenda - BOITATÁ Só Diz o Que Pode, Mas o Carbeto Decide







*CAPÍTULO TRINTA E CINCO
BOITATÁ Só Diz o Que Pode,
Mas o Carbeto Decide

Agnelo estava com os óculos encangalhados sobre o nariz, mergulhado num oceano de pastas de arquivo, tão absorto, que mal ergueu os olhos à chegada do filho. Fez leve saudação e voltou a mergulhar no trabalho. Sabendo o quanto eram preciosos os minutos, Alberto aliviou os passos beijou a fronte do genitor e entrou no quarto. Acertou o despertador e enfiou o nariz pela porta do quarto, in-formando, num cochicho:
_ Vou acordar às cinco!...
Agnelo levantou o polegar, dando a entender que ouvira. Olhou o relógio e decidiu que o melhor a fazer seria também ir descansar, e disse:
_ Quando o relógio despertar, me chame!...
_ Vai ser preciso?
_ Quem sabe? Nunca se deve confiar!
_ Bom descanso, pai!
_ Obrigado, filho. Pra você, também!...
_ Velho, a carioquinha é linda. Gatérrima!...
_ Amanhã vou ver se você tem bom gosto!...
_ Tchau, papai!...
_ Tchau, filhão!...
O relógio despertou e os dois saltaram das camas, correram ao banheiro e após rápida toalete, Alberto tomou ligeiro café e saiu para os compromissos do dia, enquanto Agnelo voltava a mergulhar no oceano de papéis.
A família do engenheiro estava de pé, lépida, como se fossem a um piquenique. Após as saudações, traçaram planos para a manhã e rumaram para o acampamento da ENGETEC, onde Boni os aguardava com a equipe a postos.
Ciente de que o engenheiro iria querer tomar conhecimento do que ocorria no canteiro, acompanhou discretamente, anotando na memória o que pudesse ser útil, que não era muito, a não ser por um detalhe que lhe chamou a atenção. Recriminou-se por não haver providenciado antes e tentou manter a calma mas, no seu temperamento explosivo, não se conteve e interrompeu a conversa:
_ Sr. Bonifácio, quem é o operador daquela máquina?
_ É o Ferreira, por quê? O que há com ela? Algum problema?
_ E dos mais sérios. Se ele não tiver uma ótima explicação, vou ser obrigado a acusá-lo de cumplicidade na tentativa do meu próprio assassinato!...
_ O quêêê?!... ? Indagou o engenheiro, irritado ? O que está dizendo, delegado?...
_ É isto mesmo, Dr. Carlos. No abacateiro do quintal lá de casa há duas marcas de balas atiradas contra mim, que vieram da rua, por cima da casa. Se em Serra Dourada não há nenhum guindaste, o assassino só pode ter sido alçado por uma máquina destas. O que é pior, é que tenho a confissão assinada pelo Marcelo, que nos mostrou o poço, na casa da bomba. Na estupidez da minha inexperiência, não perguntei o nome do operador, senão, teríamos o nome dele. Daí, se foi esse Ferreira, ele que se cuide!...
_ Boni, mande buscar esse cara, agora. Onde é que ele está? Como foi que ele saiu daqui para a cidade com essa máquina? Você não sentiu falta dela?...
_ Dr. Carlos, em um ano, esta e outras máquinas saíram várias vezes pra oficina, pra abastecer e pra dar apoio na Prefeitura. Essa daí foi muitas vezes tirar o lixo das ruas e fazer outros serviços. Pode ter acontecido em um desses ou em muitos outros momentos.
O Engenheiro acalmou-se da revolta momentânea, e pediu:
_Desculpe, Boni, estou fazendo um esforço muito grande pra me conter com toda essa patifaria na minha empresa. Não vejo a hora de ver esses salafrários na cadeia!...
