O lírico no romance "Marajó" de Dalcídio Jurandir



O LÍRICO NO ROMANCE "MARAJÓ" DE DALCÍDIO JURANDIR






















Breves
2003


































À meus pais:
Adelina Gibson Pena Pereira (Dedé )e
José Nazaré Pereira (Zezé)
que viveram, amaram e sofreram nessa
terra sem chão chamada Marajó.







AGRADECIMENTOS









À Universidade Federal do Pará e, em especial, aos funcionários, professores e alunos que atuam no Campus de Breves, que sempre me trataram com carinho e respeito;

À meus irmãos: Raimundo, Wander, Léa, Ivani e Marcelle, que me ajudaram a superar dificuldades;

À meus filhos: Camila e Daniel, pelo carinho e apoio incondicional;

À Auxiliadora, minha mulher (sem comentários);

Ao professor Dr. Guntter, por gostar tanto quanto eu de Dalcídio Jurandir.

Muito obrigado.



















"Sentemos em redor da triste mesa,
coberta de ciprestes e mortalhas,
sentemos, ai de nós, para o banquete,
isento das melhores vitualhas,
e bebamos na cuia da magia,
o vinho tinto da melancolia,
a saga dos heróis e dos canalhas."

Ruy Barata ? "O nativo de câncer"

APRESENTAÇÃO




Dalcídio Jurandir dispensa apresentação. O presente trabalho foi mais um pretexto para ler e reler uma das obras primas desse autor paraense.. A idéia surgiu quando tomamos conhecimento do trabalho do também paraense Benedicto Monteiro, que transportou para a forma de poema alguns trechos de obras de Dalcídio
Depois de selecionar vários trechos de "Marajó" e colocá-los na forma de verso verificamos a transformação ocorrida, ou seja, a descontextualização do trecho que, na forma poemática, transforma-se num texto autônomo. Daí um certo pudor em mexer demais com o texto, procurando mantê-lo sempre próximo ao ritmo da prosa original e fiel ao seu valor semântico.
O presente TCC compreende quatro partes. Na primeira apresentamos um levantamento da vida e pensamento do autor, depois uma rápida análise da obra objeto de estudo, considerando-se época e tradição literária.
A segunda parte traz um estudo do texto sob o ponto de vista dos gêneros literários, passando pelo épico e drama para finalmente chegarmos ao lírico, que é o nosso objetivo destacar no romance examinado.
Em seguida explicamos a metodologia utilizada e o embasamento teórico que nos levou a realizar esse trabalho.
Na quarta parte apresentamos uma seleção de trechos do romance em forma de poemas em versos livres ao lado do texto original.
Esperamos que este trabalho possa de alguma maneira contribuir para a divulgação da obra de Dalcídio Jurandir.




Breves, 10 de fevereiro de 2003


SUMÁRIO




DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
EPÍGRAFE
APRESENTAÇÃO
1. DALCÍDIO JURANDIR E SUA OBRAS ..................... 7
1.1 A influência do peixe frito na literatura paraense ..................... 7
1.2 A arte de pescar e a arte de cozinhar ..................... 8
1.3 Geração engajada ..................... 11
1.4 A terra encantada ..................... 13
1.5 As múltiplas dimensões da linguagem ..................... 16
1.6 A dimensão além do tempo e lugar ..................... 17
2. EM BUSCA DO LÍRICO EM "MARAJÓ" ..................... 21
2.1 ARTE PLURAL ..................... 21
2.1.1 O drama da vida: a presença do trágico ..................... 22
2.1.2 Uma história conta outras: o épico ..................... 24
2.1.3 O sopro da musa: o lírico ..................... 26
3. O EXEMPLO DE UM MESTRE ..................... 31
3.1 Da prosa ao verso ..................... 31
3.2 A expectativa do leitor diante do texto ..................... 33
4. A PROSA EM VERSOS ..................... 35
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................... 65











1. DALCÍDIO JURANDIR E SUA OBRA.




1.1? A Influência do peixe frito na literatura paraense.

Dalcídio Jurandir Ramos Pereira nasceu em Ponta de Pedras, Ilha do Marajó, Pará, dia 10 de janeiro do ano de 1909. Viveu infância pobre em Cachoeira do Arari , onde estudou as primeiras letras, depois no subúrbio de Belém, onde prosseguiu os estudos só até o segundo ano no Ginásio Paes de Carvalho. Morou um breve período no Rio de janeiro, não conseguindo emprego retornou para as Ilhas. Em suas idas e vindas entre Rio de Janeiro-Belém-Marajó, Dalcídio Jurandir foi construindo sua obra, chegou a viajar ao exterior: Chile e Rússia. Dedicou-se intensamente ao trabalho de escritor e de jornalista, tendo colaborado em periódicos de Belém e do Rio.
Em 1972 a Academia Brasileira de Letras conferiu a Dalcídio Jurandir o prêmio Machado de Assis pelo conjunto de obras.
O escritor faleceu no dia 16 de junho de 1979 no Rio de Janeiro.
No prefácio da 1ª edição de "Chove nos Campos de Cachoeira" , Dalcídio faz uma breve autobiografia, em que, num desabafo, reclama da falta de apoio ao escritor iniciante, obrigado a sobrevier comendo peixe frito do Ver-O-Peso. Foi graças a generosidade de amigos que ele conseguiu participar do concurso do jornal "Dom Casmurro" e da Editora Vecchi, conquistando o primeiro lugar com o romance "Chove nos Campos de Cachoeira" e o terceiro com "Marajó". A publicação da primeira obra foi um estímulo para se dedicar as demais, sabendo que teria que enfrentar sempre grandes dificuldades:
"E a vida do chamado intelectual na província é mais trágica do que se pensa. Bancamos bobos do rei, mas de graça. A não ser a honra dum convite para qualquer chateação literária e mais nada. O resto é o peixe frito."
Apesar das dificuldades, até mesmo de perseguições por motivos políticos, Dalcídio conseguiu publicar seus romances, com o que obteve o reconhecimento de um público restrito. Não chegou a publicar grandes tiragens e a maioria de seus livros não foram reeditados até a presente data.




1.2? A Arte de pescar e a arte de cozinhar.

Autodidata, Dalcídio Jurandir construiu sua obra com coragem e determinação. Leu muito, conheceu e conviveu com intelectuais, construiu com sensibilidade um conhecimento teórico e uma prática literária a partir de suas próprias vivências, leituras do mundo e dos grandes escritores da literatura universal, como Cervantes, Tolstoi, Balzac, Dostoiévski, etc. Não lhe escaparam Homero, os clássicos grego-latinos e romances medievais. Certamente que também não lhe escaparam de uma leitura atenta as obras de escritores da língua portuguesa. Sua obra indica uma superação do modernismo desvairado da semana de 22.
Talvez esse autodidatismo tenha sido menos por falta de recursos financeiros do que por uma sede maior de saber, de beber o conhecimento na nascente, com as próprias mãos, como se faz nas margens dos igarapés. Dalcídio confessou seu descontentamento com o ensino formal no mesmo prefácio da 1ª edição do "Chove nos Campos de Cachoeira": "Estive dois anos no ginásio. Nele desaprendi o que levara do grupo. Quase todos os professores me desanimavam."
Se conviveu com intelectuais e escritores de seu tempo, com os quais trocou idéias e formulou teorias a cerca da arte literária, foi, no entanto, na própria vivência, lutas e recordações que foi buscar material para construir sua obra:
"Fui menino da beira-de-rio, do meio do campo, banhista de igarapé. Passei a juventude no subúrbio de Belém, entre amigos nunca intelectuais, nos salões da melhor linhagem que são os clubinhos de gente da estiva e das oficinas, das doces e brabinhas namoradas que trabalhavam na fábrica.(...) Acumulei experiência, pesquisei a linguagem, o falar paraense, memórias, imaginação, indagações."
Não é difícil para qualquer leitor, mesmo um não profissional, descobrir e sentir nos romances de Dalcídio o cuidado artesanal com a linguagem e o perfeito domínio da técnica e da inovação do romance. Em todos eles flui uma linguagem pura, esteticamente construída a partir do falar caboclo. Não uma mera reprodução da oralidade picaresca, ou pelo gosto do exótico, menos, ainda, pela fácil caracterização de personagens e cor local, mas com senso artístico de quem nunca se deixou atrair pela sedução do sucesso fácil do mercado e suas leis de consumo: "Eu não sou um escritor de grande público. (...) Eu me fixo muito na linguagem, nos vagares da narrativa, no ritmo lento das cenas"
Dalcídio relatou em entrevistas à imprensa e nas correspondências as suas intenções e pretensões artísticas: "Foi a tentativa inicial de transmitir, em termos de ficção, o que vive, sente e sonha o homem marajoara. Vale como um depoimento, uma memória, uma denúncia, uma antecipação." Deixou também relatos sobre seu método de trabalho e do esforço pessoal para construir sua obra, como disse a Eneida de Moraes em 1960: "Há mais de trinta anos venho recolhendo e acumulando experiências, anotações, estudos, pesquisas, memória, imaginação, indagações, o faço ou não faço, no sentido da obra."
"Chove nos Campos de Cachoeira" foi o seu primeiro romance, publicado em 1941 pela Editora Vecchi, depois de ter ganho no ano anterior o concurso patrocinado pela mesma editora e pelo jornal "Dom Casmurro". Esse primeiro romance foi a matriz de todos os demais da série que ele denominou de "Ciclo do Extremo-Norte", num total de dez livros:
1 ? Chove nos Campos de Cachoeira (1941)
2 ? Marajó (1947)
3 ? Três Casas e Um Rio (1958)
4 ? Belém do Grão Pará (1960)
5 - Passagem dos Inocentes (1963)
6 ? Primeira Manhã (1968)
7 ? Ponte do Galo (1971)
8 ? Chão dos Lobos (1976)
9 ? Os Habitantes (1976)
10- Ribanceira (1978)
Além desses, publicou "Linha do Parque" em 1959, único romance fora da realidade do extremo norte. Nessa obra Dalcídio conta a historia do movimento operário no Rio Grande do Sul: "livro de muito amor e de uma definição, em termos de romance, que marca, sem rodeios e creio que por todo o resto da minha vida, o meu pensamento como escritor e como romancista."
Para Dalcídio, escrever era uma missão, encargo que tomou para si de representar a gente marajoara: "A eles tenho de dar conta do encargo, bem ou mal, mas com obstinação e verdade." Nunca escondeu que escrevia por um compromisso político e histórico, uma espécie de prisão espaço-temporal, que se por um lado, impôs-lhe limites, de outro, forneceu-lhe ressonância para expandir "um soluço, um canto, um gesto daquelas criaturas que procuro interpretar com os pobres recursos de que disponho."
O escritor costumava descrever-se como um pescador ribeirinho, que pesca a gosto e vai apanhando o que lhe morde o anzol, nunca sabendo se um peixe nobre ou um ordinário matupiri. Na sua modéstia costumava repetir que nunca pescou um peixe nobre como um tucunaré: "fisguei peixinho ordinário, o que me coube pescar, sorte ou desvalia, na humanidade marajoara". Como estava ele enganado em não ver que o gosto do peixe não é o que ele traz em si, mas o que lhe põe o cozinheiro, o esmeros no trato, os temperos e a arte de servir, juntando-se a isso a fome do convidado: o leitor ávido para saborear um prato inusitado. Não é como a sardinha que ele, o leitor, costuma comprar enlatada nos supermercados, mas um tempero à mão que tem cheiro de mato, sabor de maré, som de água escorrendo pelos paus, o sol ardente e o vôo da garça solitária na amplidão dos campos e mares de água doce; todos os sentidos e o envolvimento da alma integre ao êxtase de recriar e reviver a memória de seus contemporâneos, como o pajé que conhece o segredo dos encantados: "escrevi com prazer, candura e desencanto, com obstinação ingênua e saboroso desgosto". Não poderia ter feito melhor iguaria, para um tão modesto pescador saiu-se um grande e surpreendente cozinheiro.




1.3-Geração engajada.

BOSI comentando o processo de transição do modernismo da "semana" para uma nova postura literária a partir da década de 30 (1930). Relaciona fatos políticos e econômicos para concluir que no Brasil tudo continuava como antes: o tenentismo liberal logo se associa as antigas oligarquias regionais.
"O peso da tradição não se remove nem se abala com fórmulas mais ou menos anárquicas nem com regressões literárias ao Inconsciente, mas pela vivência sofrida e lúcida das tensões que compõem as estruturas materiais e morais do grupo em que se vive". (BOSI.1994.p.384).
Ainda segundo o argumento de BOSI (1994), a estética dos modernistas não estava ligada a vivência, "fez-se quase sempre in abstracto", daí que uma nova geração de escritores surgidas a partir de 1930 transpuseram a porta aberta pelos modernistas da semana com uma nova atitude diante da realidade, aproveitaram, é claro, as inovações estéticas no uso da linguagem coloquial e variantes lingüísticas regionais:
"Reconhecer o novo sistema cultural posterior a 30 não resulta em cortar as linhas que articulam a sua literatura com o Modernismo. Significa apenas ver novas configurações históricas a exigirem novas experiências artísticas".
(BOSI,1994. P-385).
Embora tenha publicado seu primeiro romance em 1941, Dalcídio Jurandir elaborou e esboçou pelo menos os seus dois primeiros romances na década de 30. Foi nessas duas décadas que o romance chamado regionalista com uma "visão crítica das relações sociais" obteve grande êxito. Destacaram-se Érico Veríssimo, Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, só para citar os escritores que atingiram grandes públicos.
BOSI (1994) argumenta que nesse período o engajamento político-ideológico foi "a tônica dos romancistas". Dalcídio não fugiu a essa regra, foi militante político e em "Marajó" deixa transparecer preferência pelos menos favorecidos, como ele mesmo disse numa entrevista: "Meus romance, sim, tomam partido. (...) Minha visão de mundo não se inspira em Deus nem no Demônio nem no Bem nem no Mal mas nesta vida em movimento, em que há classes sociais em luta."
Dalcídio Jurandir não aparece na lista elaborada pelos historiadores e comentadores da Literatura Nacional, se merece alguma citação é apenas para fazer referência a expansão do romance regionalista. BOSI, por exemplo, cita-o como o mais moderno e complexo de todos os escritores amazônicos surgidos a partir da década de 40. Somente a partir da década de 90 pode-se registrar uma nova e crítica recepção da obra. O "Colóquio Dalcídio Jurandir: 60 anos de "Chove nos Campos de Cachoeira"" que aconteceu em novembro de 2001 em Belém, Cachoeira do Arari e Salvaterra, com convidados de fora, foi um marco.
No Pará, Dalcídio foi contemporâneo de Bruno de Menezes, Ruy Barata, Mário Faustino, Eneide de Moares. Pode-se dizer que nesse período a Literatura Paraense tomou um grande impulso para firmar-se como fator de identidade cultural.




