VISÕES NA CAMPINA



Inácio estava passando férias no sítio de seu primo Henrique quando recebeu um pedido para que fosse atender a filha de um fazendeiro, amigo de Henrique, que padecia de visões.

- Você sabe que eu sou cardiologista e não psiquiatra.

- Sei disso. Respondeu Henrique. - Os pais da moça crêem que ela esta sofrendo das faculdades mentais, porém, penso que é mais um caso de assombração do que de doença mental. Como você gosta de investigar fatos paranormais pensei que...

- O que acontece com ela?

- Não sei ao certo, acho melhor você mesmo perguntar. Se quiser podemos ir lá agora. Os pais da moça são sensíveis, sabem que você é médico, então para não assustá-los trate o caso como se fosse uma perturbação da saúde e não sobrenatural.

- E onde eles moram?

- Não é longe, meia hora de carro. A moça se chama Isaura. Tem vinte e um anos,

- Minha filha diz que conversa com um rapaz que mora aqui perto. Disse Francisco o pai da jovem. - A gente não se importa que ela arranje um namorado, mas quando fui ver onde ele mora, não encontrei casa alguma! Não tem nada lá, é um campo! Dizem que havia uma vila nessas terras há muitos anos, mas hoje não tem mais nada.

- Ontem Isaura me disse que eles vão se casar. Afirmou Rosa, esposa de Henrique, num tom de tristeza. - Será que nós vamos precisar interná-la, doutor?

- Para dar uma opinião sobre isso, eu preciso conversar com sua filha, saber mais sobre o que vê e sente. Posso conversar com Isaura?

- Claro. Respondeu Francisco. - Ela está no quarto. Rosa vai acompanhar o senhor, enquanto Henrique me conta as novidades.

Isaura estava sentada na cama, bordando uma toalha.

- Minha filha, esse é o doutor Inácio, ele quer te fazer algumas perguntas.

Isaura deixou o que estava fazendo para dar atenção ao médico.

- Como vai? Perguntou Inácio sentando-se na cadeira que Rosa lhe ofereceu.

- Estou bem. Respondeu a jovem com tranqüilidade. - Eu já disse pra minha mãe que não estou sofrendo de nenhuma alucinação. Não estou doente.

- Tenho certeza que não. Disse Inácio para dar confiança à moça.

- Fiquei sabendo que você tem um namorado. Como ele se chama?

- João.

- Que idade ele tem?

- Vinte e cinco.

- Onde mora?

- Na vila. Não é longe daqui.

- E você conversa com ele lá?

- Sim.

- Já conversou com ele aqui no quarto?

- Não! Não seria direito. Ele queria conversar com meus pais, mas não pode.

- Por que não?

- Porque não consegue encontrar a nossa casa.

- Não consegue? Como assim?

- Não sei explicar...

Inácio fez uma pausa.

- Posso voltar a conversar com você mais tarde?

- Sim, senhor. Não tenho nada a esconder. Já disse para meus pais que vou morar com ele.

Isaura segurou a mão de Rosa, que permanecia calada e triste.

- Mãe, eu amo você e papai, mas quero ter a minha casa, um marido, filhos. Você sabe que tenho esse direito!

Rosa sacudiu a cabeça concordando e se retirou com o médico. Na sala, Inácio voltou a falar com o casal.

- Sua filha me parece lúcida, saudável. Mas, alguma coisa está acontecendo e precisamos descobrir o que é. Eu gostaria de ver o lugar onde ela diz que o rapaz mora.

- Vamos lá então. Disse Francisco.

Saíram os quatro da casa, passaram por um pomar nos fundos, onde havia uma figueira centenária e chegaram a uma clareira. Além da clareira havia mata nativa. Rosa e Francisco estacaram na orla do campo como se tivessem receio de ir mais adiante.

- É aqui? Perguntou Inácio.

- Sim. Disse Francisco e só então acompanhou o médico, mas Rosa permaneceu onde estava e Henrique resolveu fazer companhia a ela.

Caminhando pela campina, Inácio percebeu desníveis simétricos e algumas pedras, como se antigamente ali tivesse havido algumas construções.

- A vila era aqui?

- Não tenho certeza. Respondeu Francisco olhando para a mata.

Não encontrando nada de anormal, Inácio começou a voltar para junto de Rosa e Henrique.

- Está anoitecendo. Eu precisava de mais tempo para investigar essas coisas que afetam Isaura.