_ Eu sei, Dr. Carlos, acho que ninguém mais do que eu quer ver tudo isso terminado o mais rápido possível. Se ajuda em alguma coisa, o Ferreira está no hospital, com uma bala na cara. Foi atacar o delegado e se deu mal!...
_ Ufa! Enfim, me aparece uma notícia que agrada!... Procurou, e achou!...
_ Não a mim, Dr. Carlos, não a mim!... ? Disse Alberto, com ar sombrio.
_ Dos males, o menor. Mas, vamos ao trabalho!... ? Disse o engenheiro.
Antes de visitarem as escavações, o rapaz fez questão de apresentá-los aos indios, tanto pelo segredo, como pelo respeito devido ao tratamento que vinha recebendo. Ao vê-los, a moça sentiu tamanha emoção que grossas lágrimas se lhe rolaram pelas faces. Alberto, retirou o lenço e enxugou-lhe o rosto. Ela encostou a cabeça no seu ombro, e arrancou do cacique o profético comentário:
_ Moça estrangeira muito sentimento na alma, poderá fazer felicidade de homem com mesmo sentimento. Boitatá homem muito feliz!...
Sem entenderem direito o que dizia o indígena, os visitantes entreolharam-se, confusos, o que impediu vissem o forte rubor na face do delegado, que logo se recuperou e, dirigindo-se ao cacique, apresentou:
_ Boitatá tem honra de apresentar Dr. Carlos Morales, sua esposa Sra. Sandra e sua filha, Srta. Sandra, proprietários da ENGETEC, que está construindo a barragem. Se o segredo foi violado, não se sabe por quem, os nobres irmãos poderiam narrar a maranduba do cacique Jutorib, o que traz a alegria, ou desejam calar? Boitatá ainda não falou.
_ Reunir conselho e falar depois. ? Disse o cacique, e calou-se.
_ Vamos descer na casa da bomba. Irmãos poderiam vir? Seria uma honra.
Com um gesto de cabeça, o velho guerreiro ordenou que os membros do conselho atendessem ao pedido.
Na casa da bomba, os visitantes estranharam o que poderia haver de tão importante naquele cubículo que mal poderia abrigar uma dezena de pessoas, até iniciarem a descida. A surpresa no entanto, arrancou exclamações de incredulidade dos visitantes. O Dr. Carlos recuperou-se parcialmente do impacto, olhou para Boni, inquisidor, e, conforme o seu temperamento forte de sangue espanhol, perguntou, rudemente:
_ Boni, eu quero uma explicação convincente. Eu não acredito que você tenha passado um ano em cima de um monumento destes e não tenha nem de leve desconfiado. Eu exijo um relatório completo, e agora. Do contrário, vou terminar o que comecei ontem. Agora, você não tem o argumento de não poder se defender. Eu estou aqui e quero ouvir tudo. Ainda bem que o delegado também está, pra ouvir o que você tem a dizer. Pra ele lhe defender como fez ontem, era preciso ter muita certeza do que estava fazendo. Muito bem, vamos lá, que não temos o dia inteiro!...
Calmo, como se esperasse por aquela explosão, Boni falou:
_ Dr. Carlos, minha maior felicidade, hoje, é a presença do senhor, em Serra Dourada. Eu não tenho mais nada pra acrescentar ao que falei na delegacia, e acho que o melhor seria o senhor ler o meu depoimento. Assim, ganhamos tempo. O que não falei lá foi que se alguém deveria ter descoberto isto, esse alguém seria o próprio Dr. Charles ou mesmo os índios. Mas como o senhor vê, eles que são os moradores seculares, também foram ludibriados. Assim, se durante o dia eu estava cuidando do meu serviço e à noite estava em casa, não poderia nunca saber o que acontecia debaixo do chão.
_ Mas, e essa terra que foi tirada, pra onde foi levada?
