O Garfo



A Criança Kierkegaard quer ser garfo, esse é o seu desejo. Quer espetar o que quiser na mesa. O garfo é algo comum de seu mundo pueril, inda que ele seja um menino um tanto estranho. Mas ele vê nesse elemento comum uma faísca, algo solto dos significantes, uma espécie de centro absurdo, brilhante, desejável. O garfo é desejável na conjunção com o seu território: a mesa e a pluralidade interativa e heterogênia que a compõe; os bocados apetitosos, as falas, os silêncios... para Kierkegaard, o garfo é tão mais saboroso do que a comida, o garfo é o caminho de um delírio estomacal, de um banquete cujo saborear e o mastigar têm ondulações para o fantástico. A criança e não o filósofo Kierkegaard faz um devir-garfo, e nesse devir costura ao seu corpo um universo, a mesa. Ele anexa a si mesmo esse meio, tomando o garfo como porta de entrada, como fio condutor, como ferramenta para escavação de tuneis, como passagem, porta que se entra delirando-a, sendo-a, utensílio que se manobra enxertando-se nele, numa cibernética doméstica. Dois leitos de rios se beijam, difícil identificar as fronteiras desses dois "entes": um corpo de criança e um garfo; o desejo dissolve os invólucros para gerar uma paisagem maior, um todo que é maior que a soma das partes. O corpo é aumentado, se expande na inumanização, na incorporação das coisas, no despedaçamento do membros que se enxertam nas coisas da mesa. Aumento do corpo, incorporação dos fantasmas nas coisas, para um aumento de vida.

Um que desejo enfrenta a noção essencialista dos entes: o garfo é garfo, substância acabada, determinada pela sua origem - e triunfa. E o desejo é de ser garfo. Romper a bolha individualizante da essência, que prende os seres em solidões hierarquizadas. O desejo é ser garfo: coragem de assassinar a metafisica e o Deus Ocidental, de misturar os fenômenos, ato dionisíaco, coragem de devir. Não é um sedentário desejo de mímese, isso seria preguiça cristalizadora e interrupção do processo; é um desejo criador, transformador de espaços em paisagens, que enverga os incorpóreos para fabricar paisagens, evocador das forças virtuais. A paisagem da mesa conjugada ao próprio corpo é uma liberação epistemológica/epidermológica de um fervilhar de sentidos. Mesa já não tanto como o lugar da comida, mas do jogo; não o lugar da família, mas da impessoalidade paisagística produzida pelo desejo. O garfo é uma porta, é uma linha, é um fio condutor, é uma ponte: o desejo elétrico o perpassa é se dissemina pela mesa inteira fazendo emergir signos. O corpo se despedaça e se recostura na mesa, também despedaçada, farejando os "bons encontros", aumentando o seu poder de afetar e ser afetado.

A criança Kierkegaard diz: "Quero ser um garfo, assim posso espetar tudo que quiser na mesa". O garfo é perfeito, é útil, é belo, é brinquedo, é caminho, é chave para o mundo-mesa.

O garfo é a coisa que encontrando-se com o corpo libera o desejo para a vastidão das possibilidades, liberdade para comer. E comer o que quiser está além da mera provisão fisiológica do corpo, há ludismo, há um brincar, há circo além do pão.

O Velho Kierkegaard pai retruca, ameaça, ele, a voz do peso, das forças instituídas, do império dos significantes solidificados: "E se nós o impedirmos?" A Criança resiste, vaza, atravessa os orifícios que só um fluídeo desejo como bússola sabe encontrar: " Eu espeto vocês". O garfo agora é arma de ataque/defesa; um reflexo, uma intuição que surge no momento do perigo, um instinto de defesa, de distância, provoca um deslocamento dos sentidos, uma nova desterritorialização do garfo, faz nascer uma Novidade. É um reflexo e não uma reflexão que faz o garfo nascer de novo; o garfo é desterritorializado de sua função mais uma vez e arrastado para uma região provisória de ataque/defesa, de combate; não é mais um talher, é um tridente de um diabo, é uma faca, é uma ameaça aos perigos, às forças reativas que querem solidificar o seu devir. É preciso repetir: não foi o pregresso linear de um reflexão que sobrepôs mais uma função ao garfo, foi o ejacular intuitivo de um corpo ameaçado, foi o pensamento que surgiu do/no susto. O garfo é desterrado da casa do papai/mamãe, de sua natureza, e se torna pródigo, floresce.

O devir-garfo é a posição política do pequeno Sôren, é uma práxis lúdico-bélica micropolítica; o comer-lúdico, o pão e o circo conquistado a agônicas metamorfoses, a guerras que devem margear um egoismo sadio, tal como explosões atomicas são a superfície que produz a generosa luz do Sol, "Querer o meu não é roubar o seu" (Raul Seixas), egoismo que é origem da generosidade.

O devir-garfo é muito mais uma liberação/amplificação de vida somática, uma ação desmedida e dionisíaca, que distorce a razão e estrangula os significantes imperiosos do que um conscientizar-se; não é exatamente uma tomada de consciência que espezinha a alienação e devolve a aptidão revolucionária. A consciência crítica iluminada pelo conhecimento cientifico e limpa da obscuridade das ideologias não é um a priori para um devir-garfo. É muito mais provável que o criticismo seja uma pesadume, gravidade, ressentimento, introspecção, substanciação do ser, auto compaixão, niilismo e burocracia mental que queira fatiar, segmentar, e paralisar o devir-garfo, e impor uma cronologia, uma gênese, um diagrama científico transcendente. O devir-garfo é mais uma embriaguez que um raciocinismo, exige a "dança da cabeça e dos pés", que "a cabeça não seja mais que uma víscera do corpo"(Nietzsche). Talvez haja um a priori para o devir-garfo: um devir-criança; é a criança e não o filósofo Kierkegaard que inventa o devir-garfo. Há um árduo/delicioso caminho estreito para se chegar a um devir-garfo, uma poda de asas que intensifica o vôo, mas essa cosmogonia para se parir a si mesmo criança é de uma solidão artística sem modelos, é um caminho que não se pode desenhar senão com os pés, que não serve senão para os pés que o desenham.

O devir-garfo é um cumular e transbordar de pragmatismo, talvez por isso não haja linguagem que dê conta de sua gênese, de seus estágios, de seus a prioris. Nenhuma teoria como retrato dos movimentos orogenéticos do devir-garfo! Tem ele um pragmatismo semelhante ao pensar ou o aprender, onde não há mapas universais, um mapa seria um burocrático juízo, um ponto convergente onde todos os devires se solidificariam... tornariam a experiência em experimento repetível, universal. Não há mapas dados de antemão para os pensares, não há mapas para os devires.

O devir-garfo é um gaguejar da linguagem somática.

A Criança Kierkegaard conquistou para si um novo nome: o Garfo, era assim que sua família passou a lhe chamar. Conquistou o seu nome se despersonalizando.
Autor: Al Duarte


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