1.4? A terra encantada.

Marajó não é só uma ilha, é antes de tudo um símbolo da Identi-dade cultural do paraense. Ser marajoara é ser o autêntico caboclo comedor de farinha de mandioca, peixe seco com chibé, açaí, tacacá; dançador de carimbó, chula, lundu; contador de histórias fantásticas de bicho-homem e homem-bicho; remador, pescador, vaqueiro, pagé, tudo, enfim, o que representa o arquétipo regional. Sem esquecer que os representantes das classes dominantes também se incluem nessa identificação por razões obvias de dominação. O vocábulo marajó já remete a um tempo anterior a coloni-zação portuguesa. É uma palavra nativa que reforça essa identificação com a terra, com os ancestrais "indígenas" , dos quais seus habitantes guardam traços étnicos.
A localização geográfica dessa terra, o fato de ser uma ilha que se coloca de "través", como disse o padre Antônio Vieira, entre a briga do Rio Amazonas com o Atlântico, estimula ainda mais a imaginação e a crendice popular. Uma ilha que apresenta uma incrível variação topológica: campos, florestas, lagos, igapós, e, sobretudo, um labirinto de rios a esconder misteriosos seres encantados.
Ao retratar em suas obras o Marajó e o subúrbio de Belém, que de certa forma é extensão marajoara porque habitado pelos caboclos imigrante do interior, Dalcídio fez o registro de uma cultura que vai desaparecendo com a invasão da Amazônia por grandes projetos empresariais e da penetração das grandes redes de televisão que comercializam produtos culturais do Centro-Sul do país. Mas não se limitou, o escritor, a descrever o folclórico, o costume, o falar, etc., criou em "Marajó", obra que interessa a este trabalho, um espaço mágico, ficcional que, embora se possa traçar uma linha de semelhança (verossimilhança) com o espaço real, seja social, seja natural, não é realismo puro, é, isto sim, um mundo imaginário, onde os personagens agem, sentem e pensam e interagem com a natureza e com a cultura. É com visão crítica e com ironia que o narrador conduz o leitor através dos sítios à modo do Virgílio de Dante. O espaço fccional não deixa de ser uma imitação da natureza, entendida esta como a visão de mundo do poeta que com engenho e arte confecciona (faz ficção) um mundo paralelo que "revela a face oculta das coisas" Se há em "Marajó" uma identificação literária com o realismo-naturalismo, há também com o simbolismo, romantismo, podendo-se afirmar que há nessa obra uma síntese da tradição literária, que é expressão do romance moderno do século XX.
É verdade que os lugares citados nas obras de Dalcídio podem ser localizadas. O escritor paraense Salomão Larêdo visitou a cidade de Cachoeira do Arari e ali reconheceu casas, ruas e paisagens citadas nos romances "Chove nos Campos de Cachoeira" e "Três Casas e Um Rio". Mas o espaço desses romances é um lugar inventado, um palco ficcional onde o narrador movimenta os personagens, ora ilumina uma paragem, ora outra, para que o cenário e a ação se correspondam. "Toda obra literária autêntica traduz uma experiência humana e diz algo acerca do homem e do mundo"
Espaço e tempo se combinam por obra e gênio do artista, e jamais podem se localizados no real, porque se lá se vê os sítios, a casa, a rua, etc., o tempo, a movimentação, as sensações e os sentimentos não são os mesmos a cada leitura e a cada leitor que visita a obra.
O tempo da narrativa em "Marajó" também não se confunde com o tempo real, cronológico, cotidiano, embora se possa precisar uma certa relação com o período histórico da Primeira República, quando havia intendência, luz de carbureto, etc., referências que se fazem presente no texto. Mas o narrador habilmente conduz o leitor para um outro tempo. Um tempo mágico que é múltiplo. Está na recordação das personagens, na ironia do narrador, nas descrições dos costumes e do folclórico. Um tempo do "era uma vez" que leva o leitor ao palácio de Silvana, aos bailes de Maria do Pau, aos domínios de um senhor feudal, às ladainhas em latim, ao tempo da escravidão, à Guerra do Paraguai, à Cabanagem, ao início e ao fim do mundo.
Rui Barata na canção "Pauapixuna": com o verso: "uma saudade sem tempo ou lugar", talvez tenha dado uma pista àqueles que procuram realismo além da conta numa obra literária. Pois, como o próprio Dalcídio não cansou de declarar, sua obra baseia-se na experiência pessoal e na relação afetiva com a terra, o povo, a natureza, a cultura, por isso terá muito de sentimento, mas sem descambar para o piegas, antes demonstra uma grande capacidade imaginativa e lucidez, como no dizer do professor Luiz Costa Lima
"As palavras em um romance não são apenas signos que apontam para a realidade exterior. Elas sem dúvida que levam à realidade mas a uma realidade cuja inteireza não pode ser confundida com a socialmente dada. Por assim dizer, a palavra ficcional viola a realidade para melhor alcançá-la e então dizê-la." (p. 69).



1.5 ? As múltiplas dimensões da linguagem

Até agora tratou-se da contextualização da obra de Dalcídio Jurandir sob um ponto de vista histótico-cultural. É hora de olhar o romance "Marajó" e vê o que realmente pode ser demonstrado em termos de linguagem poética, nesse caso é bom ter em mente o conselho de WELLEK & WARREN quando discorrem sobre o modo de existência de uma obra de arte literária:
"É pura e simplesmente impossível confiar no estudo das intenções de um autor, pois estas podem nem sequer representar um exato comentário aos seus trabalhos ? e, na melhor hipótese, nada mais não são o que tal comentário." (p-181)
Ainda, segundo a orientação desses mestres, a obra de arte literária pode ser analisada e descrita com base numa divisão por estratos. Eles então propões oito divisões, apoiando-se no filósofo polonês Roman Jugarden:
1 ? estrato sonoro ? eufonia, ritmo, metro.
2 ? as unidades de sentido ? estrutura lingüística formal de uma obra de
literatura, o seu estilo e a disciplina da estilística que a investiga
sistematicamente.
3 ? a imagem e a metáfora.
4 ? o específico "mundo" da poesia, por meio do símbolo e dos sistemas
de símbolos, o chamado "mito poético".
5 ? modos e técnicas da narrativa.
6 ? a natureza dos gêneros literários.
7 ? a valoração.
8 ? a natureza da história literária.
O ideal seria, claro, fazer um estudo completo levando em consideração todos os estratos como elementos da totalidade, no entanto, este TCC dará ênfase à natureza dos gêneros literários, para com trechos de "Marajó" de-monstrar, mais especificamente, a forte presença do "lírico". Não que seja necessário, evidentemente, a elaboração de um estudo sistemático para demonstrar o lírico em qualquer obra literária, pois este se revela ao leitor por um processo de identificação de "estado d?alma", por outro lado, pode-se, através desse estudo, sensibilizar o leitor para uma leitura mais atenta e um maior envolvimento com o texto de Dalcídio Jurandir.




1.6 ? A dimensão além do tempo e lugar


Era uma vez um príncipe, único herdeiro de um poderoso senhor feudal, vive feliz caçando em seu reino, sempre acompanhado de seu fiel escudeiro e de seus cães adestrados, traz sempre consigo sua potente e infalível arma. Este é Missunga. O feudo é o Marajó, onde tudo pertence ao Coronel Coutinho. Que é a lei, a justiça e o governo. Tem direito de vida e morte sobre os servos. Citamos estes elementos para demonstrar como a dimensão simbólica se faz presente no romance de Dalcídio Jurandir. A Idade Média representa sempre uma época obscura, desprovida de razão, e tudo pode ser explicado pela idéia mítica da vontade divina. A reprodução desse contexto em "Marajó" não se dá como no romantismo, aqui não há idealização de um comportamento "cortês" nem o retorno a um passado histórico. A Idade Média com seu cavalheirismo está presente em "Marajó" como uma forma de ironia, pois aqui os cavalheiros não são heróis destemidos salvando donzelas indefesa ou lutando até a morte por uma causa santa; são covardes seduzindo moças ingênuas, saqueando igrejas, prostituindo mulheres, escravizando homens. Mas aí se revelam formas de pensar e ver o mundo que são marcas arquétipos no inconsciente humano e se reproduzem no contexto social de acordo com o maior ou menor grau de alienação. Veja-se, como exemplo, o pensamento da classe dominante pela boca da personagem Manoel Raimundo, o administrador das fazendas do Coronel Coutinho: "(...) Em Marajó quem manda é a providência. Isso só melhora quando Deus mandar. No princípio do mundo não foi o diluvio?" (M:311).
O romance está cheio de referências a essa época da história da humanidade. A crença no sobrenatural, feitiços e encantamentos contribuem para a criação de um contexto mágico e revela a alma do povo. Assim se torna possível traçar um paralelo entre as histórias de Maria do Pau e Guíta, que morre sob uma árvore que lhe tomba em cima, tornando-se, desse modo trágico, uma imagem angustiante na memória de Missunga. Silvana faz paralelo com Orminda, as duas sucumbem pela tirania do pai, aquela pela ação de mandar prendê-la numa torre, esta por omissão de não a salvar. Orminda, então, é o povo sempre mantido preso na torre da ignorância.
Ramiro é o trovador, um verdadeiro cavalheiro dos romances de folhetim, livre no mundo sempre pronto a se apaixonar e salvar donzelas, coloca-se sempre do lado dos fracos e oprimidos, e sua arma é mais poderosa do que espingardas ou terçados, sua arma é a palavra poética. Ele tem o dom de transformar palavras vulgares em palavras mágicas. Um verdadeiro Dom Quixote das terras marajoaras, que enfrenta seres sobrenaturais e vive fantás-ticas aventuras. Mas não pode entrar nas fazendas: o poeta não é bem vindo na polis, já pregava Platão, porque ele representa o elementos desestruturador da ordem estabelecida.
Seguindo a pista desse mundo simbólico, a dimensão mítica do romance, criado pelo autor, encontramos Alaíde, a Terra, Hélade. Ela é a personagem maior do conjunto simbólico que constitui o "mundo" de "Marajó". A própria natureza que se entrega sem culpa para ser fecundada e, diante da força destruidora da civilização, ela insiste em permanecer viva. Os filhos de Alaíde não nascem para a civilização, ao morrerem estão se integrando à natureza, seus filhos são os frutos da terra. Esses frutos estão condenados a não crescerem, a Terra não consegue mais fazer seus frutos se desenvolverem As árvores, os bichos, as águas, tudo é parte de Alaíde:
"Alaíde podia ficar ali, de bubuia, imóvel, os peixes passando por cima e os taperebás caindo como se quisessem deixar em erra tão inesperada e tão bela, sementes para uma estranha e mágica fecundação." (p-144).
Essa simbiose fica bem explicita no final quando Orminda morre nos braços de Alaíde. A Terra como o único e último refúgio do Povo. No dia seguinte a morta será sepultada.
"Orminda tentou erguer a cabeça. (...)
- Um sono...
Alaíde amparou-a e os cabelos da enferma desmancharam e se derramaram pela borda da rede.
Deitou-lhe a cabeça num rolo de panos, cantou o acalanto bem baixinho e murmurou:
- É Alaíde que está aqui, mana. Dorme que amanhã tu me conhece. Dorme... Mana..." (p- 363)
"Marajó" é extremamente rico e complexo em sua estrutura simbólica que mereceria um estudo aprofundado sobre esse prisma. O objetivo aqui foi apenas de demonstrar essa dimensão na obra de arte literária. Aqui, de novo, chamamos a atenção para a questão dos gêneros e da tradição literária, porque um estudo de uma obra literária não pode deixar de lado essas questões,
"aquilo que Henry Wells (in New Poets from Old, de 1940) chamou de "genética literária" "(...) Os livros são influenciados por outros livros; os livros imitam, caricaturam, transformam outros livros ? e não apenas aqueles que lhes sucedem em estrita ordem cronológica."." (WELLEK. P-294).
Sem perder de vista que este trabalho tem a intenção de ressaltar a dimensão lírica do romance "Marajó",. incluímos a dimensão simbólica, ou mítica, porque ela ajuda a esclarecer a dimensão ontológica que subjaz aos planos de gêneros. É nessa dimensão que o ser encontra a si mesmo e pode, então, comunicar-se:
"Ao fundar aquilo que permanece, a poesia revela a essência humana na concreta finitude do homem como ser-no-mundo. Nela o homem "recolhe-se no fundo de seu Dasein". Nesse recolhimento, que o sujeita ao risco do estranho, e que descerra o âmbito do desvelamento, tal como a maré vazante descerra a praia, a palavra poética dimensiona o mundo e o próprio homem." (NUNES. P-268)
BOSI (1994) já focaliza essa "consciente interpenetração de planos (lírico, narrativo, dramático, mítico)" como um caráter da literatura de pós-guerra, o qual, segundo ele, "estava implícito na revolução modernista". Vale lembrar que "Marajó" foi escrito em 1939, embora tenha sido publicado somente em 1947, após o final da II Guerra.



2 - EM BUSCA DO LÍRICO EM "MARAJÓ"






2.1- ARTE PLURAL

A moderna teoria literária admite que em toda obra literária estão presentes todos os gêneros, que não há texto com pureza de gêneros e que os autores modernos não estão submetidos a regras de gêneros. A controvérsia reside justamente em se delimitar em que grau um obra participa dos diferentes gêneros literários. Para isso é preciso primeiro admitir a existência dos gêneros, os quais historicamente são reconhecidos os seguintes: lírico, épico e dramático. Não se admitindo mais aquela caracterização de gênero por comparação e inventário de obras clássicas, as quais seriam apenas tipos literários com diferentes graus de predominância dos três gêneros. Veja-se o que diz STAIGER
"Nossos estudos levam-nos à conclusão de que qualquer obra autêntica participa em diferentes graus e modos dos três gêneros literários, e de que essa diferença de participação vai explicar a grande multiplicidade de tipos já realizados historicamente". (1997. p-15) ):
No mesmo estudo STAIGER defende uma definição do lírico, do épico e do dramático e, apoiando-se na filosofia de Husserl e de Heidegger, afirma que a idéia que temos dos gêneros não oscilam. O que pode variar é o valor das obras "que tentamos julgar de acordo com esta idéia; uma pode ser mais ou menos lírica, épica ou dramática que a outra."" Por exemplo, "Marajó" é um romance (gênero substantivo) e enquanto narrativa (gênero adjetivo) seria épico.
A obra que está em foco é "Marajó", romance de Dalcídio Jurandir. Ela apresenta complexidade tal que seria temerário rotulá-la com "predominância" de qualquer dos gêneros. Melhor se faz apresentando uma análise da predominância dos gêneros de acordo com uma idéia de relação entre os gêneros pela forma, pela linguagem utilizada e os tempos presentes na narrativa.