_ Acho que só podem ter jogado no rio, durante a noite, quando a água poderia ficar barrenta à vontade, até o dia clarear. Acho que é a única explicação lógica. Mas como o delegado tem dois presos na cadeia e um no hospital, acho que não será difícil averiguar. ? E, confiante na sua inocência, resolveu quebrar o clima solene do momento e brincar com Sandrinha. ? Acho até que seria um bom treino para a nossa futura advogada enfiar o nariz e descobrir quem são os culpados e quem são inocentes. Eu, por mim, já tive minha dose de suspeita e, graças ao meu padrinho, me saí muito bem. Espero que os outros inocentes também se saiam. Quanto aos culpados, que Deus tenha piedade das almas deles.
O engenheiro ouviu as palavras de Boni e voltou-se para Alberto:
_ Delegado, estivemos no acampamento, na Reserva e nesta babilônia. Podemos ir à delegacia e à prefeitura? Estou curioso de apertar as mãos de pessoas que conheço só por telefone e ver alguns salafrários.
_ Ainda tenho duas coisas pra fazer, e pediria um pouco mais de tempo. ? Fez uma pausa, olhou para o cacique que se mantivera silencioso, e disse:
_ Boitatá aguarda!...
_ Boitatá grande guerreiro!... Carbeto decidiu trocar fumaça da paz com visitante. Conselho aguarda!... ? E bateu em retirada com o séquito.
_ Onde eles vão? ? Perguntou Sandrinha, que mal conseguia se conter.
_ Esperar por nós, pra narrar a mais bela história que alguém jamais ouviu. ? Deu todo o ar solene de mistério que o caso requeria, o que deixou a moça ainda mais curiosa.
_ E quem é Boitatá?...
_ Sou eu!...
_ Mas, por quê?...
_ Bem!... Porque eles querem!...
_ Mas, por quê?... ? Insistiu, irritada.
_ Porque eles são muito generosos...
_ E o que foi que você fez para ser chamado de Boitatá, grande guerreiro?
_ Generosidade deles. Eu só prendi um bandido!...
O engenheiro colocou um ponto final na discussão, iniciando a subida.
Na castanheira, comprovaram a veracidade das palavras do rapaz. Os moacaras estavam sentados, imóveis como estátuas milenares. Quando faltavam mais ou menos dez metros, Alberto voltou-se para os que o seguiam, tomou a atitude solene de quem tem algo muito importante para comunicar e disse:
_ Ontem, solicitei permissão pra o meu pai assistir a uma reunião desse conselho. Creio que ouviram bem o que o cacique disse, que o carbeto decidiu trocar fumaça da paz com visitante! Entenderam bem? Ele se referiu apenas ao Dr. Carlos. Quanto às senhoras e o Sr. Bonifácio, vou ver ser também poderão estar na conversa. Entendido?
Mais decepcionadas que constrangidas, elas vacilaram mas concordaram. Boni, que estava com eles havia quase um ano, não discutiu.
Entraram no carro que Boni havia trazido, enquanto eles seguiam para o encontro. A alguns passos, aguardaram o convite, que não se fez esperar.
_ Boitatá sempre bem vindo. Amigo de Boitatá, se fala a língua dos justos, bem vindo, se fala a língua da serpente, pensa antes de sentar e trocar fumaça!...
O Dr. Carlos inquiriu de Alberto o significado das palavras, que explicou:
_ Muitos segredos seculares serão revelados. Eles pedem que o senhor use o que ouvir apenas em favor da justiça e nunca em benefício próprio ou mero lazer. Se o senhor estiver disposto a cumprir, que se sente, mas se achar que não, é melhor não se sentar. Um compromisso traído, jamais será perdoado por eles.
O cacique tomou a palavra e exclamou:
_ Boitatá falou!...
De espírito prático, o engenheiro começou a entender o significado das tradições, rebuscou no ego os conceitos de moral e solidariedade, e disse:
_ Eu fico!...
