A União Homoafetiva Perante A Constituição Brasileira E A Sociedade



A UNIÃO HOMOAFETIVA PERANTE A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA E A SOCIEDADE

Com a promulgação da Constituição Brasileira de 1988, um grande passo foi dado na valorização e respeito ao cidadão, independentemente de qualquer distinção quanto à cor, sexo e ideologias,como bem determina a Magna Carta em seu Título II – Dos direitos e garantias fundamentais.

A evolução da sociedade através dos tempos, carreada pelo avanço das ciências que proporcionam conforto e modernidade, não faria sentido sem que o Direito – uma ciência dinâmica e evolutiva, não acompanhasse tal progresso. É nesse sentido que se proliferam o debate jurídico, científico e acadêmico, visando uma melhor adaptação das leis ás necessidades atuais, onde aí se inclui a parcela social que milita incansavelmente pelo reconhecimento dos direitos do homossexual.

Entende-se que, frente à legitimação social desses relacionamentos afetivos, não pode o Direito se abster de efetivar os direitos constitucionalmente garantidos a uma parcela da população, o que consistiria numa discriminação baseada na preferência ou orientação sexual, batendo frontalmente contra os preceitos determinados no artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, ou seja: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza ..." e, " são invioláveis a intimidade, a vida, a honra e a imagem das pessoas ..." (inciso X do art. 5º da CF.), e mais ainda, a luz do inciso IV do Artigo 3º da CF, deparamo-nos com mais uma abordagem aosdireitos e garantias fundamentais do cidadão; "Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e qualquer outra forma de discriminação" (grifos nosso), portanto, deparamo-nos aí, com um caminho já sedimentado para a construção e reconhecimento da união estável entre homossexuais, legalmente tutelado pela Constituição Federal.

Esta perspectiva civil-constitucional, centrada no valor da dignidade humana, deverá possibilitar o reconhecimento das uniões homossexuais enquanto entidades familiares.

Muito embora alguns países, como Suécia, Noruega e Holanda, protejam em seus ordenamentos jurídicos a união entre pessoas do mesmo sexo, há paísesonde a homossexualidade é ilícito penal, caso dos países islâmicos, da Grécia e da Irlanda.

Partindo da premissa que o nosso texto constitucional é muito claro com relação aos direitos e garantias fundamentais do ser humano, temos em contrapartida a resistência de um determinado segmento social que veladamente impede que a união formada por pessoas do mesmo sexo encontre seu espaço na legislação brasileira, seja em sede constitucional ou infraconstitucional. É também notável o avanço jurisprudencial no sentido de reconhecer direitos antes negados, ainda que a tendência nos tribunais, limite-se apenas à concessão de direitos de cunho patrimonial, sem, no entanto, admitir como hipótese o status de família que as referidas uniões realmente possuem.

A Constituição Federal de 1988, ao conceder proteção estatal às famílias brasileiras, reconhecendo a união estável como entidade familiar formada apenas por um homem e uma mulher, deixou de estender às uniões homoafetiva a idêntica proteção, negando-lhes direitos manifestamente existentes, o que implica em uma restrição considerada incompatível com as premissas adotadas pelo Estado Democrático de Direito, que proclama, entre outros, o direito à liberdade, igualdade, não discriminação e, sobretudo o direito à dignidade humana como direito fundamental.

Em sede de análise, é valido salientar a mutabilidade que caracteriza o Direito e as leis. Assim como o fator temporal e a mudança nos costumes são elementos que influenciam os valores presentes em cada civilização, o Direito deve acompanhar as transmutações ocorridas e, em favor delas, afastar o preconceito e criar leis em nível de compatibilidade com os reais anseios da sociedade.

Se a lei, não exclui, expressamente, a proteção das uniões homoafetivas, então caímos no que Bobbio classificou de Norma Geral Exclusiva, que é uma das premissas básicas do pensamento Kelsiano, que afirma que "tudo o que não está explicitamente proibido, está implicitamente permitido", idéia protegida pela nossa Constituição Federal que afirma que "ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da Lei". (art. 5º, inciso II).

O direito á propriedade, herança e sucessão de bens acumulados no decorrer de umaunião homoafetiva estável, o direito do companheiro homoafetivo aos benefícios proporcionados pela previdência social, etc..., são tratados ainda pelo código civil brasileiro da forma tradicional e arcaica. Há muito que se realizar efetivamente para que os preceitos constitucionais inibidores ou preventivos de situações discriminatórias sejam superados, apesar de que, alguns magistrados já entendem a necessidade de garantir esses direitos, sobrepondo-se a ranços sociaisque ainda transcendem a evolução da sociedade como um todo.