2.1.1 ? O drama da vida: a presença do trágico


Pode-se precisar em "Marajó" um tempo cronológico que coincide com a movimentação das personagens no ambiente (ou cenário) marajoara. Este tempo pode ser recuperado num resumo dos fatos narrados: Missunga vai a Ponta de Pedra; vai a casa de Alaíde; vai ao comércio de Calilo; visita o velho Felipe; leva Alaíde para viver no sítio Felicidade, corteja Guíta, assim sucessivamente até o final do romance. Este é um tempo linear, sincrônico, o tempo dramático que se desenvolve do presente para o futuro, comandando as personagem e direcionando-as em suas performances até a sanção.
Há uma linha de causa e efeito entre os fatos, pois a ação seguinte é sempre uma conseqüência de uma ou várias ações anteriores: Orminda entrega-se a Lafaiete para não ter que enfrentar a ira de sua mãe, conseqüência da embriaguez na sessão espírita realizada por Manoel Rodrigues, assim por diante a vida de Orminda vai se desenrolando numa seqüência de causa e efeito até o seu fim. O mesmo acontece com Missunga, que seduz Guíta, depois foge para a região dos lagos, com a morte de Guíta ele se refugia em Alaíde longe da civilização, de onde retorna para assumir o papel de coronel.
O irônico e o anti-trágico estão presentes em "Marajó".Têm como protagonista Missunga, a personagem que logo no início da história se revela pouco a vontade, enquanto filho de fazendeiro, com o futuro papel social que o espera. Vive uma crise de identidade. Não sabe mudar seu destino, não tem forças nem coragem suficiente para fazer a revolução que sonha. No final, aceita até com certa alegria a morte do pai e toma posse da herança que inclui as terras, os bois e as gentes, ou seja, torna-se exatamente o que seu pai era, e encara isso como a sua fatalidade. Um determinismo cínico que a personagem revela quando analisa a sua própria vida em busca de um sentido para ela: "Missunga apanhara no ar a grande palavra: Fatalidade, para explicar os champanhes, o surdo-mudo que seu parente Guilherme explorava, a morte do garçom e as crônicas do Manfredo." (p-19).
O trágico fica por conta de Orminda, a personagem que desconhece o pai, mas todos desconfiam que seja ela irmã de Missunga, portanto, filha do Coronel Coutinho. Enquanto Missunga herda a fortuna e os poderes do Coronel, ela morre vítima da vida que levou. Também ela é determinista e acha que sua sina é sofrer, ser prostituta e nunca ser amada. Mssunga e Orminda são dois destinos paralelos: ele preso na classe dominante, ela na pobreza; cada um acreditando que não poderia ser de outro jeito. "Orminda era mulher para andar nas histórias, ficar nas modinhas na beira dos trapiches, na lembrança dos homens, (...). Lenda que não se podia esquecer mais." (p.187).
Temos em mente, para essa análise o conceito de tragédia como participantes do conceito de dramático, o qual se caracteriza, entre outras coisas, por uma maneira de resolução do conflito vivido pelo protagonista, no qual há um "fracasso irrecorrível, um desespero mortífero que não visualiza salvação". Parece que em "Marajó" todos estão presos a seus destinos. E esta é a grande ironia e a grande tragédia do homem na terra marajoara: não ter a capacidade de mudar o seu destino, valendo isso tanto para os pobres quanto para os ricos, como Missunga que no final se rende ao sistema e assume seu papel de patrão. Alguns poucos que resistem são expulsos, vivem à margem do sistema produtivo, como Alaíde e Ramiro. Missunga também vive uma fase de resistência, quando tenta criar em Felicidade uma nova maneira de administração e produção e depois quando foge com Aláide para viverem numa cabana no rio da Fábrica.



2.1.2 ? Uma história conta outras: o épico

Quantas histórias são contadas em "Marajó"? São muitas, e grande parte delas não tem uma relação causal com o conflito central do romance. Elas estão ali como parte de uma teia que coloca todos, homens e mulheres, como figurantes de um sistema social, um mundo que o narrador faz questão de mostrar e, muitas vezes, deixa que se mostre por si mesmo. É o tempo épico, um tempo que se desloca para o passado através da memória e se apresenta, isto é, torna presente a história de cada personagem e assim as caracteriza psicologicamente. Missunga revive a infância de liberdade "sem limites" que ele quer recuperar e a descoberta da "fatalidade" que quer esquecer. O ódio da mãe morta persegue dona Ermelinda. Nhá Felismina odeia os brancos pelos filhos perdidos e pelo leite que serviu, como mãe-de-leite, aos filhos dos outros; Lafaiete, o tabelião, é um jogador inveterado que vive de trapaças, assim por diante, se vai revelando o passado da personagem e seu estado atual.
Nessa caracterização das personagens é importante notar a descrição do ambiente circundante, este "pode ser concebido como expressão metonímica ou metafórica da personagem". (WELLEK (1955. p-275). Em "Marajó" para cada personagem há um ambiente que lhe é própria: "Alaíde chegava, descalça, por entre as sororocas. Atravessava o igarapé na maré seca, deslizava os paus lisos de lodo, pisando siris e camarões. " (M:33). Nhá Felismina: "uma tristeza miúda, seca, lhe roendo e aquela mangueira nas noites de vento sacudindo os galhos pesados..." (M:79). "Tardes de domingo, sentada na sua poltrona, no velho alpendre, D. Branca recebia as velhas comadres, as afilhadas que sentavam pelas escadas..." (M:-27). "Viu ainda Guíta, junto ao poço, encher o balde aí ficou imóvel" (M:-75). Assim se dá a conhecer cada personagem e seu "ser no mundo". STAIGER (1997) diz: " que o épico se caracteriza pela apresentação", ou seja, o autor épico gosta de mostrar as circunstâncias, os detalhes. Isso torna a narrativa monótona, mas ele evita a monotonia intercalando episódios passados com outros do presente cronológico. "O romance, como forma de arte, é efetivamente o moderno descendente da épica" (WELLEK. 1955 p- 263).
Diferente da epopéia clássica em que uma personagem conta a outra fatos do passado, em "Marajó" esses fatos são pensados pelos personagens, um diálogo telepático do narrador com a personagem. Tudo o que se passa é narrado e descrito: o pensamento, o ambiente, os objetos e utensílios Veja o que diz STAIGER (1997):
"O autor épico não se afunda no passado, (...) e sim rememoriza-o. E nessa memória fica conservado o afastamento temporal e espacial. O longínquo é trazido ao presente, para diante de nossos olhos..." (p-79)
Vejamos um exemplo desse diálogo telepático em "Marajó", repare-se como narrador e personagem (Guíta) se confundem na remorização de acontecimentos e sensações íntimas que só a personagem poderia saber, mas, em alguns casos, só o narrador saberia traduzir em palavras, ou seja, interpretá-los de modo sugestivo a compreensão do leitor.
"Voltavam as noites em que esperava Missunga à beira do poço, atrás de sua barraca. Que fez no mundo para ter o castigo daquela amizade? Amizade era a sua palavra de amor, a palavra de seu povo quando ama. Caboclo não conhece o amor pelo nome. Naquele castigo, correu, cega e tonta para os encontros com Missunga. Ele chamava com tanta malícia e gravidade, os encontros com a infância, sob o olhar de sua mãe (...)" (M:192)
Homero, na Ilíada, promete contar a história da ira de Aquiles, mas até que conte essa história narra uma série de outros episódios, sem que estes tenham uma ligação direta de causa e efeito com a história de Aquiles. Segundo STAIGER, essa autonomia das partes, ou melhor, de episódios intercalados no enredo principal, é uma característica do épico. Isso acontece em "Marajó". São um grande número de episódios intercalados na história de Missunga sem que estejam diretamente relacionados, a não ser pelo fato social, uma vez que, olhando por esse lado, as personagens representam tipos sociais e seus destinos estão ligados por uma linha de causa e efeito historicamente explicável, e essa parece ser a intenção do autor: mostrar as injustiças do sistema social. "Marajó" é uma viagem por esse mundo real e imaginário de uma Guerra de Tróia das classes sociais.




2.1.3 ? O sopro da musa: o lírico

Como já foi dito, não existe pureza de gênero nas obras e, como defende STAIGER(1997), "qualquer obra autêntica participa em diferentes graus e modos dos três gêneros literários"(p-15). Como então diferenciar o lírico dos demais gêneros numa obra literária? Não é pretensão deste TCC extrair da obra em análise o lírico puro, isso é impossível. O que podemos fazer é indicar referências líricas no texto, mesmo assim, um outro leitor ou em outro momento de leitura podemos não considerar lírico um determinado texto, pois o lírico está intimamente ligado a receptividade do leitor.
"O lírico não é incutido. Para a insinuação ser eficaz o leitor precisa estar indefeso, receptivo. Isso acontece quando sua alma está afinada com a do autor. Portanto a poesia lírica manifesta-se como arte da solidão, que em estado puro é receptada apenas por pessoas que interiorizam essa solidão." (STAIGER (1997. P-49).
Então o lírico está diretamente ligado ao "estado d?alma" do autor, quando ele solta as rédeas do inconsciente; não quer comunicar nada; não é seu desejo revelar um conflito ou tensão, rememorar o passado, tudo o que ele faz é recordar e viver naquele instante mesmo o que antes já viveu, por isso o tempo presente domina a manifestação lírica. As palavras soltas, frases coordenadas, um dizer livre e despropositado, "renúncia à coerência gramatical, lógica e formal" (STAIGER, (1997.p-51), são pistas que levam ao lírico, pelo menos a indícios de que ali pode haver um dizer lírico.
"A terra parecia subir pelos homens, bichos e árvores com o calor.
Solidão". (M:9)
O corte repentino da descrição, o pensamento parece que se interrompe. O autor abandona o fluxo descritivo e de repente inserta uma palavra solta: "solidão", como a indicar um estado anímico do autor diante da recordação de uma paisagem tão sua conhecida, uma situação tantas vezes vivida e gravada para sempre em seu ser. Essa revelação é o dizer lírico que aflora e permeia todo o texto. Nenhum autor está isento de revelar-se.
"A poesia lírica é a-histórica, não tem causa nem conseqüência, fala apenas àqueles que se encontram afinados em uma mesma "disposição anímica". Seus efeitos são casuais e passageiros como a própria disposição." (STAIGER. P-110)
Para melhor caracterizar os modos épico, dramático e lírico, costumam alguns teóricos recorrer as imagens. Pode-se visualizar o conhecido quadro "Girassóis", ou um deles, já que há variações, do pintor holandês Vicent Van Gogh. A primeira coisa que se percebe é o arranjo dos objetos, o vaso, as flores, ou seja, o modo como eles se apresentam (apresentação), isso revela um belo efeito visual, o épico. Só um olhar mais atento e reflexivo nos encaminhará para o plano dramático, que se revela na tensão causada pelo excesso de tons amarelos, parecendo querer ultrapassar o limite da distensão, fere os olhos do espectador e o atrai e prende, como os olhos de uma cobra hipnotiza sua presa e lhe tira toda a possibilidade de reação. Essa tensão chega ao máximo do limite cromático e o que o torna suportável à visão é mudança de tons e a presença de pequenos pontos verdes, como a conter a sua expansão e desintegração em manchas disformes e desconexas. Já para encontrar o lírico não é preciso nenhum esforço, basta a sensibilidade para perceber os traços livres e descompromissados com a forma dos objetos, linhas que parecem seguir seu próprio caminho, tons sobre tons que determinam o clima de equilíbrio e desequilíbrio, um ritmo cromático, como uma canção com estrofes e refrão. Então será possível perceber que ali não está só mais uma pintura de natureza morta, mas uma alma que se debate e revela o seu ser-no-mundo. Justamente por isso o lírico é o plano estético mais subjetivo e, também por isso, mais difícil de ser demonstrado, embora, como já foi dito, perceptível sem esforço, pois se revela direto ao inconsciente emocional do espectador, aí ele já não vê, apenas sente.
Reconhecer o lírico não é o mesmo que reconhecer a função poética da linguagem de acordo com a teoria de Roman Jakobson , pois esta função apenas indica a poeticidade do texto de acordo com uma concepção pragmática da linguagem, mas é uma pista, pois ""a poesia cria as suas obras no quadro da linguagem e ela as cria da matéria da linguagem", afirma Heidegger na conferência sobre Hölderlin, em que o considera o poeta da poesia." (NUNES, 1992. P-198). Como já foi dito, um poema apresenta os três gêneros. O lírico é a essência da poesia lírica. No dizer de STAIGER (1997. P-45): "Quando falamos de poesia lírica (...) em imagens, não podemos lembrar absolutamente de pinturas, mas no máximo de visões que surgem e se desfazem novamente, despreocupadas com as relações de espaço e tempo." Então são essas imagens a outra pista para identificarmos trechos líricos em "Marajó"; imagens construídas com a linguagem.
Dalcidio não quer só contar a historia dos homens, ele também tem lembranças, recordações da infância; ele também quer reviver, trazer à tona "visões que surgem e se desfazem". Como nessa passagem na página 17, final do primeiro capítulo, o andar de uma mulher a caminho do rio, um tema freqüente na poesia:
"Via-a soltando os cabelos, caminhar, vagarosamente entre as bacabeiras, na direção daquele braço escondido do igarapé que a esperava com a maré cheia. Ficou olhando, quase alheio, no mesmo abatimento. Ela foi escorregando no limo da estiva e, de súbito, tombou no primeiro mergulho, como apanhada por um bicho."(p-17)
Rapara-se que não há uma descrição de mulher, uma imagem bem formada, nada de contornos definidos. O que podemos notar é o ritmo vagaroso, palavras e imagem juntas se desenrolando, e no final se precipita com uma imagem surpreendente: "como apanhada por um bicho". Então termina e nos deixa em suspenso por um momento, também apanhados por esse súbito encantamento:
"O admirável espanto provocado pelo bem-dizer a natureza poética é o que os formalistas russos chamaram de ostrânienie, "estranhamento": um tempo de olhar para o poema, percorrendo-lhe as significações plurais e (im)possíveis, o tempo perceptivo da leitura do receptor." (CHALHUB, 1993. P-38)
A todo momento o leitor é "beliscado" por uma construção frasal inusitada. O trabalho com a palavra poética, que, ao contrário do que se pensa, resulta da experiência do trabalho com a linguagem e tem que parecer sempre que nenhum trabalho deu, tão natural e tão simples como se tivesse nascido, ali no momento mesmo da escrita, pelo sopro da musa.
Vejamos mais um exemplo das páginas 33/34:
"As folhas pingavam luar como sereno. A maré vinha vagarosa do rio, parecia descer na lua cheia. Trouxera Alaíde, como uma filha das águas brancas, os cabelos de prata, o corpo de peixe, o cheiro de aninga. Não pode evitar que Missunga a despisse, como descascasse uma fruta, tentou escapulir-se dos braços dele, as águas caíam da lua, branca era a terra, o homem, e só a noite, com peludo e escuro mistério, era o que Alaíde cobria com as mãos."
Que linguagem é essa? Não há aí nenhum arcaísmo, estrangeirismo, rebuscamento, nada que faça perder a simplicidade, são palavras vulgares, as mesmas usuais no dia a dia, mas agora em concerto mágico criando imagens inusitadas, onde tudo tem vida e cor, som, cheiro, textura. Um universo . As frases curtas e coordenadas quase não se relacionam uma com as outras, parecem soltas e, assim, impõe um ritmo rápido com as frases curtas ou mais vagaroso com as frases longas. STAIGER (1997) confirma que "nos casos em que o lírico impera (...) não há um desfecho, às vezes até termina abruptamente como interrompendo-se inexprimível." (p-70).
O uso de figuras é freqüente, a personificação ou prosopopéia está entre a mais utilizada. A natureza tem vida própria, ela também faz parte da história dos homens e com eles contracenam e dividem sentimentos. No capítulo 19 (p-146) temos um exemplo disso. O dia nasce, rio e árvores despertam; Ciloca adormece. A natureza surge forte e exuberante como a zombar do leproso. Ele vive num mundo de sonho, um mundo noturno e o quadro descritivo desse contraste entre luz e sombra, vida e morte, sonho e realidade revelam um dos mais belos momentos líricos de "Marajó":
"A luz trepou na cabeça da samaumeira bem alta como se a cacheasse de sumaúma. Leves arrepios do amanhecer n?água cinzenta, o rio estremeceu como uma cobra que se acorda.
Mais adiante, a água se despia das sombras, os estirões pingavam sombra misturada com a luz e o sereno da madrugada. Ciloca no fundo do casco não sentia frio nem que o cigarro caiu apagado debaixo do banco. Sinhazinha deslizou n?água como os peixes. Ele dormia, o rio acordava. Como se a luz viesse das águas boiando."
O texto está em prosa, mas quase podemos vê-lo em verso. As figuras, as repetições, as gradações produzem um efeito de choque, impossível passar despercebido numa leitura desatenta, não é o enredo que prende é a linguagem. Veja-se o exemplo da página 121:
"... Alaíde começou a assar as postas de carne sob as árvores, o rosto afogueado, os cabelos em pitó, diante dos alguidares de açaí, as latas de farinha e feijão, os homens que voltavam arquejantes, os moleques e os cachorros insaciáveis.
Carne, murmuravam as crianças espantadas. Carne! Disseram, com a garganta seca, os peitos doídos, a língua pesada, os homens esfalfados. Carne, cochichavam quase a medo, as mulheres grávidas, como se tudo aquilo fosse um sonho."
No segundo parágrafo do trecho acima pode se ver novamente as frases curtas enumerativas, que também estão presentes no parágrafo anterior, só que a repetição torna o último mais cadenciado, um ritmo mais regular, o que o aproxima ainda mais da forma de poema.






