Didática do ensino superior levando em conta as relações professores , alunos e didática



Didática do ensino superior levando em conta as relações professores , alunos e didática

Conceber o professor como profissional pressupõe a existência nele de um conjunto de saberes que o diferencia de um sujeito artesão, que intuitiva e amadoristicamente opera um ofício (GAUTHIER, 1998; TARDIF, 2000).
Esse conjunto de saberes tem-se constituído, tradicionalmente, a partir da co-existência de campos de conhecimento com naturezas diferenciadas: o específico da matéria de ensino, isto é, o conteúdo do ensino e da aprendizagem, que diz respeito a uma área de conhecimento estabelecida (Matemática, História, Língua Portuguesa etc); e o específico pedagógico, composto pelo conjunto dos conhecimentos relativos às dimensões que envolvem o ensino, considerando-se os saberes da ação docente, os quais definem o estatuto profissional do professor (LLINARES 1996; IMBERNÓN, 1994, 2000; GAUTHIER, 1998).
O modo como tem sido concebido o processo de formação profissional no ensino superior, a partir de saberes, é bastante discutido. Nas discussões, dois conceitos se entrelaçam com freqüência ao se fazer referência a esse processo: o de formação e o de desenvolvimento profissional. Por considerá-los fundamentais neste estudo, nós os discutiremos a seguir.
A diversidade de significados dos termos formação e desenvolvimento profissional que geralmente encontrarmos na literatura deve-se ao fato de alguns autores atribuírem o mesmo sentido a estes termos e outros tentarem conceituá-los sob diferentes perspectivas ou paradigmas. Como resultado disso, não se encontra na literatura um consenso sobre o significado desses termos. Apesar dessas diferenças, é possível perceber, em um mesmo paradigma, a existência de um conjunto de idéias centrais e comuns sendo adaptadas pelos autores em função de seus modos de pensar, ver, conceber e interpretar noções como as de percurso e de processo de formação.
Paro (1987) e, do mesmo modo, Dal Ri (1997), partindo das reflexões efetuadas por Saviani (1986), fogem à armadilha teórica de tentar explicar o significado do trabalho docente por meio da polarização entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo.
Segundo Saviani, trata-se "de uma polarização inadequada porque nós poderemos ter tanto o trabalho em educação que gera mais-valia como um trabalho em educação que não gera mais-valia" (1986, p. 79). Para Marx, "um trabalho de idêntico conteúdo pode ser produtivo ou improdutivo" (1985, p. 115), uma vez que a concepção de trabalho produtivo não advém do seu conteúdo, mas da sua forma social.
Assim, para compreender a natureza do trabalho em educação, Saviani (1986, p. 80) afirma que "a contraposição correta seria entre trabalho material e trabalho não material", tese que é endossada por ambos os autores citados.
Para desenvolver esse raciocínio, Saviani utiliza-se do Capítulo VI Inédito de O capital e cita o parágrafo em que Marx discute a presença do modo de produção capitalista no domínio do trabalho imaterial.
Paro (1987), ao discutir a questão no âmbito da teoria educacional e reconhecendo a relevância da contribuição de Saviani no sentido de elucidá-la, apoia-se em outra obra de Marx ? Teorias da mais-valia -, em que a idéia é retomada de modo mais claro e explicativo, no que é seguido por Dal Ri (1997):
A produção imaterial, mesmo quando se dedica apenas à troca, isto é, produz mercadorias, pode ser de duas espécies: 1. Resulta em mercadorias, valores de uso, que possuem uma forma autônoma, distinta dos produtores e consumidores, quer dizer, podem existir e circular no intervalo entre produção e consumo como mercadorias vendáveis, tais como livros, quadros, em suma, todos os produtos artísticos que se distinguem do desempenho do artista executante. A produção capitalista aí só é aplicável de maneira muito restrita, por exemplo, quando um escritor numa obra coletiva ? enciclopédia, digamos ? explora exaustivamente um bom número de outros. Nessa esfera, em regra, fica-se na forma de transição para a produção capitalista, e desse modo os diferentes produtores científicos ou artísticos, artesãos ou profissionais, trabalham para um capital mercantil comum dos livreiros, numa relação que nada tem a ver com o autêntico modo de produção capitalista e não lhe está ainda subsumida, nem mesmo formalmente. E a coisa em nada se altera com o fato de a exploração do trabalho ser máxima justamente nessas formas de transição.
