O Relógio Do Pêndulo Negro



Ali estava a velha parede! O tempo fora-lhe muito cruel. A cal já não tinha cor. Matizes amarelados e cinzentos sobressaíam do barro vermelho de seus incontáveis buracos. Bem ao meio, exibia-se um relógio. O pêndulo negro, parado, trazia em si boa parte de ferrugem. Os algarismos romanos, desbotados, estavam de acordo com a moldura de madeira danificada pela ação do cupim. Olhei ao derredor. A sala imensa, de piso de madeira, completamente vazia... Restava apenas o relógio a ornamentar a deteriorada parede que dava frente para o alpendre da entrada.

Ao subir a colina meus olhos não se despregavam da casa antiga, de outros séculos, que se exibia galhardamente na paisagem. Um dia, com certeza, fora possessão de alguém muito endinheirado.

Parei o jipe. Algo estranho dava-me sensação de já haver pisado aquela terra. Meu peito recebia de quando em vez uma pontada, igual àquelas que nos vêm quando sentimos saudades de algo muito importante ocorrido em nossas vidas.

As botas agüentavam a força de minhas passadas em direção à porta principal. Os três primeiros degraus, cobertos de folhas secas da trepadeira de um antigo caramanchão, escondiam meus passos de outras eras. O quê? Ora, eu não conheci em tempo algum, sequer um pedacinho desse lugar.

Abri o portãozinho do alpendre. Procurei a chave que um herdeiro do falecido dono me entregara no dia anterior, vez que eu me dispunha a comprar a terra. Observei-a: era comprida, grossa e amarela, com arabescos bonitos. A fita que lhe passava pelo aro, ainda tinha o tom vermelho, porém já bastante surrado. Quem sabe, estaria guardada há uns bons trinta anos.

A fechadura resistiu à volta que a chave lhe fez. Não se queria abrir. Empurrei a pesada porta e de repente, meus olhos descobriram a velha parede do velho relógio que em minha fértil imaginação, começara a trabalhar as horas.

Eu estava hipnotizada! Com grande esforço, abri a janela que dava para o oitão leste. As dobradiças rangeram, quebraram-se e uma das bandas veio abaixo, quase me ferindo os pés.

Extasiou-me a paisagem de serras azuladas com o rio derramando-se mansamente por sobre uma relva ainda úmida de orvalho. Ao longe, um vaqueiro tangia o gado que se espalhava pelo prado. A nostalgia invadiu-me o ser. Parecia até que eu já vivera momento igual. Meu olhar, curioso, passeava por sobre o campo exuberantemente verde pelas primeiras chuvas. Meu íntimo, em desatino, procurava algo que eu não discernia. O quê? Quem?...

Ó, Deus! Quem viveu nesta casa abandonada que eu estou prestes a comprar? Sei que dantes não pisei esses torrões, mas por que a sensação de ter vivido aqui?

Tentei afastar-me da janela, todavia encontrava-me enlevada com a beleza lá de fora, que monopolizava-me a visão. A mente evocava uma criança loura de uns sete ou oito anos, com um borreguinho branco às margens do rio. Ambos saltitavam e a menina o abraçava, rolando na relva. Parecia real. Senti até o ferrão de mutuca às minhas costas.

A certeza de um passado que eu não vivera na casa, prendia-me mais e mais à janela.

Voltei-me à velha parede ornada pelo relógio secular que há muito parara as horas. Os desenhos rebuscados em alto-relevo na madeira escura quase não mais existiam. Pareciam aplicados, aliás, em algumas partes, principalmente nas bordas, eram aplicados. Faltavam-lhe pedaços. Meus dedos escorregaram por sobre aquele arabesco. A poeira espessa grudara-se-lhe e passava-se às minhas mãos.

Disse a mim mesma que eu conhecia aquele relógio. Sabia até como tocava: de quarto em quarto de hora.

Lembro-me dele com o pêndulo negro balançando sem parar. Não lhe faltava nem uma lasquinha.

Recordo-me de uma cadeira e de meus pés em seu assento; de minhas mãos tentando abrir a linda porta de vidro. Eu não a alcançava... Estava distante de mim como distantes estão os sonhos da realidade.

Loucura! Aquela casa não fazia parte do meu passado.