3 ? O EXEMPLO DE UM MESTRE.


Quando nos propusemos abordar este tema, ou seja, desvendar o lírico em "Marajó", nos espelhamos no exemplo do escritor paraense Benedicto Monteiro, que inspirado nos textos de Dalcídio Jurandir criou, ou transformou esses textos em poemas. O que ele fez é bem diferente do que apresentamos neste trabalho, embora também se apresente como transposição de tipo genérico.




3.1 ? Da prosa ao verso.

Benedicto Monteiro criou poemas, ou recriou, a partir de trechos das diversas obras de Dalcídio Jurandir, e fez o mesmo com Guimarães Rosa e Euclides da Cunha publicados no livro "A poesia dos texto (1998) . Na relação das obras utilizadas para garimpar trechos líricos não está "Marajó". Monteiro não fez uma pura transcrição de trechos, mas uma adaptação, ora como uma interpretação livre, ora como paráfrase do trecho escolhido.
A pura transcrição de um texto em prosa para a forma em verso não o torna um poema, e um poema nem sempre é predominantemente lírico. Por isso é preciso escolher com a sensibilidade de leitor e criatividade de poeta. Segue um exemplo em que Monteiro completa livremente o trecho extraído da obra "Primeira Manhã":

"... Queria dizer: Mano meu, não me leve, mano velho, pra aquela tua banda onde teu umbigo vira flor de alecrim, coroas de areia e peixe, os teus mais longes. Mas ia para a José Pio. O Coronel Braulino, deelabençoando, teve a distinta gentileza de lhe ar agasalho na José Pio.. (..)"

Agora vejamos o poema de Monteiro baseado no texto acima:

"PREGUIÇA

Mano meu
me leva
mano velho
praquela tua banda
onde teu umbigo vira flor de alecrim.

As coroas de areia
as piracemas de peixes
os teus mais longes
me chamam
de tanta falta do que fazer."
(p-35)

Os trechos selecionados nem sempre fazem parte de um mesmo parágrafo, nem de uma mesma página. Para a montagem do poema "Ivaína", por exemplo, Monteiro utilizou trechos das páginas 156, 181, 13 e 14 também do romance "Primeira Manhã".
Não nos cabe aqui fazer um julgamento sobre a qualidade dessa ousadia de Benedicto Monteiro. Poderão alguns argumentar que o texto original é sempre melhor, ou que os poema interferem na leitura do texto em prosa. Não serie esse o caso. Cabe-nos ler e aproveitar o diálogo dos textos de dois grandes escritores apaixonados pela dialeto paraense, e, sem dúvida, a iniciativa de Monteiro abre uma nova possibilidade de leitura às obras de Jurandir.
Fazer leituras e variações de obras de arte é uma prática legítima dos artistas. Pode-se ver em artes plásticas variações sobre um mesmo tema feita por diferentes artistas em diferentes épocas. Teria sido esta também uma prática dos poetas renascentistas. Na literatura brasileira há muitos casos de reescritura de obras do passado, quando se dá, então, um novo enfoque sobre o assunto da obra original. Há também adaptações de obras literárias para o cinema e televisão, o que, indubitavelmente, requer um fazer artístico, resultando sempre numa nova obra de arte, cujo valor deve ser avaliada independente do original.
Neste trabalho não nos permitimos ousadias nem recriação artística, tão somente transcrevemos trechos da prosa de Dalcídio Jurandir em "Marajó" para a forma em verso, sem qualquer alteração ou enxertos. Visamos demonstrar as qualidades líricas intrínsecas ao texto dalcidiano, e para isso seguimos o exemplo do mestre Benedicto Monteiro, sem contudo, interpretar ou recriar a obra, uma vez que este não é um trabalho artístico. No entanto, deixamos de lado algumas vezes palavras instrumentais (preposições, conjunções, pronomes, etc.) e outras que, necessárias para a coesão da prosa, não se fazem necessárias em poemas.




3.2 ? A Expectativa do leitor diante do texto.

Quanto a questão da diferença de forma entre verso e prosa, há que se ter em conta o ritmo. A prosa artística possui uma "maior regularidade na distribuição dos acentos" , mas está mais próxima da fala corrente, enquanto que o verso clássico, aquele com rima e métrica, está mais longe e, portanto, soa mais artificial. No entanto, o verso livre aproximou mais a poesia da prosa e vice-versa. Segundo WELLEK & WARREN (1995) a disposição de um mesmo texto em prosa ou em forma de versos livres influenciará o leitor, e citam os formalistas russos em defesa dessa tese:
"Se não soubéssemos pelo contexto, ou pela disposição tipográfica que nos serve de sinal, que uma passagem de verso livre é poesia, poderíamos lê-la como prosa, desta não a distinguindo efetivamente. Pode, porém, ser lida como verso, e, como tal tê-la-emos por forma diferente, isto é, com outra entoação. Demonstram pormenorizadamente os formalistas que esta entoação é sempre bipartida ou dipódica; e, se a eliminarmos, a poesia deixa de ser poesia, tornando-se simplesmente prosa rítmica." (p- 207/208).

A partir da página seguinte apresentamos uma série de trechos, de "Marajó", que consideramos líricos, ao lado de sua disposição em versos livres. São possibilidades de leitura e releitura de Dalcídio Jurandir, um autor, cujas obras não foram escritas para serem lidas, mas relidas num contínuo descobrir de novos encantos, novas possibilidades, novo entendimento. Não que ele tenha revolucionado a linguagem ou inventado nova forma de narrativa. Nada disso, como já foi dito, Dalcídio Jurandir dá continuidade a uma tradição literária, deixando nela a sua marca histórica
"originalidade é velha como o homem, traz o cunho das suas origens; e justamente aquele que está carregado de humanidade, empapado do trivial humano, é também mais homem, mais rico de alma, mais pessoal e, portanto, o mais capaz duma obra forte, sincera e verdadeira." (FRIEIRO. P-48).

Vamos, pois, ao lírico empapado do trivial humano marajoara.




4 ? A PROSA EM VERSOS

- Missunga, ó Missunga!
Coronel debruçara-se no parapeito. Um sossego no casarão. D. Ermelinda tinha ido ver a doente no Araraíana. Um picapau martelava a velha macacaubeira.
Com a cisma de haver tatu perdido ou alguma cotia nas toiças, Missunga entrava no capoeiral vizinho, seguindo o cão. Exibia ao ombro a espingarda e espreitava os esconderijos mais próximos. As tocas desertas, os ocos de pau vazios. Detinha-se, vencido, diante do mato virgem.
- Missunga, ó Missunga!
A terra parecia subir pelos homens, bichos e árvores com o calor.
Solidão.
Famaleal farejava entre as folhas moídas. Missunga voltou. O casarão do Paricatuba, com o seu escuro telhado entre coqueiros e bacabeiras, lhe dava uma impressão de fadiga e de quase ressentimento.
...........................................................................
Cruzou as mãos sobre o peito, cerrou os olhos. Fechar os olhos assim era,em alguns dias do seu tempo de menino, sentir as mãos viscosas daquele cego do Arapinã, apalpando-o. O escuro que havia nos olhos do cego avançando sobre ele. O menino sentia ao mesmo tempo como que uma febril necessidade de experimentar a cegueira, certo de que podia, com delícia, abrir os olhos, de repente, afastar as mãos do cego, e ver. As antigas folhinhas que seu pai deixava marcando um tempo morto nas paredes, entre as aranhas e as osgas tão tranqüilas e íntimas, como pessoas da família; ver as mangueiras, como se tivessem amadurecido os frutos subitamente; o cachorro dormindo nos velhos alguidares cheios de raízes e ervas, feito animal fabuloso e os negros braços, ao sol, de Rosália, a cozinheira, partindo lenha como seu indolente vagar. A claridade era violenta, nela riscava uma asa, plantas e porcos encostados nas tábuas se deixavam dominar por um mágico torpor. Mas nenhuma realidade era mais viva que o colo de Mariana em seus olhos fechados, o mau menino naquele colo se encolhia e pecava.
Ver sua mãe também, depois de um instante de cegueira. O rosto dela, mais nítido, confessava melhor a amargura e a ruína crescente.
De olhos fechados, muito bom ouvir sá Rosália bater carne cantando, apelidar as galinhas, conversar com os carneiros tão sujos, ensinar nome feio ao periquito, ralhar, batendo o pé, com o vento que, mexendo nas mangueiras, vinha tirar a roupa das cordas. Vozes isoladas no tempo e no espaço, como aquelas folhinhas, autônomas, se enchendo de uma inexplicável doçura na treva. Missunga, nessa interina cegueira, punha-se a indagar se as aranhas o espiavam ou se podiam desprender as folhinhas ao vento, desfolhar os dias, as semanas, os meses, soltar o tempo, recuperando-lhe a vida sem limite.
Sobre todas as coisas e os seres, sobre aquilo que ele chamava a escuridão da consciência, que se confundiam nessa viva sensação de treva, o cego do Arapinã volvia com as mãos inchadas. E o seu grito, no Paricatuba, quando, ao atravessar o igarapé seco, numa estiva alta, tombou na lama? Seria assim, talvez, a voz dos homens primitivos gritando o seu medo e a sua dor? Esse grito atravessou o mato e caminhou em Missunga, até hoje, subterrâneo, quando os olhos se fecham e quando o receio detém o caçador diante do mato virgem.
Longe, o mesmo picapau lavrando a macacaubeira.O escuro crescendo, crescendo até o limite em que tememos encontrar-nos unicamente conosco. A sombra do sangue dentro do olhar, as imagens do tédio e da infância misturando-se. O desejo de uma inércia em que todos os desalentos se afundassem, todos os vagos ímpetos morressem para sempre. Seria assim, talvez uma verdadeira experiência da morte, um sono no fundo do rio, o retorno àqueles terrores de menino diante do sono que o assaltava na sombra da rede sem embalo, dos sustos que Mariana lhe dava, dos latidos do cão naquela noite chuvosa em que, no barco do pai, subiu o rio morto, passando por um trapiche abandonado onde (por que teria suposto?) devia haver um menino morrendo.
(M: 10-11)


( I )
Um picapau
martelava
a macacaubeira.

As tocas desertas,
Os ocos de pau vazios.
A terra parecia subir pelos homens,
bichos e árvores.
Solidão.
Uma febril necessidade de experimentar a cegueira,
Certo de que podia,
Com delícia,
Abrir os olhos de repente e ver.



