No Córrego Da Laje



Na pacata Pontalina dos anos 60 o banho no Córrego da Laje era, sem sombra de dúvidas, a melhor opção de lazer da meninada. Só perdia mesmo para as esporádicas visitas dos circos de "espetáculo" ou de "tourada". Era maravilhoso acompanhar o palhaço pela cidade gritando "tem sim sinhô!" e ao final do dia ganhar a marca de tinta na testa, a garantia de passe livre para a apresentação da noite.

Mas essas aventuras eram temporárias, por isso não se comparavam às maravilhosas peripécias lajeanas sempre presentes e variadas, dependendo das estações do ano. Para mim o melhor período era o chuvoso, pois com as enchentes as aventuras dos mergulhos das copas das árvores tinha a magia que me transformava no Tarzan das telas do Cine Pontalina. Já a estação da seca, com as águas rasas, nos dava a oportunidade de passar para a outra margem onde ficava o sítio do Totonho Piqui, paraíso da cana "caiana", manga "coquinha", laranja "baiana" e outras frutas deliciosas, cada uma em sua estação própria. A jabuticaba então, além de ser a rainha da doçura dava uma carga no tempo certo e outra temporã.

Seu Totonho já não sabia mais o que fazer para proteger seu pomar da praga "meninada da rua". Sua última estratégia consistia em cortar uma vara de assa-peixe e ficar escondido atrás das moitas de araticum que havia próximas ao colchete que dava acesso do pomar ao pasto anexo à aguada do córrego. Quando a molecada se aproximava do colchete Totonho Piqui saía de detrás da moita gritando e dando varadas pelos quatro ventos, acertando umas poucas bundas dos moleques menos atentos.

Nunca me esqueço. Numa dessas investidas o Totonho resolveu mudar o plano de ataque e ao invés de dar varadas ao vento resolveu escolher um só alvo. E o escolhido fui eu. Minhas pernas curtas não competiam com as canelas compridas do Totonho. A aflição tomou conta da minha mente, meus olhos fixaram-se na margem do córrego, que ia crescendo às minhas vistas na medida que crescia a esperança de dar um salto no meio da correnteza e escapar da surra. Não ousava olhar para trás. Eram os olhos fixos na areia à frente e os ouvidos atentos aos assovios da vara cortando o ar. Finalmente o salto da salvação "tchibum!" Que salvação que nada! Naquele dia Totonho Piqui estava decidido. Dei meu salto e já parti nadando para a outra margem quando ouvi outro "tchibum!" Dessa vez tive que olhar e vi o compridão do Totonho que pulara de roupa e tudo ao meu encalço.

A margem do córrego do lado do sítio era uma prainha, mas do outro era um barranco em forma de rampa de aproximadamente dois metros de altura, que molhávamos para fazer um escorregador por onde descíamos deitados de ponta cabeça até mergulharmos. Uma delícia! Só que agora tudo estava em sentido contrário e atrás de mim Totonho e a vara de assa-peixe. Meti as unhas na lama do barranco e iniciei a escalada. Quando quase atingia o topo os dedos não suportaram e deslizei barranco abaixo, quando tomei a primeira lapada que me atingiu o lombo. Senti um ardume e a sensação de um vergão surgindo. A varada me renovou as forças e eu mesmo me surpreendi com a rapidez que cheguei ao topo do barranco. Só não consegui evitar a segunda lapada que atingiu a panturrilha da perna direita e mais uma vez o ardume e o vergão levantado. Fiquei em pé contemplando meu algoz dando braçadas desengonçadas, que graças a Deus não se aventurou na escalada. Totonho olhou pra mim e disse:

- Não pense que escapou. Não se esqueça que vendo verduras pra sua mãe, na próxima entrega vou contar tudo pra ela.

- Eu é que vou mostrar para o meu pai o que você me fez. Ele vai lhe matar! Contra-ataquei.

Depois do ocorrido fiquei aproximadamente uns dois meses observando para ver qual das ameaças havia prevalecido. Todas as vezes que eu percebia que o Totonho chegara para entregar as verduras eu me posicionava em direção à porta dos fundos para fugir caso mamãe me chamasse. Afinal pelo timbre da voz eu sabia se o chamado era de paz ou de corretivo.

Até hoje eu não sei, mas acho que Totonho Piqui imaginou que o susto fora grande demais e que eu não teria coragem de voltar ao sítio. Não sabia ele, mas as aventuras continuaram.


Autor: Antonísio Siqueira Borges


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