A Culpa é Dos Inocentes



Há algum tempo, foi o caso da jovem Natascha Kampusch – a vítima. Agora, o caso de Josef Fritzl, que, por 24 anos, manteve a filha aprisionada em um porão, tendo com ela sete filhos (um dos quais foi incinerado pelo "pai" após ter morrido dias após o parto). Aqui por perto, no Brasil, a coisa não anda diferente.

Para citar alguém com autoridade... Hannah Arendt, que refletiu tanto sobre os horrores do nazismo. Em determinado momento, referindo-se à racionalidade humana, diz: "o que nos diferencia dos outros animais é a racionalidade; mas isso, necessariamente, não nos torna melhores."

A cada dia, mais vamos nos convencendo da profunda veracidade dessas palavras. Ou, ainda, talvez devêssemos retomar Butler, quando o mesmo afirma que "o homem (ser humano) é o único animal que consegue permanecer, em termos amigáveis, ao lado da vítima que pretende devorar, antes de fazê-lo".

Sem sermos apocalípticos... Mas está ficando cada vez mais corriqueiro pais matarem (física e psiquicamente) filhos, filhos matarem pais, irmãos matarem irmãos, o que nos faz questionar se a política pode ser diferente do que tem sido. Afinal, que "obrigação" um estranho teria com outro estranho que, simplesmente, lhe confiou um voto?

No fundo, a questão passa pelo sentimento moral. Sentimento na acepção de ser sensível pela questão moral. Sentimento na acepção de solidariedade. Ser sensível em relação aos outros e buscar, sempre que possível, colocar-se no lugar do outro, compreendendo-o e evitando causar-lhe danos que, em nós mesmos, não gostaríamos de sofrer. Certo que essa visão é mesquinha, parte de um egocentrismo. Mas é menos utópica do que pensar no outro a partir dele, apenas, por uma questão de renúncia, de aniquilamento do "um" frente ao "outro".

As mazelas políticas, em grande parte, têm seu fulcro nesse aspecto: o desrespeito pelo que não é meu, o desrespeito por aqueles que não fazem parte de meu grupo.

É certo, também, que muitas atitudes humanas são doentias. Determinados crimes são tão inimagináveis que só nos resta atribuir à irracionalidade – à loucura, que quer que seja isso – a causa de alguns atos horrendos, não encontrados entre os animais designados como inferiores.

Talvez isso, a loucura, a irracionalidade, seja a nossa forma de poder aceitar a convivência com aquilo ou com aqueles que nos tornam difícil, insuportável até, o reconhecimento da maldade humana.

Em tempos em que a ciência consegue dar explicações para boa parte dos fenômenos, consegue se aproximar mais e mais da cura de doenças antes julgadas incuráveis... Em tempos assim, a ciência, ainda, não é capaz de dar uma explicação para o porquê de alguns romperem com todos os laços de solidariedade – até mesmo de piedade. E aí, então, a explicação é recorrer à não explicação. É afirmar que a razão de tudo está na falta de razão: na falta de razão do perpetrador da monstruosidade, do crime, da violência.

Em tempos de culto à razão e sua aplicação, o recurso à falta de razão. Algo a que Shakespeare já aludira com seu mote de que "o coração tem razões que a razão desconhece". E o desconhecimento é outro argumento ao qual a razão recorre a fim de se preservar. Afinal, quantos delitos, transgressões não são justificados pela desculpa de que não se tinha consciência, de que não se sabia, de que se desconhecia?

E aqui temos de nos voltar, mais uma vez, para o campo político, onde os representantes do poder público afirmam, não raras vezes, que desconheciam certos procedimentos, que desconheciam certas correlações, que desconheciam certas implicações.

Virou lugar comum o cidadão desprovido de bens materiais ser destituído de sua dignidade quando é levado a roubar alimento e, por essa causa, ser jogado em uma cela com criminosos contumazes. Isso enquanto outro cidadão bem fornido de bens materiais ser protegido e isento em investigações que poderiam indicar a origem criminosa de boa parte de seus bens. Dentro dessa confusão, surgem "laranjas" – quase sempre pessoas que, por desconhecerem o jogo onde estão metidas, são incriminadas ou responsabilizadas no lugar dos verdadeiros culpados.

As vítimas sucumbem. Junto com elas – aquelas que partem dessa para outra vida – não raro, a verdade. Mas, que é isso, a verdade? Essa pergunta foi formulada inúmeras vezes, ao longo da história humana. Talvez o registro mais simbólico tenha sido aquele em que dois homens se encontram em um suposto tribunal, sendo um poderoso, representante do poder romano, e outro humanamente enfraquecido, apresentado como um criminoso comum. Este último, ao afirmar que era o "caminho, a verdade e a vida" teve com observação a inquietante indagação: "Que é a verdade?"

Quando a razão deixa de ser tão luminosa que cega a si própria, ela se torna um luminar a buscar o esclarecimento da própria existência, elucidando os absurdos que se ocultam nas dobras do egoísmo, do orgulho e das veleidades.

Habermas, um filósofo alemão bastante lúcido, insiste em que o projeto da modernidade – entendido como projeto do esclarecimento – ainda é um projeto inacabado. Não são raros aqueles que atacam o pensador alemão por sua crença na racionalidade. Interessante que, mesmo que seja para atacar a razão, deve-se fazer uso da razão. Nós, enquanto seres humanos, temos esse fardo – a razão – que é ainda mais aumentado com o fardo da liberdade. Para Sartre, o ser humano está condenado a ser livre.

Pois bem, Habermas insiste em que a razão é uma ferramenta para o entendimento. Piaget vai argumentar que a razão, o pensamento, tem uma lógica, e essa lógica é como que uma moral do pensar. A tal ponto isso deve ser intrínseco à razão que Piaget compara o agir moral e a lógica do pensamento afirmando que "a lógica é uma moral do pensamento, assim como a moral é uma lógica da ação."

O que sucumbe a humanidade é perceber o quanto a razão é usada com irracionalidade; ou seja, na persecução de fins que agridem a própria humanidade, violentando os indivíduos, os grupos, sociedades...

Ainda alguns não se recuperaram da Tsunami e já outra catástrofe se abate sobre Mianmar. Alguns dizem que as autoridades poderiam ter evitado tanto sofrimento e percas de vida. Quem se responsabiliza? Onde a verdade? Quem está com a razão? Chega-se a afirmar, até, que as vítimas estavam em local impróprio.

Sim, são tempos estranhos, estes, onde é a inocência quem deve se justificar (Camus).


Autor: Leonides da Silva Justiniano


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