- O Senhor não pode ficar conosco por alguns dias? Indagou Francisco.

- Ele está de férias. Disse Henrique. - Tem tempo de sobra!

- Fique, doutor. Pediu Rosa.

Henrique foi embora e Inácio permaneceu na fazenda. Ele não tinha certeza de que Isaura falava a verdade, mas as visões da jovem e a existência de uma antiga vila na campina parecia terem uma estranha ligação. Naquela noite ele jantou com a família, mas não tocou no assunto que o mantinha ali. Conversaram até tarde sobre fatos diversos.

Na manhã seguinte Francisco saiu cedo para resolver assuntos de trabalho na fazenda. Inácio pediu licença a Rosa para que Isaura o acompanhasse até a campina. A mulher concedeu o pedido e permaneceu em casa para fazer o almoço.

- O João mora com quem na vila? Perguntou Inácio a Isaura, enquanto percorriam o pomar.

- Com os pais dele.

- E o que ele faz?

- Trabalha com o pai dele na olaria.

Inácio fez uma pausa e só voltou a falar quando atingiram a campina.

- Veja. Aqui não tem nada, nenhuma vila.

Na orla da clareia, Isaura olhou ao redor.

- Agora não. Eu só vejo a vila e o João quando tem um barulho.

- Um ruído? De quê?

- É um zumbido, como se fosse um enxame de abelhas.

- De onde vem? O zumbido?

- Do ar.

Inácio estava confuso. O caso se tornava mais intrigante.



Depois do almoço Isaura foi para a cozinha lavar a louça. Inácio esperou que Francisco chegasse para conversar com ele e com Rosa.

- Isaura disse que só vê a vila e o rapaz quando ouve um zumbido.

- É da cabeça dela, doutor? Indagou Rosa.

- Acho que não. Tem mais alguma construção aqui por perto?

- Uma antiga olaria. Respondeu Francisco.

- Podemos ir lá olhar?

- Claro, vamos.

Os dois homens saíram da casa, percorreram uma trilha no meio de um milharal e chegaram às ruínas de uma olaria às margens do rio. Dos galpões só restava algumas colunas de madeira. A chaminé do forno estava com uma rachadura na base. No alto havia uma estrutura de metal.

- O que é aquilo? Perguntou Inácio.

- São os restos de uma antena de rádio. Meu pai era radioamador. O aparelho estragou e ficou um bom tempo parado e quando meu pai faleceu vendi o equipamento.

Inácio não encontrou nada ali que pudesse fazer algum ruído. Talvez em algum outro lugar.

- Alguma vez você ouviu algum zumbido estranho?

- Nunca ouvi nada. Respondeu Francisco.

Voltando para casa, os dois homens sentaram-se na varanda, onde Rosa lhes serviu suco de laranja.

- Onde está Isaura? Perguntou Francisco.

- Foi para o quarto, terminar o bordado. Respondeu a mulher

dirigindo-se para a cozinha.

- O senhor já chegou a uma conclusão? Perguntou Francisco.

- Ainda não. Respondeu Inácio. - Eu estava pensando em procurar a origem do ruído em outro lugar, mas parece que vamos ter uma tempestade...

Francisco olhou para o horizonte onde uma tarja preta despontava. Não levou muito tempo para que o céu se cobrisse de grossas nuvens negras. Um vento forte começou a soprar. Rosa saiu para recolher a roupa no varal e Francisco foi fechar as janelas do celeiro. Inácio subiu até o quarto de Isaura. Ele bateu na porta e quando a moça abriu a porta, ele disse:

- Posso conversar com você?

- Agora estou ocupada, doutor!

- Eu só queria lhe pedir para você não tomar nenhuma decisão precipitada. Se alguma coisa acontecer teus pais vão ficar muito triste.

- O que o senhor acha que eu vou fazer?

- Sair de casa. Não é o que você disse? Que vai abandonar teus pais para casar?

Isaura estava séria, impaciente.

- Já decidi sobre minha vida doutor. Se eu sair voltarei logo que puder.

- Depois que a tempestade passar, pode vir comigo até a campina novamente?

Isaura esboçou um sorriso.

- Claro doutor.

O médico voltou a descer para a sala de estar.

- É tempestade passageira. Disse Francisco entrando e colocando a capa de chuva no cabide. Rosa entrou logo em seguida com um cesto cheio de roupa e subiu para o segundo piso. Instantes depois ela desceu, aflita.

