Morro do Alemão: novas significações



No serão do ultimo sábado, já passava da meia-noite, pedimos a Luca Matéria que comentasse o recente episódio do Morro do Alemão. Sem titubear, o Mestre falou assim:

O combate a traficantes e ao consumo de drogas nas favelas do Rio de Janeiro, assim como em toda parte, sempre foi uma incumbência policial. Isso em conformidade com uma cultura que remonta à própria definição de "polícia". Polícia  registra o dicionário  é: 1. o conjunto de leis ou regras impostas ao cidadão com o fito de assegurar a moral, a ordem e a segurança públicas; 2. a corporação que engloba os órgãos e instituições incumbidos de fazer respeitar essas leis ou regras, e de reprimir e perseguir o crime.

Eis aí por que ninguém telefona para a Marinha ou para o Exército, quando se vê ameaçado por traficantes, ou incomodado de alguma forma pelo consumo de drogas.

Por outro lado, ninguém se lembrará de telefonar para a Polícia, em caso de ameaça à soberania do País.

Segue-se daí haver eu entendido como genuinamente policial o ataque aos traficantes do Morro do Alemão, mesmo contando a Polícia com o auxílio da Marinha e do Exército.

Mas esse modo de entender só foi possível sustentar até me dar conta de que a presença da Marinha e do Exército no Morro do Alemão não se limitava ao mister de suprir deficiências materiais da Polícia, de auxiliá-la numa tarefa de sua estrita competência. Até me dar conta de que a presença da Marinha e do Exército no Morro do Alemão injetava no combate aos traficantes o alento de novas significações.

 Novas significações?
 Sim. Percebi que ao influxo das Forças Armadas o velho caráter policial do combate aos traficantes ganhava contornos solenes, subindo alguns pontos na hierarquia institucional.
 Quer dizer então que a simples presença da Marinha e do Exército no Morro do Alemão aboliu o caráter policial do combate aos traficantes?
 Não diria que o aboliu. É cedo para falar em abolição. Diria que o golpeou duramente, o que não deixa de ser muito animador. Também não diria a "simples presença". Afinal, Marinha e Exército nunca são uma "simples presença". Melhor seria dizer que no cômputo geral das transações o poder simbólico das Forças Armadas acabou impondo alterações semânticas ao velho caráter policial do combate a traficantes.

 Nesse caso, fale-nos dessa transição. Se o combate aos traficantes deixou de caracterizar uma ação policial, caracteriza agora o que?
 Antes de tudo, digo que caracteriza uma ação mais nobre e mais graduada. De todos os modos, vamos por partes.

LM deu então início a uma longa explanação. Disse ele: convido-os a convir comigo, desde logo, em que as cenas históricas do Morro do Alemão, onde a Marinha e o Exército aparecem "auxiliando" a Polícia em uma operação policial típica, constrangiam. E constrangiam porque, nos termos da Constituição, cabe à Polícia e aos Bombeiros a função de "auxiliar" as Forças Armadas em caso de necessidade. Nunca o contrário.

Em nome da dignidade litúrgica dos cargos e das funções, portanto, era preciso superar a incômoda evidência. Em outras palavras, era preciso deixar bem claro não só aos traficantes, mas ao mundo inteiro  afinal a televisão mostrava tudo ao vivo e a cores  que a ordem constitucional estava mantida: as Forças Armadas à frente das operações e a Polícia, como cumpria, "auxiliando".

A televisão mostrou os momentos decisivos em que o mito desfez esse primeiro constrangimento.

 Mito? Que mito?

 O mito que colocou as Forças Armadas no comando das operações, ora essa. Lembrem-se: o mito é uma mensagem. Vocês não viram? Inicialmente alguns discursos taxativos. Depois, o ultimato aos traficantes. O ultimato que determinou a evacuação dos esconderijos, "enquanto havia tempo".

A partir dali, ninguém no pleno domínio de suas faculdades emotivas podia duvidar de que, finalmente, São Jorge aceitara o desafio de enfrentar o dragão.

Mas, se a entronização superou o constrangimento constitucional de quem comandava quem no Morro do Alemão, abriu espaço a outro embaraço virtual  o embaraço de que as Forças Armadas comandavam uma operação policial típica.

Para superar este segundo embaraço, foi preciso adaptar o dragão ao estilo de São Jorge. Foi quando surgiu o segundo mito.

 Outro mito, Mestre?
 Sim, outro mito, outra mensagem. Foi tão bonito. Vocês não viram?
 Provavelmente sim, mas não custa nada o senhor refrescar nossa memória.

Luca Matéria prosseguiu.

Refiro-me ao içamento da Bandeira do Brasil no alto do Morro do Alemão, após a expulsão dos traficantes. Este mito remete ao artigo 10 da lei que regula a apresentação da Bandeira Nacional. Diz o artigo 10 da Lei 5.700 de 01 de setembro de 1971: "A Bandeira Nacional pode ser usada em todas as manifestações do sentimento patriótico dos brasileiros, de caráter oficial ou particular (grifo nosso).

Pronto! Sentimento patriótico. Defender o Morro do Alemão significava defender a Pátria. O combate aos traficantes deixava de ser uma questão policial. O dragão, finalmente, habilitava-se a experimentar a lança de São Jorge.

 Mestre, não queremos desacreditar a sua brilhante explanação, mas o senhor há de convir que, na realidade, a problemática dos entorpecentes não deixou de ser uma incumbência policial. Veja o sucesso das UPPs  Unidades de Polícia Pacificadora.
 Claro que não. Na realidade nada mudou. O combate a traficantes ainda é uma incumbência policial. Tudo o que eu disse até aqui aplica-se exclusivamente ao episódio do Morro do Alemão. Não nego que me entusiasmei um pouco com o içamento da Bandeira e a entronização de São Jorge. Um só reparo eu faço à sua observação.

 Fique à vontade.
 Aliás, nem chega a ser um reparo, é mais um pedido: peço-lhe que não argumente com o exemplo das UPPs. As UPPs, se bem lhes captei o enredo, alimentam ideais românticos. Querem pacificar os morros, querem restaurar o estilo de vida pacato e poético de outros tempos. Ora, isso é muito bonito, mas, convenhamos, não significa combater o tráfico, significa apenas manter os traficantes distantes das áreas pacificadas. Não me parece muito ético. Já pensou se essa moda pega?

Autor: Osorio De Vasconcellos


Artigos Relacionados


O Mito Do Içamento

O Combate Eficiente Ao Crime Organizado E Ao Tráfico De Drogas No Rio De Janeiro

Artigo: As Forças Armadas E O Poder De Polícia ? Final

A Verdade Que Ninguem Quer VÊ

Upp Unidade De Publicidade Policial

O Patrocinador Do Tráfico

A OcupaÇÃo Do ExÉrcito Brasileiro No Complexo Do AlemÃo E O Seu Poder De PolÍcia