O Sertanejo Economista



Aguardando minha vez na sala de espera do oculista, vejo a reportagem sobre economia numa revista antiga. Opiniões as mais variadas de empresários, banqueiros, investidores, economistas, políticos. O assunto: plano Collor. Minha atenção divagava entre a leitura e a lembrança de um fato ocorrido na época, longe dos holofotes da ávida mídia. É a história de Nezinho e suas escolhas.

Nezinho trabalhava como tratorista na fazenda do "seu" Tuquinha e morava na casa do retiro com a mulher, dona Nenê e suas duas filhas, Ritinha com doze anos e Fátima com quatorze. A família tinha uma vida tranqüila, as filhas estudavam e a casa era provida de alimentos produzidos na fazenda, desde verduras, arroz, carne, até ao leite que dona Nenê pegava no curral toda manhã. Duas coisas ela gostava de ver quando buscava o leite: o pequeno balde cheio do líquido branco e o tórax do garoto Zé Bode que para se exibir, mesmo com o frio da manhã, costumava ficar sem camisa enquanto ordenhava as vacas. Não se contentando só com o vouyerismo, ela começou a se insinuar para o vaqueiro que, não resistindo, acabou desrespeitando o amigo Nezinho. A partir daí a coisa desandou e virou triângulo amoroso.

Mas o que tem tudo isso a ver com plano econômico? Você deve estar perguntando. É aqui que começa. Na época do governo Sarney Nezinho havia conseguido comprar um lote na cidade e ainda deixar uma pequena quantia de dinheiro aplicado na poupança. Um dia, necessitando fazer umas compras, resolveu sacar parte da aplicação. Foi ao banco e quando o funcionário lhe informou o saldo, levou um susto. Havia pouco mais de três meses que fizera o depósito e o valor agora era quase três vezes mais. Ele que já estava maravilhado com a super valorização do imóvel recém-adquirido, sentiu-se agora um homem rico. Perguntou ao bancário qual seria o rendimento mensal se aplicasse um valor equivalente ao preço de seu imóvel e quando o atendente lhe falou, pensou: "quase três vezes o meu salário!" Voltou pra fazenda inquieto, esquecendo até das compras. No caminho, enquanto dirigia o trator, nem prestava atenção aos buracos na estrada, pois sua mente estava ocupada traçando planos. Agora sim, teria condições de construir uma vida melhor. Chegando em casa foi logo saltando do trator, tirando os extratos bancários do bolso e chamando a esposa aos gritos.

- Nenê, corre aqui na sala, senta aqui! – a mulher chegou à porta que dava da cozinha para a sala enxugando as mãos no avental, assustada, tentando entender o que se passava.

- Que qui ta acontecendo, home? – perguntou curiosa.

- Nenê, nós vamos mudar pra capital. Vamos dar escola melhor pras meninas, vamos ter uma vida melhor!

- 'Cê enlouqueceu Nezinho? Pra viver na capital tem que ser rico ou ter emprego bão, sô!

- Eu fiz as contas, vou vender o lote, por o dinheiro dele mais o da prestação de conta do serviço na poupança e só com a metade dos juros vai dar pra gente viver. A outra metade vai aumentando o principal. Isso é plano econômico, eu vi o filho do patrão explicando pra ele. É complicado ocê não entende.

- 'Cê ta pensando em viver sem trabalhar, é isso? – perguntou desconfiada.

- Que é isso, muié, tá me chamando de vagabundo? 'Cê sabe que eu aprendi o ofício de pedreiro. Lá na capital eles constroem uns dez prédios por mês. Não vai faltar trabalho!

Nezinho não convenceu a mulher de imediato, mas aos poucos ela foi se encantando com a idéia, até que três dias depois disse ao marido:

- Tá bom, vamos mudar. Mas eu quero lhe pedir uma coisa. Leva o Zé Bode também, eu tenho dó desse menino. Já virou rapaz e não tem estudo nenhum.

- Que é isso, muié? Se fizer isso vou criar um problemão com o "seu" Tuquinha. Além d'eu sair ainda vou tirar outro empregado, ele me mata!

Dona Nenê na abriu mão da sua felicidade secreta. Como sempre soube fazer, acabou convencendo o marido.

- Ocê com essa mania de mãe do Zé Bode! Se não tem outro jeito, vamos levar o rapaz – concordou o inocente marido.

Um mês depois estavam chegando na capital. Nezinho foi rápido no gatilho. Vendeu o que pode e com o dinheiro alugou uma casa de três quartos num bairro modesto, comprou roupa nova pra família e até uns móveis complementares e aplicou o restante para custear o sonho.

Numa manhã, já descansado da mudança, Nezinho levantou bem cedo e chamou Zé Bode.

- Levanta Zé, vamos caçar serviço! – eles haviam combinado que procurariam trabalho juntos. Nezinho como pedreiro e Zé Bode como servente, para ir aprendendo o ofício. Nesse dia sugiram as primeiras dificuldades. Dona Nenê avisou que não tinha leite e nem pão para o café da manhã e Nezinho, já sentindo saudade do leite gordo da fazenda e do bolo de fubá, foi à padaria, comprou o leite e o pão e descobriu que esses e outros salários indiretos não mais existiriam. Segunda dificuldade: a experiência das casas simples construídas no interior era pouca para trabalhar nos arrojados empreendimentos da capital. O mercado exigia especialização, tinha que entender de galvanizados, argamassas, porcelanatos, instalações hidráulicas e tantos outros termos que os dois nunca ouviram falar.

Pouco tempo depois as eleições trouxeram o presidente Collor com seu diabólico plano, que tomou toda economia de Nezinho num bloqueio só. O homem se desesperou. Para piorar, ele ainda descobriu que, além de sua mulher, seu amigo Zé Bode vinha comendo suas duas filhas, inclusive engravidando a mais velha. Sentindo-se traído pela família, pelo amigo, pela pátria e pelo destino, deixou todos para trás com três meses de aluguel atrasados e a despensa vazia. Com o orgulho ferido e amargamente arrependido por tudo que fizera, foi procurar o antigo patrão. "Seu" Tuquinha, homem de bom coração, antes de aceitá-lo de volta, filosofou:

- Nezinho, a vida é feita de escolhas. Tudo que escolhemos, principalmente as pessoas, é que tornará nossa vida melhor ou pior. Espero que tenha aprendido a lição.

Outro dia encontrei-me com Nezinho na rua. Está tranqüilo, ainda trabalhando para "seu" Tuquinha, arranjou outra companheira, tem uma linda netinha filha da Fátima com Zé Bode e só está contrariado porque o Collor conseguiu se eleger senador.

- Temos que escolher bem os políticos pra governar o país – diz sempre, com ar de quem aprendeu com a experiência o que pode acontecer quando fazemos más escolhas.


Autor: Antonísio Siqueira Borges


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