Antigas folhinhas marcando um tempo morto
Entre as aranhas e osgas tão íntimas;
Nenhuma realidade era mais viva
que o colo de Mariana,
O mau menino naquele colo
se encolhia e pecava.


Depois de um instante de cegueira,
Confessava melhor a amargura e a ruína crescente.
Vozes isoladas no tempo e no espaço
Se enchendo de uma inexplicável doçura
na treva.


As aranhas podiam soltar o tempo
desfolhar os dias,
as semanas,
os meses,
recuperando a vida sem limite?

Sobre todas as coisas e os seres
A voz dos homens primitivos
gritando o seu medo e a sua dor,
até hoje,
subterrâneo,
quando os olhos se fecham e
quando o receio detém
o caçador diante do mato virgem.

Longe,
o picapau
lavrando
a macacaubeira.

O escuro crescendo,
crescendo até o limite em que tememos encontrar-nos
unicamente conosco.


A sombra do sangue dentro do olhar,
As imagens do tédio
E da infância misturando-se.
O desejo de uma inércia em que
Todos os desalentos se
afundassem.
todos os vagos ímpetos
morressem.
Um sono no fundo do rio.


O retorno àqueles terrores de menino
Na sombra da rede sem embalo
Dos sustos que Mariana lhe dava
Dos latidos do cão
naquela noite chuvosa
em que subiu o rio morto,
passando por um trapiche abandonado
onde
(por que teria suposto?)
devia haver um menino morrendo


Missunga escorou o remo do lado e o casco deslizou na água retinta. Não deixou que Benedito remasse. Pensou logo num barho, num longo mergulho, o sono dentro do rio. Logo devolveu o remo a Benedito e com a sua pesada lassidão estirou-se ao longo da pequena montaria. Aquele igarapé era escuro, igual poço de cobra grande. Curvavam-se os açaizeiros na beirada como para matar a sede ou espiar também o que havia de mistério na maré. Lombos de tabatinga, nas margens, rachavam-se quase soltos. Aquele ingazeiro grande, com as raízes saltando da terra, como chifres de algum monstro enterrado, deixaria ouvir amanhã o barulho do seu tombo.
O sol mordia a água que se arrepiava toda, reverberando. À sombra dos matos, que se espalhava no igarapé, Missunga olhava a mataria grossa de onde saltavam japiins.
O casco deslizava, ganhou o pequeno estirão ? Benedito é um índio no remo ? saindo no rio.
O rio parecia crescer, mundiado pelo sol. Missunga pendurava os olhos nos cachos, verdes ainda, de açaí. No leve vento, sob o céu baixo do estirão, os açaizeiros bailarinos.
Metia a ponta dos dedos n?água como no seu tempo de menino, quando imaginava bichos do fundo dormindo. O rio ao sol parecia com febre. Pudessem os rios correr para o sol com o sonho dos homens, a força das árvores, o espanto e a curiosidade dos bichos! Ficaria estirado nas águas como um peixe-boi envenenado no timbó. Bem podia pensar, dentro de sua inércia, sob o vago rumor daquele remo tão ágil e flexível na água, nalguma namorada de Belém, o rosto subitamente belo de uma desconhecida, a voz de alguma antiga amante, o grito das mulheres do mundo num beco, à noite, entre bêbados e cães ladrando. A terra lhe transmitia uma espécie de estupidez amorosa e invencível, lama gostosa na alma, o hálito de Alaíde, calor, frutas rachadas no chão. (M: 12-13)


( II )

Curvavam-se os açaizeiros na beirada
como para matar a sede ou
espiar
o que havia de mistério na maré
Aquele ingazeiro grande,
deixaria ouvir amanhã
o barulho do seu tombo.

O sol mordia a água que se arrepiava toda,
o rio parecia crescer mundiado pelo sol.
No leve vento,
sob o céu baixo do estirão,
os açaizeiros bailarinos.
Imaginava bichos no fundo dormindo
O rio ao sol parecia com febre.

Pudessem os rios correr para o sol
com o sonho dos homens,
a força das árvores, o espanto
e a curiosidade dos bichos!

A terra transmitia uma espécie
de estupidez amorosa e invencível,
lama gostosa na alma,
o hálito de Alaíde,
calor,
frutas rachadas no chão.



Coronel deteve-se no meio da varanda, coçando os pés nos chinelos. Ouvia-se abrir e fechar a grande mala das roupas de cheiro de Ermelinda. Ela voltou, de roupão, indagando:
- Seu filho tirou o selo da espingarda nova, desta vez? Come-se, enfim, paca no jantar? Venha me ver nadar um pouco, ande.
Desceu atrás dela, via-a soltando os cabelos, caminhar, vagarosamente, entre as bacabeiras, na direção daquele braço escondido do igarapé que a esperava com a maré cheia. Ficou olhando, quase alheio, no mesmo abatimento. Ela foi escorregando no limo da estiva e, de súbito, tombou no primeiro mergulho, como apanhada por um bicho. (M: 17)





( III )
.

Ouvia-se abrir e fechar a grande mala
Das roupas de cheiro de Ermelinda.
Ela voltou de roupão:
Desceu atrás dela,
Via-a soltando os cabelos,
caminhar,
vagarosamente,
entre as bacabeiras,
na direção daquele braço escondido do igarapé que a esperava com a maré cheia.
Ela foi
escorregando
no limo
da estiva
E,
de súbito,
Tombou no
primeiro
mergulho,
Como
Apanhada
por um
bicho.




Levou-a uma noite para o igarapé. As folhas pingavam luar como sereno. A maré vinha vagarosa do rio, parecia descer na lua cheia. Trouxera Alaíde, como uma filha das águas brancas os cabelos de prata, o corpo de peixe, o cheiro de aninga. Não pode evitar que Missunga a despisse, como descascasse uma fruta, tentou escapulir-se dos braços dele, as águas caíam da lua, branca era a terra, o homem, e só a noite, com peludo e escuro mistério, era o que Alaíde cobria com as mãos. (M:33-34)
( IV )


Uma noite
as folhas pingavam luar como sereno.
A maré vinha vagarosa do rio,
parecia descer na lua cheia.
Alaíde, como uma filha das águas brancas,
os cabelos de prata,
o corpo de peixe,
o cheiro de aninga.
as águas caiam da lua
branca era a terra,
o homem,
e só a noite, com peludo e
escuro mistério,
era o que Alaíde cobria com as mãos.






Queria cobrar a tostão as vezes que foi juiz de festa de santo na vila. E os fatos de alpaca? Calcule quanto uma camisa naquele tempo? Seu Felipe tinha o gosto da imaginação. D. Januária no quarto, parava de se embalar, dizia, cuspindo:
- Assim, Felipe, já não. Tu já passa do limite. Faz por menos.
Rangiam as cordas da rede na viga. A voz dela atravessava a parede esburacada e escura, como se viesse daquele antigo tempo de que Felipe falava. Ela rezava pelas almas, pensava nas possibilidades de ter roçadinho. Tempos antigos de farinhar, que bom uma macaxeira, um tucupi, mandiocas para ralar, goma para tacacá, beijus. Ao lado da rede a almofada sem bilros, quanta renda fizera! Debaixo da rede, o cachimbo vazio.
Nem vela havia mais para o oratório, o pesado oratório, grande como um altar. Seu Felipe em compensação contava de visagens. A lembrança dos mingaus se misturava na correria dos bichos que malassombravam caminhos, roçados, trapiches, as noites de pesca. Era o lobisomem com os botos atravessando a floresta. Mundiadas com a serenata dos botos brancos, fugiam mortas de amor e de feitiço as mulheres em tempo de lua e as moças mal-a-mal nascendo os peitos. Catitus pulavam do mato saltando e dançando. Irapuru vinha cantar nas bacabeiras e quem deixaria de acreditar que a cobra grande encostava, meia-noite, no Porto Santo para carregar lenha como um navio todo iluminado?
D. Januária tinha insônia, e se, por vezes, censurava no marido o exagero das histórias, não negava a si mesma que ele sabia muitas e muitas coisas deste mundo. (M: 36)



( V )

Seu Felipe contava de visagens.
As lembranças dos mingaus se misturava
na correria dos bichos que
malassombravam caminhos.
Era o lobisomem com os botos
atravessando a floresta.

Mundiadas com a serenata dos botos brancos,
fugiam mortas de amor e de feitiço
as mulheres em tempo de lua e as
moças mal-a-mal nascendo os peitos.

Catitus pulavam do mato saltando e dançando.
irapuru vinha cantar nas bacabeiras e
quem deixaria de acreditar que
a cobra grande encostava,
meia noite, no Porto Santo
para carregar lenha
como um navio todo iluminado?

D. Januária não negava a si mesma
que ele sabia muitas e muitas
coisas deste mundo.





No sororocal, o leproso rebolava-se num desespero. Era sempre assim quando a saudade de Sinhazinha o angustiava, lhe coçava a carne podre, lhe mordia os nervos, contava o povo. Sinhazinha viera fugida. O pai, Dr. Batista, juiz de direito, fincou pé contra o namoro. Não entregava a filha a um serenatista, um padeiro, um tocador de violão, um "frasqueira". A pequena bateu o pé que casava, saiu de casa do juiz para o amor debaixo do sororocal. Morreu de parto.
(...)
Ciloca, falava o povo, se deitava nas sororocas teimando recuperar aquela manhã de amor, ouvir o gemido de Sinhazinha, os soluços. O cheiro de Sinhazinha lhe ficou na alma e nas chagas como um visgo. No breu da noite, Sinhazinha lhe aparecia das orações de S. Cipriano, como um corpo feito de mangaba, leitoso e travoso, restituindo-lhe aquela manhã nupcial. (M: 46-47)




( VI )

No sororocal,
o leproso rebolava-se num desespero.
Era sempre assim
quando a saudade o angustiava.

Ciloca, se deitava nas sororocas
teimando recuperar aquela manhã de amor,
ouvir o gemido de Sinhazinha,
os soluços.
O cheiro de Sinhazinha lhe ficou na alma e
nas chagas como um visgo.

No breu da noite,
Sinhazinha lhe aparecia
das orações de São Cipriano,
como um corpo feito de mangaba,
leitoso e travoso
restituindo-lhe aquela manhã nupcial.








Missunga esperava que Nhá Benedita amassasse o açaí. Ciloca tinha lhe tomado tempo. Pensou em Alaíde. Alaíde se delia no braço dele como sapotilha madura. Gostava d?água como filha de lontra, tomava banho no pino da maré como se a maré enchesse só para ela. Ficava com água até o peito lambendo-lhe os seios e cantava. Missunga dizia que era o canto da maré cheia que Alaíde cantava. Nhá Benedita, a preta doceira, amassva o açaí. Os quartos dela se mexiam, peitos, braços indo-e-indo no velho alguidar. Nhá Benedita! Suas cadeiras de almofada buliam e rebuliam no tempo do lundu, do coco. Tempo de vapor de roda. Era nova e por isso cativeiro de sua mãe bom tempo era. (M: 47)






( VII )

Nhã Benedita amassava o açaí.
Os quartos dela se mexiam,
peitos, braços, indo-e-indo
no velho alguidar.

Nhá Benedita!
Suas cadeiras de almofada
buliam rebuliam
no tempo do lundu,
do coco.
Tempo de vapor de roda.
Cativeiro de sua mãe
bom tempo era.






Vinte séculos de fé amassados de superstição e humildade saindo com um travo na voz dos rezadores. O latim perdia o mofo, a árida exatidão, a rabugem de sua velhice para ficar mesmo lingua de ladainha na boca dos capitulantes.
(...)
A ladainha lhe trazia a voz de Orminda fazendo coro, aquela voz o denunciava, ia contar outras histórias aos escravos mortos, raízes no velho cemitério, não ouviam mais.
Seus sofrimentos humildes demais para subirem ao céu, ficavam sangrando no chão. Ouvia Agnelo que, ainda bêbado, rezava, como um bêbado de Deus, com uma voz quase um grito num tom de blasfêmia como se prometesse derrubar os altares e arrancar o manto de Nossa Senhora para os curumins, que cada vez mais entristeciam na poeira do Campinho. Não rezes mais, Agnelo. Não cantes mais, Orminda. Tua voz nasceu para o coro pobre da velha igreja. Talvez rezes pelo teu irmão na contra-costa. (M:.51-52)


Antes de entrar no igarapé do Paricatuba, o casco balançou embalado pelas mãos da maré cheia. Missunga parecia adormecer. Viu, Guíta no macuru, como um berço, em que ela se embalava. O sono sob a voz de Mariana, a toada de Víctor Néua, o folião, tão aflita, subia no embalo das águas, ó mortas ladainhas! (M:.56)


( VIII )

Vinte séculos
de fé amassados de
superstição e humildade
saindo com um travo
na voz dos rezadores.
O latim perdia o mofo,
a árida exatidão,
a rabugem de sua velhice
para ficar mesmo língua de ladainha
na boca dos capitulantes.

A ladainha
trazia a voz de Orminda,
Aquela voz o denunciava,
ia contar outras histórias
aos escravos mortos,
raízes no velho cemitério,
não ouviam mais.
Seus sofrimentos,
humildes demais para subirem ao céu,
ficavam sangrando no chão.

Agnelo, rezava
como um bêbado de Deus,
Com uma voz quase um grito
num tom de blasfêmia
como se prometesse
derrubar os altares e arrancar
o manto de Nossa Senhora
para os curumins.
que cada vez mais
entristeciam na poeira.

Não rezes mais, Agnelo.
Não cantes mais, Orminda.

A toada de Víctor Néua,
tão aflita,
subia no embalo das águas,
ó mortas ladainhas!