Caminhei por sobre a densa camada de poeira armazenada... Por quantos anos? Um corredor largo e comprido dava acesso à sala de jantar. Retiraram-lhe os móveis e as paredes concentravam em si toda a solidão do mundo. Ou seria eu a concentrá-la?

Absorta, medi com o olhar o enorme vão. De repente, surgiu uma elegante mesa de jacarandá, com muitas cadeiras altas, cobertas de couro. Mais à frente uma cristaleira de bom tamanho guardava dezenas de copos e xícaras bordadas a ouro, bibelôs, cristais e outras porcelanas que se exibiam, bem dispostas, através do vidro ricamente marchetado. De repente, encontrei-me segurando uma caneca dourada onde Romeu e Julieta namoravam na célebre cena do balcão. Senti que já tocara aquela caneca. Mas quando? A casa não fora dos meus antepassados.

Uma força estranha induziu-me a subir a escada localizada no canto direito do salão, onde esses móveis imaginários adquiriram vida a ponto de me fazer ouvir o arrastar das cadeiras e o rangido das pequenas dobradiças das portas da bela cristaleira, que se abrira.

Subi lentamente os degraus certa de que chegaria à camarinha amarela. Sim, chamavam-na assim. Eu sei que a chamavam assim.

Empurrei a porta alta que se dividia em duas folhas. Lá dentro reinava o escuro. Como um autômato, atravessei toda a extensão do ambiente. Sem nenhum sacrifício, encontrei a janela rendada de teias de aranha. Retirei a trave, mas não pude abri-la. O ferrolho de cima estava além de minha estatura e nada existia ali de que eu pudesse servir-me para escancará-la. Porém, lembrei-me de um detalhe: em uma das pontas da trave existia um anel de latão, próprio para se puxar o grande ferrolho. Não me surpreendi ao descobri-lo.

Meu Deus, como eu podia saber de tudo aquilo?

A claridade iluminou todos os cantos da camarinha vazia e empoeirada. Montei os móveis: um Cristo de marfim pendia de uma cruz negra acima da alta cabeceira da cama de jacarandá. Por baixo dela, um grande penico de louça com um ramalhete de rosas pintado no tom azul. Por cima de um criado-mudo, uma bela escarradeira de louça estampada em formato de búzio. Um guarda-roupa com espelho oval na porta do meio; uma penteadeira com espelho oval no centro e dois laterais que faziam movimento para conforto da dama; duas cadeiras de braços altos com assento de brocado amarelo; um lavatório, de espelho oval tinha a bacia de louça azul e branco, com desenhos de flores em alto-relevo, na parte de cima e a jarra, na peça de madeira logo abaixo. Nas duas laterais do móvel, o porta-toalhas; uma espécie de banco de madeira com dois braços, com uma tampa no assento, feita para encobrir um buraco redondo por onde se via por baixo um penico que era retirado ao se abrir a porta desse móvel; adiante, o grande santuário repleto de santos barrocos... O genuflexório com almofada de astracã vermelho. Por sobre a cômoda, o lampião de alça de flandres, pintada de azul. Às paredes, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e São José, duas estampas com molduras douradas e de belo entalhe.

Meu Deus, quanta imaginação! Como eu poderia saber qual a mobília que adornava a casa?

A menina loura e o borreguinho estão ao pé da cama. A criança, delicadamente puxa os lençóis e um rosto de mulher, pálido, envelhecido e triste emerge dos panos. – Avozinha, eu trouxe o Memé para ver você.

A dama está doente. Sua mão, macerada, procura o pêlo do animalzinho e depois, afaga o rosto da netinha curvada sobre si.

Um par de botas galga os degraus. A madeira estala. À porta da camarinha, uma sombra enchapelada, estira-se no soalho. A menina loura esconde-se sob a pesada cama ao descobrir na mão do espectro a forma de um chicote. – Venha netinha, o chicote é para amedrontar o Garualpo. Aquele cavalo anda arisco cada vez mais. Para você só tenho beijos.

Garualpo! Garualpo! Que é feito de ti? Cinqüenta anos que não nos vemos? Teu pêlo branco e macio, ainda brilha sob o luar? E tu, ainda gostas de dormir junto ao tronco do trapiá? Garualpo! Garualpo...