Neste sentido, alguns Tribunais brasileiros, vêm procurando atualizar suas decisões dentro dos nossos parâmetros constitucionais, que por sua vez, seguem atentos aos preceitos e tendências jurídicas internacionais. A título ilustrativo,transcrevemos abaixo, decisão monocrática do Juiz titular da 41ª Vara Civil do Rio de Janeiro

A Caixa de previdência dos funcionários do Banco do Brasil deve pagar pensão a um homossexual que conviveu durante 14 anos com seu companheiro e que aparecia como beneficiário do plano em caso de morte. Após a morte de seu companheiro, o autor recorreu à previdência do Banco do Brasil para receber a pensão, mas o pedido foi negado, sob o argumento de que ele não teria amparo legal para beneficiar-se da pensão.

O autor entrou com ação contra o banco alegando que tem direito a pensão de seu companheiro já que estava devidamente cadastrado como beneficiário. Argumentou que houve violação do seu direito e discriminação.

A Caixa de Previdência do banco argumentou que o Código Civil não reconhece a união estável entre pessoas do mesmo sexo e por isso não iria dar o benefício. Alegou, ainda, ausência de dados que comprovassem a união.

Diante das provas, o juiz reconheceu a união homo-afetiva entre o autor e o companheiro morto. "Entende-se, assim, tratar-se de fato, o qual não podemos ignorá-lo, até porque nossa lei civil foi elaborada em época de extremado conservadorismo, diante da triste ditadura imposta à sociedade, acrescido de sua falta de maturidade acerca de determinados debates" declarou o juiz.

Para o juiz, as alegações feitas pela empresa não devem ser consideradas, pois o benefício se trata de direito garantido por normas contidas no próprio regulamento do plano e o banco deve cumprir com as suas obrigações. Eis a íntegra da decisão:

TUDO VISTO E EXAMINADO, PASSO AO DECISUM. Do exame dos autos, verifico que merece prosperar a pretensão, senão vejamos: Nossa Carta Magna, em seu art. 226, § 3º, dispõe sobre a união estável como entidade familiar, assim as relações não matrimoniais que possuam lapsostemporários razoáveis em sua existência já encontram respaldo em nosso texto constitucional.

Ocorre que coube a lei ordinária a tarefa de regulamentar a relações afetivas entre companheiros, encontrando-se dispositivo em nosso Código Civil, em seu art. 1723 entre outros que já mencionam as hipóteses de sucessão entre companheiros. Dessa feita, indiscutivelmente não há o que se falar em ausência de amparo legal que venha abranger circunstâncias relativas à união estável entre um homem e uma mulher que se unem com animus de constituir uma família, mesmo que sem prole.

Nesse momento deve se ter em mente a condição da união estável como fato social, que surgiu e posteriormente teve sua valoração pela sociedade e positivação pelo legislador pátrio. Este novo instituto nada mais reflete que uma evolução pela qual nossa sociedade vem passando, tendo como conseqüência inevitável a regulamentação de sua condição como dispositivo legal.

No que diz respeito à união estável estabelecida entre pessoas de mesmo sexo, não houve regulamentação a cerca de tal assunto, motivo ensejador de debates polêmicos por aplicadores do Direito no que diz respeito a sua possibilidade. Entende-se, assim, tratar-se de fato, o qual não podemos ignorá-lo, até porque nossa lei civil foi elaborada em época de extremado conservadorismo, diante da triste ditadura imposta à sociedade, acrescido de sua falta de maturidade acerca de determinados debates. Trata-se de questão que até os dias de hoje não encontra amplo respaldo em nosso direito, havendo que se invocar o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil que dispõe sobre a analogia como elemento subsidiário à lei.

Assim, a liberdade dada ao magistrado é garantida, respeitando os bons costumes, não podendo este ficar inerte, à espera da positivação de determinadas questões tão presentes em nossa sociedade. Acrescente-se ainda que nossa Constituição, em seu art. 5º, tutela o Princípio da Igualdade como um de seus corolários, não podendo o Poder Judiciário conceber qualquer prática discriminatória relativa a seus iguais.

Quanto à existência de relação homo-afetivo duradoura entre o de cujus e demandante, esta está claramente identificada, diante das provas trazidas aos autos em audiência de instrução e julgamento, a partir dos depoimentos colhidos naquela ocasião.

No que diz respeito ao benefício ao qual faz jus o autor, não merecem prosperar as alegações trazidas aos autos pela ré, por se tratar de direito garantido àquele por normas contidas no próprio corpo das disposições no Regulamento do Plano de Benefícios, em sua seção I, art 5º. Assim, entende-se regularmente cumpridas as obrigações relativas ao negócio jurídico firmado entre o falecido e a demandada pelo de cujus, não se podendo conceber o desrespeito da ré em cumprir com suas obrigações.