Satisfeito com a firmeza do convidado, o cacique falou:
_ Bem vindo o amigo de Boitatá, grande guerreiro branco que tem os olhos da grande serpente de fogo, que voa como o raio de Tupã!...
Outra vez, ignorando o significado das palavras, buscou o rapaz com o olhar e foi recebido com um leve sorriso e a resposta lacônica.
_ É uma longa história. ? E, brincalhão: De alguns dias!...
O homem entendeu que deveria apenas ouvir, e decidiu sentar-se.
Alberto ergueu o braço, e o cacique decretou:
_ Boitatá fala!...
_ Boitatá intercede pela moça, que deseja ouvir a maranduba do cacique Jutorib, o que traz a alegria, bem como sua mãe e o Sr. Bonifácio!...
O cacique esboçou um leve sorriso e declarou:
_ Boitatá grande guerreiro e defensor, merece moça de grande sentimento. Seja feita vontade de Boitatá!...
_ Boitatá agradece, comovido!... ? E, levantou-se.
Feitas as acomodações, o cacique iniciou a saga do seu povo, começando pelas origens remotas, numa mesclagem fantástica de monstros e batalhas heróicas e sangrentas. Procurou enriquecer com o máximo de detalhes conhecidos as visitas dos extraterrestres que vinham constantemente em busca de combustível para suas naves, nunca mais tendo retornado ao local. após a chegada dos bandeirantes que trouxeram a desgraça aos nativos, culminando com a morte do cacique Jutorib, o que traz a alegria.
_ Enquanto ele falava, as pessoas que o ouviam pela primeira vez, quedavam-se boquiabertas, divididas entre a possível realidade e o medo de estarem sendo vítimas de uma terrível brincadeira, o que lhes poderia causar o maior ridículo se ousassem ao menos por brincadeira citar o fato nos círculos sociais que freqüentavam na capital carioca. Em determinado momento, quando a maranduba se aproximava do final, Alberto ergueu o braço, dando mostras de que desejava falar e o cacique decretou mais uma vez:
_ Boitatá fala!...
_ Boitatá ouviu e sabe, mas pede ao grande cacique que informe aos estrangeiros a maneira como os filhos de Tupã retiravam alimento para suas ocas voadoras do ventre da Terra, e as conseqüências da revelação do segredo nas terras distantes, onde moram?!...
_ Boitatá guerreiro sábio! Filhos de Tupã rasgaram seio da Terra e tiraram alimento pra ocas voadoras no local onde fica totem sagrado. Filhos de Tupã abriram profundo buraco que é lugar sagrado. Só entrarão filhos de Tupã, quando voltarem pra buscar mais alimento pra oca voadora. Lugar sagrado protegido por totem sagrado. Filhos de Tupã colocaram totem sagrado, filhos de Tupã retiram totem sagrado. Amigos de Boitatá fazem segredo de Jutorib, o que traz a alegria e todos amigos. Amigos de Boitatá usam língua de serpente e reserva indígena vira inferno. Amigos de Boitatá decidem ser amigos ou ser serpentes. Conservar ou revelar segredo?!...
Nos poucos dias em que com eles convivera, Alberto podia se considerar um expert no conhecimento dos seus temperamentos. Como ainda tinham muito serviço pela frente, entendeu que o assunto se esgotara e que a entrevista fora dada por encerrada. Convidou os visitantes a se levantarem e declarou para os membros do conselho:
_ Boitatá mais uma vez muito agradecido pela solidariedade!...
_ Boitatá sempre bem vindo!...
O engenheiro, por sua vez, entendeu que o momento não permitia maiores delongas, levantou-se e experimentou apertar a mão do cacique, no que foi correspondido, incentivando-o a prosseguir com os outros. Emocionadas, as duas mulheres não ficaram para trás e secundaram o empresário, seguidas de bom grado pelo Boni, que durante o ano transcurso não desejara outra coisa, senão conhecer-lhes as tradições.





Autor: Raul Santos


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