A Balada



Em algum momento de nossas vidas, inevitavelmente, ouvimos o som brando da Balada.

Ela nasceu no momento em que o mundo era puro, repleto de ignorância e dogmas virginais, e foi se transformando em um som agridoce, numa mixórdia de inocência e rebeldia, atingindo os corações dos jovens nascidos em um século assaz esclarecedor.

Dizem que algo estranho aconteceu no mais afastado ponto da praia de Itacuruçá, lá pelas bandas de Itaguaí, mais ou menos nos anos 1970. Um grupo de moços e moças que curtiam a semana do carnaval se hospedou em uma pensão singela, abandonada, que pertencia ao falecido avô de Luís, e que já não funcionava há muitos anos. Lá não havia mais linha telefônica, nem antena para aparelho televisor, e o sistema de encanamento não estava lá essas coisas. Os acessos à vila onde ficava o palanque para o coreto noturno e à pequena praça, onde funcionava grande parte do comércio da cidade, estavam limitados a uma simples estrada esburacada onde raramente passava um automóvel sequer. A gigantesca locomotiva, que puxava uns cinqüenta vagões cheios de pedras e areia, passava a cada dez horas, transformando os extensos momentos de silêncio em uma balbúrdia suportável. Aquele pedaço insólito de litoral era provavelmente o lugar mais deserto de toda a costa brasileira. Exceto por alguns poucos pescadores que apareciam no cais, antes do meio-dia, mas logo iam embora apressados, sem nenhuma explicação crível.

Não que a garotada não tenha tentado entender esse episódio já no primeiro dia de sua estadia na pensão. Luís e Amanda, um casal que começara a se relacionar alguns dias antes da viagem, caminharam até a velha plataforma de madeira a beira-mar a fim de conversar com os pescadores. Estes não se abriram muito, mas disseram que precisavam estar longe dali, todos os dias, antes do primeiro sinal de anoitecer. Quando o casal quis saber o verdadeiro motivo deste ritual, apenas um dos pescadores, sob o olhar discriminatório do outros colegas, respondeu: ao anoitecer começa a Balada.

"Ao anoitecer começa a Balada". Esta frase não saiu da cabeça de Luís. E foi com preocupação que ele olhou, embevecido, a lua se alçar no céu estrelado enquanto seus melhores amigos – amigos de longa data – formavam um círculo em volta de uma adorável fogueira, e cantavam belas músicas que falavam de paz, amor e liberdade. A brisa afável que vinha do mar, trazendo um odor suave de água salgada, fazia cada membro do grupo pensar com nostalgia em sua própria infância. E com uma sutileza indescritível, um estranho som volitava secretamente por correntes de ar, penetrando as audições mais aguçadas presentes naquele lugar ermo.

Todos ficaram atordoados e confusos quando entraram correndo na única pensão que havia em frente à praia, sob as ordens de Luís, o herdeiro do imóvel. O rapaz saiu de casa berrando, indicando que alguma força estranha agia nas imediações, causando um tumulto incompreensível, que perdurou por toda a noite. "Sinto que algo ruim está a ponto de acontecer a qualquer momento", dizia o jovem proprietário aos amigos. Os rapazes, conhecidos de Luís, acreditaram que ele estivesse doente, talvez sob efeito de um delírio febril, ou sobre efeito das drogas que trouxera escondido da namorada. Até a própria Amanda ficou com um pé atrás, e naquela noite não pôde dormir com tranqüilidade – rendendo-se apenas a cochilos esporádicos, como aconteceu com todos os outros.

Na manhã seguinte Luís não apareceu para o café da manhã. Em seu quarto, o chinelo estava jogado em um canto, e o casaco não estava pendurado na velha poltrona. Com certeza saíra para fazer uma caminhada matinal, foi o que os amigos pensaram, mas Amanda teve um inesperado pressentimento, tão surpreendente quanto o mal fadado presságio de Luís na noite anterior. Chamou a amiga, Patrícia, e as duas saíram juntas para procurar o jovem estudante de medicina que, há um mês, convidara os amigos para um feriado de carnaval inolvidável.

A areia da praia, levemente molhada pelo orvalho de uma noite emblemática, ainda mantinha gravadas as pegadas em direção ao sereno mar que, convidativo, se estendia para quase todos os lados que olhos humanos pudessem afrontar.

Todavia, antes mesmo de alcançar a primeira faixa espumante de água salgada, as pegadas desapareciam magicamente. "Foi a maré, Amanda", disse Patrícia, abraçando a amiga, que chorava copiosamente. Luís não sabia nadar.

Inconsolável, Amanda caminhou cambaleante de volta à velha pensão que ficava sob um platô de calhaus sobrepostos, quando ouviu um toque de acordes, de tão tênue sonoridade, que precisou parar de soluçar para distinguir o sublime ruído com clareza. A música saía de um ponto específico, de um foco que ficava exatamente onde terminavam as pegadas do jovem Luís.

A Balada era hipnótica. Mesmo assim, causava um horror imensurável. Cada nota, cada acorde, cada voz que partia daquele lugar unia-se em uma melodia perfeita e, ao mesmo tempo, aziaga. Amanda teve certeza que uma das vozes daquele coral invisível pertencia a Luís, uma inconfundível voz doce que a despertava a cada manhã de domingo, quando seus corpos arranjavam um tempo para se encontrar. Ajoelhou-se submersa em um pranto aterrador, e suplicou a Deus para que fosse levada para perto de seu tão amado homem – para o lugar de onde vinha o cântico que, em algum momento de sua mocidade, ela ouvira, sem saber que esta canção era a mais pura expressão fúnebre refletida por um ser humano.

Quem salvou Amanda deste deprimente torpor foi Patrícia, que apavorada carregou a amiga nos ombros e, depois de um tempo que não se podia medir, chegou com ela na velha pensão. Patrícia também ouvira a Balada macabra, e não podia explicar para si mesma de onde ela viera. Visivelmente abalada, pediu para que os rapazes preparassem as malas, pois eles precisavam fugir dali, imediatamente. É claro que os outros solicitaram uma explicação decente pra todo aquele corre-corre, e Patrícia prometeu explicar tudo no caminho, assim que o coração acalmasse alguns segundos. Mas sabia ela que jamais poderia transmitir o sentimento alarmantemente familiar que a acometeu naquela manhã trágica de um verão há muito esquecido.

Amanda, no banco carona do carro que se afastava acelerado da praia, viu ao longe os pescadores que, cautelosos, aproximavam-se do cais, e que não cometiam a imprudência de passar naquele lugar funesto onde um mal se instalara desde o tempo em que a humanidade começou, aos poucos, a perder sua inocência.

Em algum momento de nossas vidas, inevitavelmente, ouvimos o som brando da Balada.


Autor: Diego Santos


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