Isto posto, JULGO PROCEDENTE O PEDIDO a fim de condenar a ré ao pagamento de todos os valores relativos ao pensionamento post mortem ao demandante, desde a data do falecimento do de cujus, em decorrência de estar caracterizada a relação homo-afetivo estabelecida entre ambos, condenando ainda a ré ao pagamento das custas judiciais e da verba honorária que ora fixo em 15% do valor da causa. Juros de mora de 1% ao mês e correção monetária a contar da citação inicial. P.R.I. Rio de Janeiro, 19 de abril de 2006.

LEANDRO RIBEIRO DA SILVA

Juiz de Direito

Outro anseio resultante da união homoafetiva reside na necessidade de adoção, como forma de sedimentação deste relacionamento,

No Estatuto da Criança e do Adolescente não há qualquer restrição à possibilidade de adoção por homossexuais. Na verdade, o Estatuto sequer faz menção à orientação sexual do adotante. O enunciado do artigo 42 desse diploma legal limita-se a prescrever que "podem adotar os maiores de 21 anos, independentemente do estado civil". Assim, a faculdade de adotar é concedida a homens e mulheres, em conjunto ou isoladamente, bastando que sejam preenchidos os requisitos do artigo 39 e seguintes do referido Estatuto.

Por não haverem impedimentos, deve prevalecer o princípio contido no artigo 43 daquele Estatuto, segundo o qual "a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotante e fundar-se em motivos legítimos".

Portanto aí, vemos demonstrada que a real preocupação deverá ser sempre o bem-estar do menor, considerando-se a total inexistência de motivos legítimos para que um menor permaneça fora de um lar. Se os parceiros – ainda que do mesmo sexo – vivem uma verdadeira "união estável",havendo, como já foi ressaltado, a existência de um lar respeitável e duradouro, cumprindo aqueles os deveres assemelhados aos dos conviventes, como a lealdade, a fidelidade e a assistência recíproca, numa verdadeira comunhão de afetos, vidas e interesses, haverá também, legítimo interesse na adoção, não se podendo ignorar a existência de reais vantagens para o menor.

Sob o prisma constitucional, não é possível excluir o direito individual de guarda, tutela e adoção – garantido a todo cidadão – em face de sua preferência sexual, sob pena de infringir-se o respeito à dignidade humana, o princípio da igualdade e a vedação de tratamento discriminatório de qualquer ordem.

Também não pode ser esquecido o comando do artigo 227 da Constituição Federal, segundo o qual é dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente, o direito à dignidade, ao respeito e à liberdade, direitos que, por certo, não lhes são assegurados enquanto se encontram em situação de abandono, entregues à criminalidade, ao vício e a toda sorte de violências e privações.

Isto posto, em sede conclusiva, repetindo Luiz Edson Fachin em Teoria crítica do direito civil, "(...) há de se pensar o sistema jurídico como um sistema que se reconstrói cotidianamente, que não é pronto e acabado, que está à disposição dos indivíduos e da sociedade para neles se retratarem", portanto,quando se trata de alterações no comportamento da sociedade e, conseqüentemente, da adaptação do ser humano a esta sociedade, atrelando a elas uma correspondência jurídica constitucional como forma de balizar tais comportamentosacreditamos que, "tudo é uma questão de tempo".



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA

ECA – ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

BRITO, Fernanda de Almeida.União afetiva entre homossexuais e seus aspectos jurídicos, Editora Ltr, São Paulo, 2000.

DAGNESE, Napoleão. Cidadania no Armário – Uma abordagem sócio-jurídica acerca da homossexualidade.Editora Ltr, São Paulo, 2001

DIAS, Maria Berenice. União Homossexual, O Preconceito & A Justiça, Porto Alegre, 2000.

FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do Direito de Família, Editora Renovar, Rio de Janeiro,1999

OLIVEIRA, Basílio de. Concubinato, Novos Rumos. Rio de Janeiro, AIDE, 1993.

OBRA COLETIVA: Homossexualidade, Discussões Jurídicas e Psicológicas. Curitiba, Juruá, 2001.

RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no Direito, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001.

MILICIO, Gláucia: Homossexual terá direito a pensão de companheiro morto,Artigo, Revista Consultor Jurídico. São Paulo, 2006.

O presente estudo foi desenvolvido pelo acadêmico de Direito Irã Sfeir Ratacheski, em cumprimentoà tarefa atribuída pelas docências de Metodologia Científica, Sociologia, Filosofia e Direito Civil.


Autor: Irã Sfeir Ratacheski


Artigos Relacionados


A Função Da Escola E Da Educação

A Viagem

As Pontuais Mudanças Trazidas Pela Lei 11.689/08 = Júri

Locação De Imóveis E O Direito Constitucional

A Inadimplência E A Suspensão Do Fornecimento De Energia Elétrica

UniÃo EstÁvel - Novo CÓdigo Civil

A Questão Do Mínimo Existencial Pelo Princípio Da Dignidade Da Pessoa Humana