Estava descalça, com um vestido de chita desbotado, salpicado de tijuco. Os olhos pareciam machucados de insônia. E ele tomou o café bebendo aqueles olhos também.
... Lá dentro os cipoais, o escondido, os folhedos macios cheirando a lacre e a baunilha, os puruízeiros davam seus frutos silvestres parecidos com uvas. Chupavam puruí juntos. Agora havia dois puruís bem pretos, desfazendo-se de maduros, naqueles olhos. Maré enchendo, a ansiedade subindo. Exibia um porte de filha de tuxaua, alta, carnuda, peito cheio. (M:73)
E agora daqueles sofrimentos e trabalhos surgia Guíta com aquela leve penugem nos braços. A nesga de carne saindo do colo tinha um moreno que devia se macio, fácil de arrepiar. Havia aqueles olhos machucados, cor de insônia. Sua voz sem o acento nordestino do pai, era talvez a fala da mãe, das Ilhas, lenta, com uma ponta de ternura em certas palavras, num certo jeito esquivo de dizer. Pegar Guíta pelo braço, levá-la arras tando para o fundo do mato, mesmo que imediatamente viesse mêstre Amâncio, partisse com o machado os dois pelo meio. Guíta lhe estendeu a mão que se amoleceu indiferente na dele. Não havia mais a lua, as saúvas, o rato encantado naquele sorriso, naqueles olhos, naquela voz de remo maneiro cortando a água quieta, e ninhos desfazendo-se ao vento. Missunga viu que ela trazia no pescoço um trancelim ? de 1$500 ? com uma medalha. (M: 74)
Não era a menina que ria, mas a moça que, por não compreender, tivesse por isso mesmo só motivos para rir. Aquela medalha era a lua já morta. A menina devia estar esquecida no funco do baú. Aquele corpo de moça tinha misteriosamente desassossegos. Em vez de uma lua na caixa de fósforo havia um corpo naquela saia encarnada da pimenteira, um quarto, o banheiro de folhas de açaizeiro para esconder no banho aquela intimidade tão conhecida pela mala aberta, e pelos santos do oratório de miriti. (...)
Viu ainda Guíta, junto ao poço, encher o balde e aí ficou imóvel, o balde na mão, bisbilhotando algum ninho oculto nas folhagens. O papagaio voou da cozinha, pousou no ombro dela. A saia encarnada, sobre a pimenteira, lembrava o olhar espantado dos santos no oratório, a mala aberta no quarto, as plantas grelando no banheiro de folhas. As pimentas se tornariam maduras mais depressa debaixo da saia encarnada. (M:75)

( IX )

Olhos machucados de insônia.
dois puruís bem pretos,
desfazendo-se de maduros

Exibia um porte de filha de tuxaua,
com aquela leve penugem nos braços.
a nesga de carne saindo do colo
tinha um moreno macio,
fácil de arrepiar.

Naquela voz de remo maneiro
cortando a água quieta
e ninhos desfazendo-se ao vento.
a menina devia está esquecida
no fundo do baú.

Aquele corpo de moça tinha
misteriosamente
desassossegos.












( X )

Havia um corpo
naquela saia encarnada da pimenteira,
intimidade
tão conhecida pela mala aberta,
e pelos santos do oratório de miriti.

As pimentas
se tornariam maduras mais depressa
debaixo da saia encarnada.






Tranqüilo azul da tarde imóvel entre as árvores Missunga esperava Alaíde na barraca. Guíta lhe aparecia da infância entre goiabeiras e saúvas. As goiabas bichadas eram doces, a lua brincava com os peixes, o machado do mestre Amâncio, reluzindo de seiva, sangrava os troncos. Mandara Benedito levar uma carta para Guíta. Ela não compreenderia certamente. Sim, que ali só havia cilada, o jogo de se falar da infância... Guíta, naquela tarde, estaria inclinada sobre o poço como se a água lá do fundo a fascinasse..
Alaíde acabara de despescar o cacuri, surgia com a enfiada de peixes no ombro e o cheiro da mará, das pescadinhas vivas, do mangue. Missunga via Guíta levando o balaio de comida para o pai e os irmãos madeireiros. No caminho um cabloco saltaria da capoeira e agarraria a moça, carregando-a sobre as estivas de juçara. Depois, na barraquinha mal coberta e mal tapada, Guíta acenderia a lamparina, uma candeia de azeite de andiroba.
O homem arma a rede, o vento faz tombar os taperebás na maré, espantando os camarões, as guaribas rezam uma reza nupcial. O vento soprando pelas palhas da parede apaga a lamparina, e o amor, talvez fosse para Guíta o mesmo que cair de repente no poço. (M: 85).


( XI )

Tranqüilo azul da tarde
imóvel entre as árvores.
Guíta aparecia da infância
entre goiabeiras e saúvas

As goiabas bichadas eram doces
A lua brincava com os peixes
O jogo de falar na infância...

E o amor,
talvez fosse
cair de repente no poço.





Missunga desdobrou o jornal apanhado do chão, se aproximou de Alaíde que lhe pediu:
- Leia, ande.
O jornal lhe dava tanta confusão aos olhos. Naquele papel grande as letras tão miúdas, tão juntas, tão numerosas, dançavam , eram como muitos caroços de açaí espalhados numa esteira, como as estrelas do céu. Pediu a ele: Leia. Me conte o que diz isso, apontando com o dedo sangrento as letras mais graúdas e as legendas das gravuras que lhe podiam interessar. Perguntava com uma hesitante e pueril curiosidade, com uma espécie de desconfiança ou pudor que era, às vezes, mais do que indiferença, desdém. Prazer íntimo de dar trabalho à língua dele, de achar estúrdio e sem jeito que aqueles sinais, riscos e pingos fossem nomes, coisas, casos, histórias, palavra nunca escutada, cada palavra tão sua conhecida. Fazia um gesto de quem se lembrava, ao mesmo tempo enxotava o cão que lhe disputava os peixes:
- Ache aí "açuca". Cate a palavra "pêxe".
Ele fixou o olhar naqueles lábios: pareciam mais grossos, mais vermelhos, o urucu os tornava ásperos, selvagens.
- Não acho.
Mas se você não tirou o olho do meu beiço como que podia achar. Queria achar no meu beiço? Nunca viu? Abom! Procure "doce".
- Pronto. Achei açúcar.
- Hum. Deixe ver. Não vejo nem uma açuca nessa letra. Xa vê se é doce...
Provou as letras e obteve, com a graça, um triunfo sobre Missunga. (M: 86-87)

( XII )


Naquele papel grande as letras
dançavam
como caroços de açaí
espalhados numa esteira,

Apontava com o dedo as letras
mais graúdas
com uma espécie de desconfiança,
desdém
Prazer de dar trabalho à língua
de achar estúrdio e sem jeito
que aqueles sinas, riscos e pingos
fossem nomes, coisas, casos, histórias,
palavra nunca escutada.

Fazia um gesto de quem se lembrava
ao mesmo tempo enxotava o cão.
- Açúcar.
- Xa vê se é doce...
Provou as letras e obteve
um triunfo.




Ao pensar em Orminda quis pedir a Missunga, quando fosse à vila, trouxesse a amiga. Se deu com ela desde a primeira vez que conheceu, nem trancelim nem cinto queria se Orminda aparecesse para comer um peixe com ela, conversarem. Orminda a lhe ensinar a fazer um friso na blusa, ou dobrar uma alça. Mssunga continuou: baton também compraria. Alaíde, no palacete, teria saudade do cacuri, do peixe pulando no fundo da montaria ou na sua mão. Os pensamentos vêm e vão como aqueles galhos de pequiazeiro no vento.
Peixe cozido, sal, alfavaca, limão. Guíta teria jogado a carta no poço? Dado a carta para o papagaio brincar? Ou guardado entre os seios? Bom, guardada entre os seios. Por que escrevera, por que tamanho e rídiculo impulso se nada mais havia de sua infância naquele corpo curvo sobre o poço? Ela fizera com as recordações de Paricatuba, o que faziam certas mães, no Pará, com o nó umbilical de seus filhos quando cai: queimam no fogareiro para que as crianças sejam felizes. Guíta, por certo, para ser feliz, teria de queimar aquele nó de infância que os ligara e caíra, do contrário haveria de se lembrar sempre de Missunga e assim a carta seria o primeiro sinal da partida da moça para o mundo onde, estorcendo-se com o veneno, acabaria aos pés do marinheiro negro. Levaria Alaíde para a América do Norte. Ela e duzentos contos, - algumas boiadas ? e seria a sensação em Nova York ou Paris! Alaíde exibindo pena de arara na cabeça, nua entre peixes num aquário, índia marajoara, dada de presente dentro de uma igaçaba de Pacoval a qualquer naturalista alemão.
Sesta, os peixes, o sonho ? mais chicória e mais pimenta no molho, Alaíde. Iriam para os campos de Arari domar jacaré nos lagos e laçar os búfalos bravios.
- Saia desse seu sono, abão!
Missunga escutava como se ela falasse do meio do rio, numa embarcação ao sabor da vazante. Aos poucos, cenas de vaqueiragens, as escrituras do pai, Marta acuada no muro do cemitério, donzelas que seu pai deixava, no campo e na beirada, caídas e abertas como os peixes de Alaíde, despertaram-no confusamente. E deu com o olhar de Alaíde, tão parado, não entendeu o que havia nele, de triste, um olhar que não se repetiria mais, logo mudou, como surpreendido ou culpado. (M:87-88)
( XIII )

Os pensamentos vêm e vão
Como aqueles galhos do pequiazeiro no vento.
Peixe cozido, sal, alfavaca, limão.

Levaria Alaíde para a América do Norte.
Ela e duzentos contos
Sensação em Nova York ou Paris!

Alaíde exibindo pena de Arara
Nua entre peixes num aquário,
Índia marajoara,
Dada de presente
Dentro de uma igaçaba de Pacoval
A qualquer naturalista alemão

Mais chicória e mais pimenta no molho.
Iriam para os campos do Arari
Domar jacaré nos lagos
E laçar os búfalos bravios.

Deu com o olhar de Alaíde tão parado,
Um olhar que não se repetiria mais.







... O quarto se enchia de fumaça dos cachimbos. Uma doença que ninguém sabia. A velha cega tinha a voz sumida e permanecia à cabeceira do marido, com o rosto fundo, a mão presa à beira da rede como a amparar-se. Que silêncio. Que calor. Somente lá fora os passarinhos faziam um doce barulho nas árvores.
Um doce barulho.
A velha sabia: a sua cegueira era a claridade do desencarne que chegava. Sua reza ficou tão silenciosa como o andar vagaroso da morte. Ela e seu velho nada mais queriam deste mundo. A carne é breve, a alma imortal. No fundo da rede, seu Felipe jazia, os olhos cerrados, a testa reluzente sob as moscas.
(M: 106).




( XIV )



Um doce barulho.
a carne é breve
a alma imortal.






Inesperado e inexplicável acontecimento. No rio, na vila, nos sítios próximos, n?"O Vento", corre a notícia: Missunga quer cem homens para trabalhar em Paricatuba, nas antigas terras de seu Felipe. Vinte e seis apareceram.
(....)
Os homens sorriam, com ar de de desânimo e cansaço, os rostos escuros.
- Os machado. As enxada. As foice.
- Ah! Vocês não trouxeram? Eu pensava...
Gritou por Benedito. Fosse buscar todo o estoque de ferramenta da loja, tudo que houvesse. Chamou um dos trabalhadores pra levar uma nota ao Calilo. Tinha pressa.
(...)
Os homens atiravam os sapatos ao canto, derrubavam o mato aos gritos, as mulheres nos taperis ou nos caminhos preparando a comida. Moleques comiam terra, obravam no chão, cuspiam, com febre, o quinino, furtavam tabaco e cigarro das palhoças e se escondiam pela capoeira, curtindo o acesso do paludismo.
Quando chegaram as vacas velhas das fazendas e sangraram nas palhas de juçara e no terreiro limpo, Alaíde começou a assar as postas de carne sob as árvores, o rosto afogueado, os cabelos em pitó, diante dos alguidares de açaí, as latas de farinha e feijão, os homens que voltavam arquejantes, os moleques e os cachorros insaciáveis.
Carne, murmuravam as crianças espantadas. Carne!, disseram, com a garganta seca, os peitos doídos, a língua pesada, os homens esfalfados. Carne, cochichavam quase a medo, as mulheres grávidas, como se tudo aquilo fosse um sonho. Missunga, suado e afoito, mandava, alegremente, suspender os quartos sangrentos nos galhos das árvores, quando lhe trouxeram carta de Belém.(M: 120-121)



( XV )

Inesperado e inexplicável acontecimento
No rio , na vila, nos sítios,
N?"O Vento" corre a notícia
Os homens sorriam
Com ar de desânimo e cansaço.
Os machado
As enxada
As foice

Tinha pressa.
Homens derrubavam o mato
Mulheres preparavam a comida
Moleques comiam terra
Os alguidares de açaí
As latas de farinha e feijão
Homens, moleques e cachorros
Insaciáveis.

Carne, murmuravam as crianças.
Carne!, disseram os homens
Carne, cochichavam as mulheres
Como se fosse um sonho






Alta noite chamou a companheira que ressonava. Queria andar, espalhar a sua insônia pela noite, só assim poderia recuperar o domínio de si mesmo, estar livre e voltar em paz. O sono se derramava daqueles casebres e jiraus, trazia-lhe a presença de escuros rostos confiantes, cabelos desgrenhados, olhos, bocas, braços e corpos extenuados e imóveis que mataram a fome, se abandonavam nas mãos dele. Nem Alaíde despertava. O sono, um sono elementar, os unia subterraneamente, sono dos que acreditavam.
Não tentou mais despertar a companheira. O vento agitou as árvores, parecia ouvir-se a baía lá fora, o sono daqueles seres largados nas esteiras, nos jiraus e nas redes adquiria voz na agitação do vento e das águas, era como a ressonância de velhos mares noturnos e invisíveis crescendo ao longo da floresta pesada. Ele ficou só, fumando, lembrou-se do velho Felipe e da bíblia. Sua insônia, como uma traição, conspirava contra a paz e a esperança dos que dormiam. (M:149)




( XVI )


O sono se derramava
daqueles casebres e jiraus,
presença de escuros rostos confiantes,

Um sono elementar,
os unia subterraneamente,
sono dos que acreditavam.

Era como ressonância de velhos
mares noturnos e invisíveis
crescendo ao longo da floresta pesada.

Sua insônia,
como uma traição,
conspirava contra a paz
e a esperança dos que dormiam.


.





Veio clareando por cima da vila.
A luz trepou na cabeça da sumaumeira bem alta como se a cacheasse de sumaúma. Leves arrepios do amanhecer n?água cinzenta, o rio estremeceu como uma cobra que se acorda.
Mais adiante, a água se despia das sombras, os estirões pingavam sombra misturada com a luz e o sereno da madrugada. Ciloca no fundo do casco não sentia frio nem que o cigarro caiu apagado debaixo do banco. Sinhazinha deslizou n?água como os peixes. Ele dormia, o rio acordava. Como se a luz viesse das águas boiando.
(M:146)



( XVII )

A luz trepou na cabeça da sumaumeira
O rio estremeceu
como uma cobra que se acorda

Os estirões pingavam sombra
O rio acordava
Como se a luz viesse das águas boiando.