Meu Deus! Esta casa é um pesadelo! Sinto desejos de chorar de aflição e de saudades como se boa parte de minha vida estivesse aqui. Das paredes escuto vozes, risos e choro. Mas eu não sou destas paragens!

Como posso ouvi-los? De quem será este passado do qual ora involuntariamente me aproprio?

Ligada ao quarto da avozinha existe uma camarinha, cuja porta interna é de comunicação entre os dois aposentos. Sei que lá está uma boneca de porcelana deitada na cama da menina loura. As tranças amarelas são de cabelo humano e suas vestes lembram as camponesas de Portugal. Também existe uma penteadeira alta, entalhada, com bancada de mármore branco e dois anjinhos, também de mármore, fixados na belíssima peça colonial.

Sigo passos. A menina loura tenta abrir a janela de seu quarto. Colocou uma cadeira e com o anel da trave puxa o ferrolho superior. Abrem-se as pesadas bandas. Lá por fora, descortina-se o prado extenso pontilhado de casas.

 Ao longe, uma capela entre árvores de flores amarelas e roxas. São ipês.

No primeiro casebre de barro vermelho mora Luzia. Tem olhos grandes, muito grandes e seus cabelos estão sempre a cobrir-lhe as faces.

Mentalizo a menina loura e Luzia na varanda: quebram castanhas assadas, que são engolidas vorazmente. O avozinho repreende-as e lhes diz que alguém fará aquele ofício. A menina loura explica-lhe: estão apostando quem quebra mais castanhas e quem as come mais depressa.

Luzia! Terá existido ali alguém assim?

Existiu! Eu sei que existiu.

Fecho as janelas. Desço a escada. Alguém me segura a mão... Conduz-me à cozinha.

O fogão de ferro com flores azuis esmaltadas nas tampas... Somente ele resta incrustado à parede.

A menina loura esbarra num balde de leite que se derrama por sobre os tijolos vermelhos. Machucou-se. Chora. Lalá embala-a junto ao peito negro, que um dia, por certo, a amamentou. Lalá dá-lhe tudo, até cabelouro. A menina deve comê-lo detrás da porta para ficar mais bonita quando crescer.

Vejo Cristino de colher à mão, sentado num canto, no tijolo frio. Espera a refeição. Tem uns três anos o negrote. É gordo e seu cabelo encarapinhado, outro dia tinha piolhos. Nunca chora, mesmo quando foi ferroado por um lacrau.

Mas quem é Cristino? Será filho de Lalá? E a própria Lalá, quem foi?

Da porta da cozinha vejo a típica paisagem sertaneja. Lá, ao sopé do serrote enverdecido rebanhos de cabras e ovelhas pastam, brincam, brigam... Um pastorzinho brande o bastão. É toque de recolher. Os animais se aconchegam e caminham.

Já não sei se isto é real ou se faz parte do meu pesadelo. Galinhas, patos e perus, em grande quantidade passeiam ao sol. Um pavão abre o leque maravilhoso. Pequenos pássaros, nas árvores próximas à porta, voam e cantam; um deles é um bem-te-vi – dizem que traz boa sorte. Do outro lado do rio, uma récua de bestas e asnos pastam.

Da risca do horizonte, lá no fim da várzea, parece que nasce o imenso arco-íris, que reina majestoso no vácuo cerúleo.

Tudo aqui tem um quê de mistério e de enlevo!

Onde estaria eu aos seis ou sete anos? Onde estava eu e não a menina loura?

Volto-me ao meu próprio passado, mas nada vejo além de uma ponte de ferro, toda preta e de um rio correndo. Era o Poty. As águas dançavam sobre si mesmas, rumorejavam e despejavam-se em cascata por baixo da ponte e fugiam em busca do Piauí. Por entre as árvores frondosas, eu vi, pela primeira vez, o arco-íris brilhar no céu.

Uma dor lancinante... Arde-me o peito.

Não quero mais ver o resto deste velho casarão. Eu já o conheço, desde o sótão, até o porão lotado de selas, cangalhas, cilhas, arreios, baú, tambores... De cada compartimento colho uma saudade difícil de suportar.

Volto à sala. O relógio marca as horas. A menina loura, por sobre uma cadeira, tenta abrir-lhe a tampa. Inútil! Suas mãozinhas não o alcançam. A cadeira vira. Ela chora. Lalá vem socorrê-la.

Quero sair!

