O Amolador De Facas



"Não existem doenças, não existem curas, tudo é um reflexo da alma"

Há muitos anos, podia-se ver pelas ruas ainda poentas do interior de meu país, um senhor de idade avançada, andar trôpego, cãs, pele morena do sol, rosto sulcado, olhar manso, com sua voz cansada a gritar: "eis o amolador de facas".

Passava de cidade em cidade. Por vezes ficava semanas longe de sua família, longe de seu lar. A vida era difícil. Todavia, jamais alguém poderia dizer que aquele senhor estivera algum dia sem um sorriso nos lábios. Sorria, ainda que de modo singelo, mas de uma maneira tão amável e pura que eu me arriscaria a dizer que era ele uma pessoa feliz.

Ao abrir a porta de sua casa, já pelos prelúdios do arrebol, após a estafa dos dias de sua rotina, puxava de seu jaleco, já um tanto maltratado pelo tempo, um saco que continha uma bengala de pão, pó de café, açúcar, manteiga e, quando o sentimento falava mais alto que suas necessidades físicas e resolvia se alimentar um pouco menos, também fazia tilintar algumas moedinhas que dava às crianças, a fim de que fossem se deliciar com algumas balas de caramelo no bazar da esquina.

Assim a vida caminhou...

...Caminhou...

...Correu...

...Quando eu estava na varanda de minha casa, numa segunda-feira cinérea de julho, perguntei a meu pai por que o velhinho que amolava facas, a quem eu perturbava tanto pedindo para que contasse suas histórias enquanto limava os utensílios de minha mãe, não mais vinha a nossa porta, com seus trejeito bonachão, empurrando sua meia bicicleta nas mãos e seu assobiar na boca. Papai respondeu que não sabia. Disse que talvez aquele senhor tivesse adoecido, ou talvez estivesse cansado ultimamente, cansado para trabalhar, ou quem sabe...

Este que vos fala (creiam, com os olhos marejados) naquela época não tinha mais do que doze anos.

Assim, continuei olhando para a rua com a esperança de rever o amolador de facas. Em vão. Muito me afeiçoara ao velho. Os velhos têm esse poder fantástico de fazer com que as crianças se apaixonem por eles. Quiçá pelo fato de saberem ouvir e falar a linguagem das crianças; saberem da importância de se receber e dar ouvidos.

Sem pensar, lancei-me pela cidade buscando encontrá-lo no vestíbulo de uma casa qualquer, com seu sorriso mágico, com sua boina amarelada e seu jaleco cinza, compenetrado na sua sina de amolar facas.

Andei por muito, muito tempo. Passei por lugares diversos olhando nos quintais e pelas janelas entreabertas mas nada, nada do

velhinho. No momento em que estava num ponto citadino já bem afastado, prostrei-me defronte a uma mansarda simples, de um branco desbotado, onde pude observar uma singela tabuleta talhada em madeira que dizia: "amolador de facas".

Com meu coração palpitante, resolvi bater na porta.

Após alguns segundos, uma mulher já bem idosa abriu a porta da casa e perguntou-me o que eu desejava:

-Gostaria de saber se aqui mora um senhor que amolafacas.

Antes de eu obter uma resposta, pude perceber, através da porta semi aberta, uma boina amarelada pendurada junto a um jaleco cinza numa das paredes internas. Tive mesmo a sensação que jaziam ali num silêncio tão triste que volvi rapidamente o meu olhar para os olhos da senhora que a minha frente estava parada, com o olhar não muito diferente das mencionadas indumentárias.

-Morreu, criança. Morreu faz algunsdias.

-Morreu?! Como?!

-Há algum tempo que vinha triste e os médicos falaram que foi câncer.

-Meu Deus! Bem, desculpe-me, senhora, é que... é que... eu queria que ele fosse lá em casa para amolar algumas facas.

-Sério?! Eu pensei que hoje em dia já não se amolassem facas.

Despedi-me e fui embora.

Ao retornar para minha casa, papai mostrava-se preocupado com meu repentino sumiço. Quando notou que eu vertia lágrimas, perguntou-me o que me havia acontecido.

Contei-lhe a história e ele se compadeceu do pobre velhinho. Abraçou-me e ensinou-me algumas coisas a respeito da vida e da morte. Lembro-me de que foi a primeira vez que tive um contato tão intenso com o mal irremediável.

Papai, naquele instante, pegou algumas facas velhas que estavam no porão de nossa casa e jogou-as no lixo. Não mais precisaríamos delas. Há muito, a bem da verdade, não precisávamos delas. Ficavam guardadas apenas esperando pelas visitas do amolador de facas. Existiam, ainda, apenas para que pudessem ajudar o amolador de facas, e acredito que, de alguma forma, fizeram o seu papel.

Penso, hoje em dia, já bem mais crescido, que o mundo todo estava, naquela época, sofrendo uma metamorfose sem volta, uma intensa e irremediável transformação. Os objetos se mostravam cada vez mais descartáveis. As pessoas, quando do envelhecimento de algo, simplesmente o jogavam fora, substituindo-o por outros objetos novos. Não havia mais por que guardá-los. Tudo poderia ser trocado. Tudo, menos o esforço de uma vida.

Creio que o velho amolador de facas não morreu de câncer. É, a mim, muito pouco, muito pequeno pensar dessa forma. Feneceu sim, foi de tristeza. De uma tristeza pungente e voraz. Morreu ele pela dor que o assolou face ao sentimento de não mais se sentir útil.


Autor: Luiz Francisco Ballalai Poli


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