Comentários à Lei n° 12015



A Lei 12015 alterou profundamente o Título VI do Código Penal Brasileiro que, antes da referida lei, era denominado ??Crimes contra os Costumes??. Constatava-se, com o passar dos anos, que a proteção dos tipos penais deixou de recair sobre a forma como as pessoas se portavam sexualmente perante a sociedade para proteger a dignidade sexual do indivíduo, espécie do gênero dignidade da pessoa humana. Dessa maneira, objetivando proteger a liberdade sexual da vítima, a nova lei alterou a denominação do Título VI para: Crimes contra a Dignidade Sexual.
Tal lei surgiu em nosso ordenamento jurídico em virtude do aumento significativo da prostituição, principalmente a infantil. Foi por conta dessa triste realidade que o Congresso Nacional criou, por meio do requerimento 02/2003 assinado pela Deputada Federal Maria do Rosário e pelas Senadoras Patrícia Saboya Gomes e Serys Marly Slhessarenko, uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para apurar fatos relativos ao assunto: a exploração sexual de crianças e adolescentes. Os trabalhos da CPMI acabaram no ano de 2004 e foram responsáveis pela criação do projeto de lei 253/2004 que, futuramente, deu origem à Lei 12015, promulgada no dia 7 de agosto de 2009.
A primeira alteração de grande impacto trazida pela lei refere-se à unificação do crime de estupro e atentado violento ao pudor em um único tipo penal. Antes, somente poderia ser sujeito passivo do crime de estupro a mulher, visto que o art. 213 era assim redigido: ??Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça??. O homem, conseqüentemente, só poderia ser vítima de atentado violento ao pudor, tipificado no art. 214/CP. Agora, de acordo com a atual redação do art. 213, tanto o homem quanto a mulher podem ser vítimas de estupro, uma vez que ele ocorre quando alguém é constrangido, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
Observa-se que o antigo art 214 foi revogado pelo art. 7° da Lei 12015, fato que, ao contrario do que muitos poderiam pensar, não configura abolitio criminis. A referida revogação não pode ser incluída nas causas extintivas da punibilidade (art 107, III, CP) porque o crime de atentado violento ao pudor não foi excluído do ordenamento jurídico, padecendo de tipicidade, mas sim incluído na descrição típica do art. 213, integrando, agora, o crime de estupro.
Por conta dessa fusão entre os dois crimes acima analisados, ocorreu o fim do concurso material entre estupro e atentado violento ao pudor, configurando, de acordo com o parágrafo único do art. 2°/CP , um benefício para os réus. Dessa maneira, aquele que praticar conjunção carnal e outros atos libidinosos mediante violência ou grave ameaça deverá responder por um único crime, o de estupro, haja vista que agora ele se caracteriza por ser um tipo misto alternativo, segundo ensinamentos de Rogério Greco.
O art. 223 do Código Penal, que previa as hipóteses de estupro qualificado, também foi refogado. O legislador infraconstitucional preferiu, por meio de uma redação mais técnica, abordá-las em parágrafos no próprio artigo. Por conta disso, ficou assim redigido o referido art. 213:
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos
§ 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos
§ 2o Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
A segunda alteração trazida pela Lei 12015 refere-se ao art. 215 que, antes denominado ??posse sexual mediante fraude??, passou a tipificar o crime de violação sexual mediante fraude. A redação original do artigo determinava que o agente deveria ficar sujeito à reclusão de 1 a 3 anos quando tivesse conjunção carnal com mulher honesta mediante fraude. A Lei 11106, de 28 de março de 2005, suprimiu, por sua vez, a palavra ??honesta?? do artigo, visto que a aferição da honestidade da mulher não mais correspondia à realidade social da população brasileira em pleno séc. XXI.
A Lei 12015, por sua vez, modificou significativamente o artigo, unificando-o com o antigo art. 216 e estabelecendo que ficará sujeito à reclusão de 2 a 6 anos o agente que tiver conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima. A leitura do artigo permite aferir que agora, assim como no crime de estupro, tanto o homem quanto a mulher podem ser vítimas de violação sexual mediante fraude. A parte final do artigo, em destaque, pode confundir o jurista na hora da aplicação da pena. Deverá o sujeito ativo ser condenado pelo art 215 ou pelo art. 217-A, §1°? De acordo com Guilherme de Souza Nucci, o elemento diferenciador dos dois crimes será o grau de resistência da vítima. Estando esta sujeita a uma resistência relativa, sendo possível considerar um certo grau de entendimento para a realização do ato sexual, responderá o agente pelo crime de violação sexual mediante fraude. No entanto, se a vítima não puder opor nenhuma resistência, estando sem a menor possibilidade de compreender a realidade dos fatos, responderá o agente pelo crime de estupro de vulnerável.
A grande mudança trazida ao art. 215 pela Lei 12015 foi em relação ao parágrafo único, o qual estabelecia que a pena seria de reclusão de 2 a 6 anos caso o crime fosse cometido contra mulher virgem menor de 18 e maior de 14 anos de idade. Na época em que referido parágrafo foi editado fazia muita diferença para a sociedade o fato de a vítima ser virgem ou não, pois este era um atributo de extrema importância na valorização da mulher. Atualmente, acredito que essa distinção não faria o menor sentido, atentando inclusive contra o princípio constitucional da isonomia, uma vez que a circunstância de o sujeito passivo ser ou não ser virgem não altera a gravidade da ação delituosa. Além do mais, ao ser incluído, na atual redação da lei, o homem como sujeito passivo, ficaria totalmente descabido o aumento da pena baseado no critério da virgindade, haja vista a sociedade nunca ter cobrado esta condição ao sexo masculino.