Da porta, dou uma longa olhada no relógio que teima em me chamar.

Desço até a casinha de barro vermelho. Sei que vou encontrar Luzia.

- Ô de casa! Luzia está?

- Da parte de quem?

- Ela não me conhece, quero apenas fazer-lhe uma pergunta.

Longos cabelos brancos, por sobre o rosto, escondiam as feições da mulher que se arrastava em direção a mim, amparada por uma muleta.

- Sou Luzia e vosmincê quem é?

- Sou alguém que deseja comprar a casa velha do coronel Cesário Martins.

- Compre não, dona. Ela é malassombrada. Toda noite, daqui a gente escuta o relincho do Garualpo correndo em redor da casa velha e a música do relógio que toca, toca sem parar. O povo diz que tem mais coisa, mas ninguém tem coragem de enfrentar as almas. Até eu já vi uma galinha de pintos se aninhando no curral das vacas. Fui levar comida pra eles e tinha nada lá não. Todas as vezes que o seu Gustavo mandava alguém limpar a casa, aparecia uma assombração.

- Luzia, você pode me contar a história do coronel Cesário Martins e das pessoas que moravam no casarão?

- Ô, dona, é uma coisa tão triste que me parte o coração. Se achegue aqui, se abanque, que vou lhe dizer tudinho.

Eu era menina quando dona Quitéria, a esposa do coronel Cesário morreu de uma doença ruim. Esta fazenda era a coisa mais linda que a gente possa imaginar. No inverno, tudo era verdinho. O rio vazava, enchendo, enchendo e as árvores ficavam todas dentro da água. Amélia e eu brincávamos sempre no campo aberto. Nós tínhamos oito anos naquele tempo. Ela era filha de um filho do coronel Cesário que morreu tuberculoso... Ele e a mulher, quando a menina tinha só seis meses. Então o coronel e dona

Quitéria criaram-na com todo o amor do mundo.

Amélia tinha os cabelos louros e os olhos muito azuis. Gostava de brincar com o Memé, um borrego enjeitado que a Lalá criou com leite na mamadeira. O bichinho parecia entender tudo o que ela dizia. Rolavam no chão como se fossem dois cristãos de Deus. Ela era muito feliz até o dia em que o doutor disse que a dona Quitéria estava com as horas contadas. Então, Amélia queria atrasar o relógio para que sua avozinha vivesse mais. Um dia, caiu da cadeira e desmentiu o pé. Mesmo assim, não desistiu de tentar atrasar as horas.

No velório da “avozinha”, Garualpo não arredou pé da frente da casa. Parecia saber o que estava acontecendo. Ele era o cavalo dela, que começou a ficar embrabecido desde que ela não pôde mais montar. Quando voltaram do cemitério, o cavalo deitou-se e nunca mais se levantou.

O coronel Cesário não era mais o homem alegre que eu conheci. Começou a falar sozinho. Toda noite chamava pelo Garualpo, mesmo sabendo que o bicho já tinha morrido. Daí, ele rondava a casa toda por fora, trotando como se fosse o cavalo.

Amélia deixou de brincar. Passava horas fazendo cafuné no “avozinho”, contando-lhe as histórias que a “avozinha” lhe contara. O Memé ficava a seus pés. À noite, o borrego dormia dentro de casa.

Alguns meses depois da morte de dona Quitéria ,o coronel, trotando como o Garualpo, foi mordido por uma cobra.

 Não escapou. A menina ficou com a Lalá e o Cristino, seu único filho, até os parentes do velho meterem-se todos dentro de casa. Era uma briga tão grande que esse povo fazia querendo o dinheiro e as terras... A senhora nem pode avaliar. Um dia, um foi atirar no outro e a bala pegou na Amélia, tadinha, que estava em pé por sobre a cadeira tentando abrir o relógio para adiantar as horas.

A cadeira e a menina viraram em cima de mim, por isso uso muleta. Ela queria que as horas corressem depressa.

Desejava encontrar os avozinhos. O relógio veio abaixo, quebrou o pêndulo e o vidro.

Amélia caiu emborcada, mas de repente ergueu-se. Uma luz muito azul iluminou-a. Eu vi. Ela voou na sala, atravessando o telhado sob uma chuva de rosas brancas, enquanto seu corpo, estendido, derramava sangue.
Autor: Lucineide Souto


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