- Francisco!

- O que foi?

- Isaura saiu de casa e deixou um bilhete!

Francisco pegou o papel e leu:

= Papai e mamãe, estou indo me encontrar com João. Assim que eu puder, voltarei para ver vocês. Se caso não conseguir, deixarei uma carta na figueira.

- Isaura não passou por aqui! Disse Inácio.

- Ela deve ter descido pelo alpendre e depois pelas ripas do viveiro de plantas. Vou buscá-la! Disse Francisco, enquanto voltava a vestir a capa de chuva.

- Vou junto com o senhor. Disse Inácio e pegou outra capa. Saíram caminhando encurvados contra o vento e a chuva. Atravessaram o pomar e logo chegaram à campina. No céu corriam negras nuvens. A chuva e o vento castigavam os dois homens parado na orla da clareira, olhando incrédulos as casas, uma rua de chão batido, carroças, animais domésticos, pessoas em suas ocupações diárias, e Isaura, que se dirigia a passos largos para uma das residências, onde na porta da casa, um rapaz sorridente esperava por ela. Misturado com o ruído da chuva e do vento, soava um zumbido intermitente. De repente soou um som distante, como de um trovão, o solo tremeu e a visão da vila desapareceu e com ela, o zumbido. Inácio e Francisco continuaram a olhar para a campina onde não havia mais nada, apenas a grama revolta pela ventania. A vila desapareceu e com ela a jovem Isaura. Depois de algum tempo, Inácio tocou o braço de Francisco.

- Vamos voltar! Não há nada que possamos fazer agora.

Após uma breve hesitação o homem o seguiu.

A tempestade durou ainda por quase uma hora e durante esse tempo o médico e o casal pouco conversaram, permaneceram pensativos olhando para fora. Quando a chuva e o vento diminuíram de intensidade, Inácio disse:

- Aquele abalo não foi um trovão.

- Aconteceu para os lados do rio. Respondeu Francisco, pensativo.

- Vou dar uma olhada. Disse o médico e saiu. Quando ele chegou à antiga olaria descobriu a origem do abalo. A velha chaminé, enfraquecida pelo tempo tinha sido derrubada pelo forte vento. Enquanto voltava para casa Inácio meditou sobre todos os acontecimentos e chegou à conclusão de que a antena no alto da chaminé, ativada pela tempestade, emitiu um som capaz de criar uma dobra temporal, uma brecha no tempo e por breves instantes pessoas de épocas diferentes tiveram uma ligação física.

Inácio encontrou Rosa e o marido junto à figueira.

- Isaura disse que deixaria uma carta na figueira! Mas procuramos e não encontramos nada! Disse Rosa.

- Talvez esteja enterrada. Respondeu Inácio.

- Vou buscar uma pá. Disse Francisco e se afastou. Voltou logo em seguida com uma pá e uma enxada. Ele e o médico cavoucaram ao redor da figueira.

- Porque Isaura enterraria a carta? Isso não tem cabimento! Exclamou Rosa. Dali a instantes Francisco encontrou um objeto enterrado. Era um estojo de plástico que Rosa reconheceu.

- É o estojo de jóias de Isaura! Mas, parece que está tão velho!

Dentro estava uma folha de caderno amarelado pelo tempo. Era a carta de Isaura.

= Queridos pais. Infelizmente não consegui mais ter contato com vocês. Vou deixar essa carta junto a figueira que João plantou. Casei com João e estou grávida. Meu filho vai ter o nome do pai, João Alves Belém. Nós vamos nos mudar da vila por que muitas pessoas estão morrendo por causa da gripe. O avô do meu marido nos convidou para morar com ele. Iremos para Santa Fé.

Fico triste por não poder voltar a ver vocês, mas eu não poderia ser feliz de outra forma. Obrigado por tudo, amo vocês.

Isaura.

Capão Alto, 1879.

- É tudo tão confuso! Exclamou Rosa. Inácio explicou o que tinha acontecido. Francisco e Rosa disseram que compreenderam, mas no fundo eles tinham duvidas e passaram o resto de seus dias com a esperança de que Isaura voltaria. Eles queriam pagar o honorários de Inácio, mas o médico recusou, dizendo que lamentava por não ter podido evitar o desaparecimento de Isaura. Foi embora sem mesmo dizer que se nome era Inácio Oliveira Belém.

FIM

antonio stegues batista
Autor: Antonio Stegues Batista


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