Com a nova Lei, o parágrafo único do art 215 passou a prever a aplicação da pena de multa, cumulativamente à de reclusão, caso o agente cometa o crime com o intuito de obter vantagem econômica.
A terceira modificação colocou um ponto final na discussão existente entre os doutrinadores acerca da presunção de violência nos crimes sexuais cometidos contra menores de 14 anos. A maior parte da doutrina defendia que tal presunção deveria ser relativa, admitindo prova em contrário, visto que o Código Penal era de 1940. Naquela época a proteção estendida à menor de 14 anos era diversa da do início do séc. XXI, sendo inconcebível que, atualmente, toda e qualquer relação sexual ocorrida com um menor de 14 anos fosse presumidamente violenta. O STJ e o STF, por sua vez, entendiam que tal presunção era absoluta, inadmitindo prova em contrário.
Rogério Greco sempre foi defensor da presunção absoluta de violência nesses casos, afirmando que não existe nada mais objetivo que o critério da idade. Para ele, o menor de 14 anos ainda está desenvolvendo a personalidade, não estando suficientemente apto a decidir sobre seus atos sexuais.
Guilherme de Souza Nucci, por sua vez, sempre acreditou, de maneira mais acertada, ao meu ver, que tal presunção absoluta é inconcebível. Hoje em dia, é possível considerar que algumas pessoas, aos 13 anos de idade, já possuam um grau de consciência suficiente para a realização de um ato sexual. Segundo o renomado autor, ?? a lei não poderá, jamais, modificar a realidade e muito menos afastar a aplicação do princípio da intervenção mínima e seu correlato princípio da ofensividade??. Para Nucci, o legislador infraconstitucional está travado na idade de 14 anos, enquanto o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece ser criança a pessoa até os 12 anos incompletos e adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade. Por conta disso, na sua opinião, deveria existir uma uniformização entre os diplomas legais, estabelecendo que a presunção absoluta de violência existisse apenas para o menor de 12 anos, e não para o menor de 14.
O art. 217-A, conseqüência da revogação do art. 224 que previa as hipóteses de presunção de violência, veio sepultar tal discussão, afirmando que a relação sexual ocorrida contra um menor de 14 anos será sempre violenta, pelo fato de a vítima estar em uma situação de vulnerabilidade.
Deve-se observar atentamente que a presunção absoluta só existe em relação ao menor de 14 anos. No caso de a vítima ser portadora de enfermidade ou deficiência mental e não tiver o necessário discernimento para a prática do ato ou, por qualquer outra causa, não puder oferecer resistência, a presunção é relativa, dependendo da realidade fática de cada caso concreto e do grau de enfermidade ou deficiência mental da vítima.
Vale ressaltar que os §§ 3° e 4° do art. 217-A, o qual é responsável pela tipificação do estupro de vulnerável, estabelecem as qualificadoras do crime. Como conseqüência, o agente responderá com pena de reclusão de 10 a 20 anos se da conduta resultar lesão corporal de natureza grave e de 12 a 30 se a vítima vier a falecer.
Uma das mais importantes críticas à inovação do Código Penal introduzida pela Lei 12015 refere-se ao art. 218 que tipifica o crime de Corrupção de menores. Segundo ele, responde com pena de reclusão de 2 a 5 anos o agente que induzir alguém menor de 14 anos a satisfazer lascívia de outrem. Verifica-se, portanto, que quem age de acordo com a referida norma atua como partícipe do crime de estupro de vulnerável. Nos termos do art. 29 do Código Penal, quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. Como conclusão lógica, a pessoa que induz alguém a praticar estupro de vulnerável deveria responder pelo tipo penal do art. 217-A . A introdução do art. 218 representa uma exceção à teoria monística, fazendo com que o partícipe do estupro de vulnerável receba uma pena menor que o do executor do crime. Tendo em vista que a lei penal deve sempre beneficiar o réu, torna-se impossibilitada a realização de uma interpretação diferente, restando ao juiz da lei a mera aplicação direta da lei.
Outra importante alteração trazida pela Lei 12015 ao ordenamento jurídico brasileiro diz respeito à ação penal, que foi profundamente modificada. Agora, por conta do art. 225, a ação penal pública privada foi abolida, ficando como regra a ação penal pública condicionada à representação da vítima. A ação será pública incondicionada caso a vítima seja menor de 18 anos ou pessoa vulnerável.
Questão bastante intrigante relativa ao assunto ocorre no caso de a vítima, maior de 18 anos e não vulnerável, de um dos crimes tipificados no Título VI do Código Penal falecer sem possuir parentes legitimados a representarem-no perante o Ministério Público. Nesse caso, ficaria o criminoso impune, pelo fato de este não poder agir de ofício? Nosso ordenamento não trouxe uma solução para esse caso, deixando uma lacuna em aberto. No caso, acredito que deva ser deferida ao Ministério Público a possibilidade de impetrar uma ação penal pública incondicionada com o objetivo de impedir a impunibilidade do agente.
A Lei 12015 representou, embora não totalmente satisfatório, um grande avanço da legislação brasileira no sentido de acompanhar a evolução social. Constata-se, entretanto, que ela veio marcada por algumas falhas, que deverão ser corrigidas futuramente. Cabe aos doutrinadores e, principalmente, aos aplicadores do direito a árdua tarefa de conferir a melhor interpretação aos artigos, parágrafos e incisos, objetivando sempre a proteção da vítima e dos valores morais e sociais resguardados por cada tipo penal.











Autor: Mariana Machado Da Nóbrega


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