Divertindo-se em caminhar nas pontas dos pés, com ligeireza, Alaíde parecia bailar entre as árvores e as borboletas. A tarde, depois daquela chuva e agora com o sol, parecia excitar cada vez mais os bichos, as plantas, os homens, os proibidos prazeres, a sensação do sono que os levasse até o fundo do rio que era a morte. Alaíde, como as plantas e as chuvas, iluminava-se daquele impudor tranqüilo e vigoroso da terra. (M: 142).

Missunga cingiu-lhe a cintura, uma curva inesperada de corpo, uma curva que fugia, deslizando entre os dedos. A mão de Missunga na cintura de Alaíde era um remo cortando água na vazante.
No cabelo de Aláide as açucemas, como se ali mesmo nascessem. Nos olhos dela havia a estranha claridade da selva em noite de trovoada. ( M: 143).

Alaíde, Alaíde, não durmas que a terra te come, e tua carne depois do amor deve ser mais tenra e doce. As raízes querem o teu sangue. Desde as noites mais velhas do mundo as raízes esperam o teu sangue.
Alaíde acordou, a sombra das samambaias nos olhos, boiando do sono, parecendo vir de longe sono assim tão grande e tão fundo como os rios da Amazônia.
(...)
Alaíde apanhou cacuí para Missunga. Um taperebazeiro grande jogava taperebás tão maduros na água que o cheiro das frutas acordava o amor de Missunga.
Alaíde podia ficar ali, de bubuia, imóvel, os peixes passando por cima e os taperebás caindo como se quisessem deixar em terra tão inesperada e tão bela, sementes para uma estranha e mágica fecundação.(M: 144).

Como um cipó que se destorce, Missunga levantou-se, lentamente, tentando espantar os pensamentos e as torvas sensações. Se Tomaz do Mato os estivesse espiando? Quem sabe se antes não viera deitar-se?
Voltava e parecia tão separado de Alaíde. Que valeram afinal as samambaias?
Deixando-o rapidamente para trás, Alaíde corria e desaparecia pelo sinuoso caminho como se, no ato do amor, como uma abelha, houvesse morto o amante. (M: 145)



( XVIII )


Alaíde parecia bailar
entre árvores e borboletas
como as plantas e as chuvas
iluminava-se daquele impudor tranqüilo
e vigoroso da terra.

No cabelo de Alaíde as açucemas,
como se ali mesmo nascessem.
nos olhos dela a claridade da selva
em noite de trovoada.

Alaíde, Alaíde, não durmas
que a terra te come
e tua carne deve ser tenra e doce
desde as noites mais velhas do mundo
as raízes esperam o teu sangue.

Alaíde corria e desaparecia pelo caminho
como se, no ato do amor,
como uma abelha,
houvesse morto o amante.





Tom de viola, cadência de tambor, o reque-reque como voz de sapo no acompanhamento. Manuel Rodrigues batia o tambor com ar sonolento e os foliões erguiam, humildemente, as vozes da lamentação e súplica, para que todos os corações ficassem dominados. Cantavam juntos aos balcões do comércio, entre alqueires de farinha, mãos de milho, mantas de peixe seco, couros de boi sangrando nas balanças, vaqueiros e pescadores fedendo a curral, a tarrafa e a maresia
(...)
Devotos, vamos rezar.
Devotos, vamos rezar
Cheguem todos de joelho
Fazendo o pelo sinal.
Aquelas vozes subiam do fundo do rio, dos charcos e casebres, dos seios secos, dos ventres gastos, das bocas sem dentes, do atoleiro onde morrem os bezerros esquecidos e os velhos cavalos. Subiam dos peitos como de poços fundos e de fundas feridas, num desespero e numa agonia que só os foliões, os desgraçados, os pobres podiam sentir. A tarde debruçava-se nas árvores ao redor do barracão, espiando aquela reza arrastada, monótona, subterrânea. (M: 169-170)
(...)
As fazendas disputavam a dormida do santo. Quando havia casa farta, depois da bóia (folião: comilão) a ladainha, seguindo-se a folia, depois da folia o isguete, o dançará, afavado dos sítios. Entrava pela noite, vinha a madrugada, o sol na cabeça dos foliões, rezavam a folia da despedida. Bom passar a noite em casa farta, se podia comer, por isso as folias eram bem puxadas, tambor batendo na fé e no amargor dos homens e viola adoçando o som do tambor.
Viva quem serviu a mesa,
Quem deu água ao folião,
Deus lhe dê o reino da glória,
E o céu por salvação.
(M: 171-172)



( XIX)

Tom de viola
cadência de tambor,
o reque-reque
e os foliões erguiam
as vozes de lamentação e súplica,
todos os corações dominados.
vaqueiros e pescadores fedendo a
curral, a tarrafa e a maresia.

Devotos, vamos rezar
Devotos, vamos rezar
Cheguem todos de joelho
Fazendo o pelo sinal.

Aquelas vozes subiam do fundo do rio
dos charcos e casebres
dos seios secos
dos ventres gastos
das bocas sem dentes
do atoleiro onde morrem
os bezerros esquecidos
e os velhos cavalos.

Subiam dos peitos como de poços fundos
e de fundas feridas,
num desespero, numa agonia
que só os foliões, os desgraçados,
os pobres podiam sentir.

Bom passar a noite em casa farta,
se podia comer,
tambor batendo na fé
e no amargor dos homens
viola adoçando o som.

Viva quem serviu a mesa,
Quem deu água ao folião,
Deus lhe dê o reino da glória,
E o céu por salvação.







Missunga deteve-se, ouviu um gemido abafado. Os cães rodearam, curiosos e ávidos o corpo de Alaíde caído ao pé de um acapuzeiro junto d?água.
Carregou-a nos braços.
- Me deixe que eu ando.
Teimou carregá-la, sentiu, com uma contida náusea, os dedos manchados de sangue. Lhe deu uma estranha energia, decidiu levá-la nos braços até que, esfalfado, pôde deixá-la na esteira. Nhá clara já esperava.
As árvores balançavam na noite maciça. Havia ninhos nos galhos. As sementes estalavam. A terra o ventre inesgotável, parindo sempre. Missunga apanhou a espingarda, caminhou longe e atirou nas árvores, nos ninhos, com os cães ladrando. Sentou-se, exausto, num tronco partido. Exausto. Felizmente a noite clareava, era a lua. Voltou pra ouvir ainda os gritos de Alaíde. Viu vagamente ainda qualquer coisa viscosa sangrando na vazante. Lembrara-se de um bezerro morto na fazenda. Era o seu lixo, o fruto podre das samambaias. E o cheiro, os gemidos, aquela noite aberta em sangue e a náusea. Onde estavam as mãos que não a cobriam mais?
Aláide gritando. Se os gritos parassem talvez fosse a morte. Dor, dor. A dor de que misteriosamente as velhas caboclas falavam: "Isabel com uma dor. Uma dor que vem tomando conta do corpo. Uma dor que só Deus". Os cães haviam desaparecido. Alaíde, viva ainda, sangrando como caça ferida. Sob o luar as árvores se dissolviam, os gritos adquiriam mais corpo do que os troncos e se espedaçavam contra a noite.
Um vago cheiro de alfazema no sopro da noite sobre as folhagens. Sim, os gritos cessaram. As árvores readquiriam corpo e Missunga sentiu falta de cigarros, oh, nenhuma piedade por Alaíde! Só a lástima de si mesmo, o medo de espiar pela porta para saber o que acontecera.
Na porta alguém surgiu, como à espreita, e ele chamou.
Era a velha, a velha Geralda, esfregando as mãos, meio apressada, avançou para ele e disse baixo:
- Se aquietou.
(M.180-181)



( XX )



As árvores balançavam na noite maciça
havia ninhos nos galhos
as sementes estalavam
a terra o ventre inesgotável
parindo sempre.

Qualquer coisa viscosa sangrando na vazante
o fruto podre das samambaias
noite aberta em sangue e a náusea
uma dor que só Deus.
sob o luar as árvores se dissolviam
os gritos se espedaçavam contra a noite






Dirigiu-se ao copiar estrito e aberto para os limoeiros, coqueiros e tucumãzeiros que desciam para o igarapé. Sentou-se junto à mesa onde sempre os foliões jantavam e conversavam sobre as suas viagens. Na parede um velho espelho quebrado que ela apanhou e limpou com o peito da blusa. Mirou-se muito séria, examinando os olhos, os cantos da boca, se alguma expressão de culpa ou mentira lhe marcava a face morena e limpa. Não sabia explicar porque até pouco tempo quando se mirava no espelho, só descobria no rosto, vagamente, a distração pela vida, a lembrança de um ou mais pessoas que a achavam bonita. Agora o espelho lhe apontava certas linhas do rosto, certas sombras e culpas, todo um rosto que atravessasse uma fogueira, partido em três faces diferentes. Apenas seus cabelos não mudavam, calmos, e teve medo de puxá-los ou ajeitá-los diante do espelho para que lhe não completassem a nova imagem que traçara de si mesma.
(M: 189)



( XXI )


Até pouco tempo
Quando se mirava no espelho
Só descobria no rosto a distração pela vida
Agora o espelho lhe mostrava certas linhas
Todo um rosto que atravessasse uma fogueira,
Partido em três faces diferentes.
Apenas seus cabelos não mudavam,
Teve medo de ajeitá-los diante do espelho
Para que lhe não completassem
A nova imagem que traçava de si mesma.





Apearam-se diante do lago e dos campos que a luz descobria. Viram os garrotes erguerem e acariciarem as belas novilhas. Não se ouviam mais as vozes dos pescadores na lanceação. As virgens novilhas estavam amorosas e belas e o dia parecia nascer do fundo do lago. Os garrotes, babando, escuros e lentos avançaram e cobriram as novilhas espantadas. No dia subindo, um vôo de garça tentava purificar a paisagem.
Um rumor de mulheres se aproxima. Vêm encher água do lago. Trazem no amanhecer os peitos inocentes. Trazem o cheiro do peixe que abriam e salgavam durante a noite e seus cabelos estão pretos como as redes de lanceação.
As moças vêm como se pela primeira vez surgissem da madrugada e viessem ver os garrotes que amam. Os peitos e os sexos crescem à força do vento, do sol nascendo, sob aquele cheiro de peixe e bosta de gado. Elas, e Orminda também, contemplam com uma quase deslumbrada curiosidade, com uma inocente malícia as novilhas ainda ariscas do amor que os garrotes lhes dão. E as meninas, com os baldes na mão e rindo pela praia, como se tornam moças de repente. Ramiro e Orminda montam e o cavalo galopa a caminho dos Anjos.
As moças voltam do lago e da madrugada, com a lata e os potes no ombro, como se voltassem também do amor daqueles touros. (M: 251).

( XXII )


No dia subindo
um vôo de garça
tentava purificar a paisagem.
Um rumor de mulheres se aproxima
trazem no amanhecer os peitos inocentes
trazem o cheiro de peixe
e seus cabelos estão pretos
como as redes de lanceação.

Vêm como se pela primeira vez
surgissem de madrugada
e viessem ver os garrotes que amam.
Os peitos e os sexos crescem
a força do vento
do sol nascendo
sob aquele cheiro de peixe e bosta de gado
e as meninas se tornam moças de repente.

As moças voltam do lago e da madrugada,
com a lata e os potes no ombro,
como se voltassem do amor daqueles touros.









O embarque continuou. Orminda viu aquele boi grande laranjo suspenso pelos cabos, ficou num momento, junto ao mastro do barco, imenso e largado. Somente os olhos saltados pareciam vivos como os de um homem. Naquele instante no alto a cabeça apertada nos cabos, a baba escorrendo, imóvel e mudo, o boi falava com aquele olhar lúcido e triste em que se refletia um pedaço de nuvem e de azul do céu que lhe trazia a saudade verde dos campos, velhos curais distantes, as primeiras carreiras de garrote entre as novilhas suas noivas e cordas, muitas cordas, o golpe do laço o arrancara do chão e o levara para o ar. O boi ficou com o olhar fixo para o alto, fixo e profundo como se quisesse absorver o céu, tivesse compreendido o seu destino. (M:252).




( XXIII )


Viu aquele boi suspenso pelos cabos
junto ao mastro do barco,
imenso e largado.

O boi falava com aquele olhar lúcido e triste
em que se refletia um pedaço do céu
que lhe trazia a saudade verde dos campos.

O boi ficou com o olhar fixo para o alto,
fixo e profundo como se quisesse
absorver o céu,
tivesse compreendido o seu destino.





O lago se espalhou pelos campos, comeu as lonjuras, ilhou as palhoças, bateu de leve debaixo dos jiraus, espiando o sono dos pobres. Caiu então um silêncio de princípio de mundo em que os homens se misturavam com os bichos deslizando nas águas e na lama, na espuma das enxurradas e na folha dos mururés.
(...)
Também na fazenda, Missunga via no fundo da água o rosto de Aristides, as piranhas devorando Gaçaba e Mariana de coxas molhadas e lisas em que o menino escorregava à beira do igarapé. Aquelas chuvas e a enchente lhe davam um novo torpor, a suspensão da vida, a solidão da água. Tudo voltava ao lodo primitivo. (M: 261).



( XXIV )

O lago se espalhou pelos campos,
comeu as lonjuras,
ilhou as palhoças,
bateu de leve debaixo dos jiraus,
espiando o sono dos pobres.

Caiu então um silêncio do princípio do mundo
em que os homens
se misturavam com os bichos
deslizando nas águas e na lama,
na espuma das enxurradas
e na folha dos mururés.

A suspensão da vida,
A solidão da água.
Tudo voltava ao lodo primitivo.





Preparou o balaio de comida, mudou de roupa, lhe deu de vestir aquele vestido branco, lhe recordava o baile da Intendência, e vestiu. Olhou-se no espelho: estou uma noiva, benza-te Deus. Pela primeira vez dançava com ele e a princípio tremia quando seu rosto tocava no dele como se fosse pela primeira vez. No baile, como que se tornara tão pura e tão virgem, assim idealizara o primeiro encontro com o amado.Com aquela valsa, sim, queria que começasse o que começou e se precipitou à beira do poço, na sombra, sob o medo e a solidão. De madrugada, era a quadrilha mal dançada e mal dirigida, repetida e sempre alegremente confusa. A música e a dança restituíam-lhe a namorada que ela desejara e sonhara ser quando pela primeira vez gostasse de um rapaz.
(...)
Desamarrando o embrulho, dirigiu-se ao fogão, soprou as brasas e foi queimando, uma a uma, as cartas que lhe falavam da infância, de D. Branca, de seus olhos, queimando as palavras, a letra miúda e gentil do amado perdido. Sem uma lágrima, apanhou o balaio, mexeu com o papagaio: -Vou ali com o meu namorado e já volto, ouviu, meu louro? E saiu vestida de branco, a fita branca no cabelo, um ramo de jasmins no peito e descalça.
(...)
Caminhava distraída, o balaio na mão, o caminho apertava nas espessuras e os japiins balançavam os ninhos. Parecia mais cansada ? ah, se estivesse tão amorosamente cansada como no baile, como ele dançava bem e não perdia uma parte sequer. Depois foram à janela, tinha as costas molhada, os braços, o ar da noite envolveu-a como um banho. Ele não dizia palavra e ela queria que ele repetisse tudo o que mandara dizer nas cartas e tal era a vontade de ouví-lo que brus-camente saiu da janela e foi ao toalete fingir que ia se empoar, emprestar um leque, conversar com as companheiras. Não, estava só, só no baile. O amor era uma solidão.
(...)
O balaio pesava, as pernas doíam, o atalho cerrado e lamacento.
A chuvarada se aproximava.
(...)
Tropeçava, fugindo sem temor, habituada àqueles aguaceiros com ventania de repente.
(...)
Subitamente escureceu para a moça, o atalho, a chuva, o salão de baile, a lua na caixa de fósforos, a árvore tombava e a envolveu numa rajada. (M: 268-270)

( XXV )


Lhe deu de vestir aquele vestido branco
recordava o baile da Intendência.
pela primeira vez dançava com ele
com aquela valsa queria que começasse
o que começou
e se precipitou na sombra.

Soprou as brasas e foi queimando,
uma a uma, as cartas que
lhe falavam da infância,
e saiu vestida de branco.

Caminhava distraída
- ah, se estivesse tão amorosamente
cansada como no baile,
Ele não dizia palavra
Estava só, só no baile.
O amor era uma solidão.




E quando às dez da noite principiou a sessão, no copiar, sob aquele jirau onde as redes rangiam, o pajé deu ao fazendeiro a impressão mesma do lago. A voz recolhia subterraneamente o número dos laços distantes, a agonia das lagunas morrendo no verão com as vacas e os bezerros atolados, a queixa dos rios secando, o mar roncando, os viajantes do mar rezando no mau tempo, os ventos desfiando as velas, possuindo a floresta e dispersando as estrelas, o miado longo das onças acuadas nas "ilhas", os tambores do Espírito Santo batendo nos corações. A sombra do jupatizal caía no lago, subia o hálito do lodo e do moruré. A água parada, a mesma água do encantado que vem do mar, pelo fundo da terra, de todos os náufragos e de todas as lágrimas. O silêncio de Jesuíno era como sono. Aquele corpo parecia enorme como o lago abrindo as margens para os descampados tristes. Para ele os caminhos não vinham das águas do mar e dos campos mas das dores do homem. Com esses poderes o pajé ditava a receita e emplastava a esperança no peito do povo.
(M: 323)

( XXVI )

Principiou a sessão,
sob aquele jirau onde as redes rangiam,
o pajé deu a impressão mesma do lago.
a voz recolhia subterraneamente
o número dos laços distantes,
a agonia das lagunas morrendo no verão
as vacas e os bezerros atolados
a queixa dos rios secando,
o mar roncando,
os viajantes rezando no mau tempo
os ventos desfiando as velas,
possuindo a floresta
e dispersando as estrelas,
o miado longo das onças acuadas
os tambores do Espírito Santo
batendo nos corações.

O silêncio de Jesuíno era como sono.
aquele corpo parecia enorme como
o lago abrindo as margens para
os descampados tristes.
para ele os caminhos vinham
das dores do homem.

Com esses poderes o pajé ditava
a receita e emplastava a esperança
no peito do povo.





Ramiro deu um tom longo no violão. Gaçaba morto, não ia matar jacaré sem ele. Orminda, sem lhe dizer adeus, partira. E ele que era um conhecedor de manha de bichos e de mulher! Dela ficou apenas a fita no chapéu de carnaúba e aquela solidão que os campos queimados aumentavam e tornavam mais negra, que o mugido dos bois agravava, ó louca Orminda. Gaçaba aparece à noite entre os jacarés ou fica de cima das nuvens olhando os seus velhos amigos matarem os monstros? Para Gaçaba preferível ter sido morto por um jacareaçu,búfalo, novilha brava ou lutando com onça nos Remédios. Orminda estava viva e era Orminda que fazia pensar, olha os campos, sentir nunca sentidos pressentimentos, ó louca Orminda, que fizeste, que te deu na cabeça, que fogo te acendeu no sangue para fugires como uma égua nova da amansação? Tua companhia fez enlouquecer nhá Leonardina, até os garrotes te queriam, desgraçada, até os búfalos, os jacarés machões, os botos soprando no rio assanhados com teu cheiro que ficou também neste violão, no fundo deste chapéu que puseste na cabeça, aqui neste lenço que enxugou teu suor, a tua boca quando mordeste limão caíano, o teu dedo ferido no espinho de marajá. E o sangue, uma gota só, neste lenço não hei de lavar.
(...)
Orminda partiu sem uma palavra, sem uma razão. Havia deixado ela na barraca de nhá Leonardina, à beira do lago. A louca fora embora ? levada na lancha ?o povo todo chorava, a própria Orminda fez uma porção de bruxas de pano para entreter a loucura dela brincando com bonecas no chão. E de volta de diamantina onde ajudou a curtir e fazer uma sela, foi encontrar a barraca fechada, e a falância correndo no lago e na beirada. Orminda dormiu com Arnaldo, andou com Pedro, passou a noite na feitoria com Anastácio, dançou efetivo com Boaventura toda a festa no S. Marçal. Deus do céu, viram Orminda em tolda de canoa geleira, entre os barqueiros na caiçara, numa rede no rancho de S. Bento. Quando embarcava para descer o Arari, os homens gritavam: vai-te, danação, que a moléstia te roa até o osso! ...
(...)
Ramiro deu o tom que ela gostava, o tom dos violões às duas da madrugada, um tom que aquece o céu e ajuda a abrir as flores em botão. Louca Orminda. (M: 330-331)


( XXVII)

Orminda partira.
dela ficou apenas a fita no chapéu
e aquela solidão que os campos queimados
tornavam mais negra
que o mugido dos bois agravava,
ó louca orminda.

Orminda estava viva e era Orminda
que fazia pensar,
olhar os campos,
sentir nunca sentidos pressentimentos,
ó louca Orminda.

Que fizeste, que
te deu na cabeça, que
fogo te acendeu no sangue
para fugires como uma égua nova da amansação?

Até os garrotes te queriam,
desgraçada,
até os búfalos,
os jacarés machões,
os botos soprando no rio assanhados com
teu cheiro que
ficou também neste violão,
no fundo deste chapéu que
puseste na cabeça,
neste lenço que
enxugou teu suor,
a tua boca quando mordeste
limão caiano,
o teu dedo ferido no
espinho de marajá.
e o sangue, uma gota só,
neste lenço
não hei de lavar.
Louca Orminda.

Orminda dormiu com Arnaldo,
andou com Pedro,
passou a noite na feitoria com Anastácio,
dançou efetivo com Boaventura.
Deus do céu,
viram Orminda em tolda de canoa geleira,
entre os barqueiros na caiçara,
numa rede no rancho de S.Bento.
Louca Orminda.





Os touros voltaram-se para aquele tropel surdo, os bacuraus voavam e a lua o acompanhava como se acompanhasse a tristeza daqueles campos, a visão do próprio destino de Ramiro sem rumo galopando, galopando. e se o seu galope fosse acabar no lago Guajára? Desejava embrulhar o cavaquinho nos cabelos cacheados da moça branca do lago guajará, naqueles cachos que caíam pelos ombros dela como se os acariciassem. Queria ao mesno trazer por toda a vida no cabo do violino um cacho daqueles cabelos encantados.
O caminho do guajará mesmo? A novilha branca do lago guajará aparecia nas malhadas. Atrás caminhava um lote de gado brabo. Uma vez foi trancada, como o boi de quatro chifres, no cural dos anjos. Pela manhã não a encontraram mais. Então Ramiro quis fazer uma chula, não soube tirar da cabeça, não houve jeito de pôr em verso. Em seu pensamento a chula era bonita, Orminda copiaria e a guardaria dependurada na volta do pescoço. A chula perguntava pela novilha. Novilha branca do lago Guajará quem é que vai te desencantar? Contavam que coronel, na força ainda da mocidade, fora montado num cavalo cardão e fogoso, desencantar a novilha. Mal chegou à beira do lago, garças voavam, as marrecas gritaram, o sangue esmoreceu. O cavalo murchou. Novilha branca que andas pelas malhadas, pastoreadores, com o lote do gado brabo. Novilha do lago, ninguém te tranca, ninguém te ferra, ninguém te desencanta, a tua marca onde está e teu dono quem é? Novilha, tu, Ominda? (M:337-338).




( XXVIII )



Novilha branca do lago Guajará
Quem é que vai te desencantar?
Novilha branca que andas pelas malhadas,
Com o lote do gado brabo.
Novilha do lago, ninguém te tranca,
Ninguém te ferra,
Ninguém te desencanta,
A tua marca onde está e o teu dono que é?
Novilha, tu, Orminda?








Alaíde caminhava pelo mato, silenciosa. Seus pés farejavam, olhavam, ouviam, apalpavam os caminhos entrançados na selva como os fios do mistério e da solidão. Pés com a memória das raízes e dos bichos, vagando de noite por baixo e por cima da terra. Muito caçador invejaria aqueles pés bem nascidos, ágeis e videntes, duros e belos pelo tamanho, pela resistência, deixando leve rastro, quase nenhum vestígio, pelos imbaubais e andirobais. As feras sentiam naquele rastro qualquer coisa que lhes era familiar e intrépido.
Sua voz era quase desconhecida na floresta. Para que falar? Seus pés agiam como donos de si mesmos, aranhas correndo sob as folhas que afofavam os caminhos atolentos. Todos os seus movimentos dispensavam as palavras. Olhou as suas pernas. Terra não saía mais das suas pernas. Podia tirar no banho, o suor, o cheiro do mato, da lenha, do peixe e do homem, não a terra. Porque a terra vinha na água que a banhava e lhe cobria a pele de cabocla como os rios, enchendo, cobrem de lodo a várzea e as ilhas nascentes.
(M: 349).



( XXIX )


Alaíde caminhava silenciosa,
seus pés farejavam, olhavam, ouviam,
apalpavam os caminhos entrançados na selva
como os fios do mistério e da solidão.

Pés com memória das raízes e
dos bichos,
vagando de noite
por baixo e por cima da terra.

Pés bem nascidos,
ágeis e videntes
deixando leve rastro pelos
imbaubais e andirobais.

As feras sentiam naquele rastro
qualquer coisa que lhes era
familiar e Intrépido.

Seus pés agiam como donos de si mesmos,
aranhas correndo sob as folhas.
seus movimentos dispensavam as palavras.

Terra não saia mais de suas pernas
vinha na água e lhe
cobria a pele de cabocla.
como os rios, enchendo,
cobrem de lodo a várzea.





Os homens chamavam pelos companheiros. Seus gritos ressoavam noturnos e belos na floresta. Podiam levantar o machado e a seiva escorria-lhes pelos braços como se as árvores, feridas de morte, lhes perdoassem e ungissem os fatigados corpos. Podiam gemer quando recebessem a traiçoeira pancada de um madeiro, rolar nas valas, no atoleiro, sobre as sapupemas, no fundo das montarias, nas balsas, torcendo-se de dor. Tinham carne viva, tinham sangue, um pobre sangue envenenado de paludismo, na verdade, mas sangue, afinal, de homem cortando e virando madeira, de homem vivendo, mexendo as mãos, mastigando, pedindo para as mulheres lhes benzerem a inchação, as feridas e a dor do peito. (M: 350).


( XXX )

Os homens chamavam pelos companheiros.
seus gritos ressoavam noturnos
a seiva escorria-lhes pelos braços
como se as árvores ? feridas de morte,
lhes perdoassem e ungissem
os fatigados corpos.

Podiam gemer quando recebessem
a traiçoeira pancada de um madeiro,
rolar nas valas, no atoleiro,
sobre as sapupemas,
no fundo das montarias,
nas balsas, torcendo-se de dor.

Tinham a carne viva,
tinham sangue
um pobre sangue envenenado de paludismo,
mas sangue de homem cortando
e virando madeira,
de homem vivendo,
mexendo as mãos, mastigando,
pedindo para as mulheres
lhes benzerem a inchação,
as feridas
e a dor do peito.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS




AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da literatura. 2ª edição. Coimbra; Almedina, 1968

ASAS DA PALAVRA. Belém; UNAMA, v.3, n° 4, junho, 1996.Semestral.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 36ª edição. São Paulo; Cultrix, 1994

CHALHUB, Samira. Funções da linguagem. 6ª ediçao. São Paulo; Ática, 1993 (série Princípios).

FRIEIRO, Eduardo. A ilusão literária. 3ª edição. Belo Horizonte; Itatiaia, 1983

JURANDIR, Dalcídio. Marajó. 3ª edição. Belém; CEJUP,1992

LIMA, Luiz Costa. Por que literatura. Petrópolis; Vozes, 1969

MONTEIRO, Benedicto. A poesia do texto. Belém; CEJUP, 1998

NUNES, Benedito. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger. 2ª edição. São Paulo; Ática, 1992

SANTERRES-SARKANY, Stéphane. Teoria da literatura. Mem Martins (Portugal); europa-América, 1990.(tradução: Maria do anjo figueiredo. Coleção Saber).

STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. 3ª edição. Rio de Janeiro; Tempo Brasileiro, 1997. (tradução de Celeste Aída Galeão).

WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura. 5ª edição. Mem Martins (Portugal); Europa-América, 1955. (tradução de José Palla e Carmo).


Autor: Jose Luiz Pena Pereira


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