2. A produção é inseparável do ato de produzir, como sucede com todos os artistas executantes, oradores, atores, professores, médicos, padres etc. Também aí o modo de produção capitalista só se verifica em extensão reduzida e, em virtude da natureza dessa atividade, só pode estender-se a algumas esferas. Nos estabelecimentos de ensino, por exemplo, os professores, para o empresário do estabelecimento, podem ser meros assalariados; há grande número de fábricas de ensino na Inglaterra. Embora eles não sejam trabalhadores produtivos em relação aos alunos, assumem essa qualidade perante o empresário. Este permuta seu capital pela força de trabalho deles e se enriquece por meio desse processo. O ator se relaciona com o público na qualidade de artista, mas perante o empresário é trabalhador produtivo. Todas essas manifestações da produção capitalista nesse domínio, comparadas com o conjunto dessa produção, são tão insignificantes que podem ficar de todo despercebidas. (Marx, 1980, p. 403-4)
Ao partilhar da posição de Marx sobre a natureza não-material do trabalho educacional, cujo produto não é separável do ato de produção, Saviani argumenta:
A atividade de ensino, a aula, por exemplo, é alguma coisa que supõe ao mesmo tempo a presença do professor e a presença do aluno. Ou seja, o ato de dar aulas é inseparável da produção desse ato e do consumo desse ato. A aula é, pois, produzida e consumida ao mesmo tempo: produzida pelo professor e consumida pelos alunos.
Conseqüentemente, ?pela própria natureza da coisa?, isto é, em razão da característica específica inerente ao ato pedagógico, o modo de produção capitalista não se dá, aí, senão em algumas esferas. De fato, em algumas esferas, de maneira limitada, ele pode ocorrer, como acontece com os chamados ?pacotes pedagógicos?: nesse caso uma aula pode ser produzida e convertida em pacote (cassete) que pode ser adquirido como mercadoria. Ocorre, então, a pergunta: essa tendência é generalizável? À luz das considerações anteriores, minha hipótese de resposta é negativa. Tal tendência não pode se generalizar simplesmente porque ela entra em contradição com a natureza própria do fenômeno educativo. Em conseqüência, do ponto de vista pedagógico, ela não pode se dar senão de forma subordinada, periférica. (Saviani, 1986, p. 81-2)
Paro concorda com o raciocínio de Saviani, ao reafirmar constatação já contida no texto de Marx "de que a especificidade da atividade educativa escolar impede que aí se generalize o modo de produção capitalista" (1987, p. 140).
Destaca, porém, o papel do educando no processo de produção pedagógico, não como mero consumidor, mas como partícipe das atividades desenvolvidas na sala de aula e beneficiário imediato desse processo. Se o educando constitui-se no beneficiário imediato do processo de produção pedagógico, para o autor, "é legítimo concluir que o tipo de trabalho imaterial que tem lugar na escola caracteriza-se pela presença do consumidor no ato de produção" (Paro, 1987, p. 140). O que se contrapõe ao tipo de processo que ocorre na produção material, "colocando obstáculos à generalização, na escola, do modo de produção autenticamente capitalista" (p. 141).
A participação do aluno acontece na medida em que ele entra no processo, simultaneamente, como sujeito da educação e como objeto. "?Objeto de trabalho? do processo produtivo escolar , já que ele se constitui na própria realidade sobre a qual se aplica o trabalho humano, com vistas à realização do fim educativo" (Paro, 1987, p. 141).
Desse modo, não se pode considerar a aula, simplesmente, como produto da educação escolar, uma vez que a sua realização pressupõe, não a passividade, mas a participação ativa do educando, fato que se constitui em aspecto determinante da própria natureza do processo pedagógico. A aula configura-se, assim, apenas como uma atividade, "ou o próprio processo através do qual se buscam determinados resultados" (Ibid., p. 144): a aprendizagem.
Se concebermos a educação como a apropriação de um saber historicamente acumulado, e a escola como uma das agências propiciadoras dessa educação, a consideração de seu produto não pode limitar-se ao ato de aprender. Neste ato, o aluno apropria-se de um saber que nele se incorpora, permanecendo algo para além do processo de produção. Assim, o resultado da educação escolar não é produzido pelo professor e consumido de modo imediato e completo pelo educando, sem deixar vestígios. A educação pode ser considerada efetiva se o aluno sai do processo diferente de quando nele entrou.
Diferença que não se constitui em mero acréscimo, mas supõe uma real transformação na personalidade, atitudes, valores, postura do educando, que se constitui no produto efetivo do processo pedagógico escolar.
Ressalta Paro, que
é importante constatar que esse conceito amplo de produto da escola leva a admitir a separação entre produção escolar e seu produto. É claro que essa separação não se verifica da forma absoluta em que se dá na produção material: enquanto nesta há um intervalo entre produção e consumo, de tal forma que o produto se destaca completamente da produção, no caso da escola, o consumo se dá imediatamente [...] mas [...] não [...] apenas imediatamente, mas se prolonga para além do ato de produção, por toda a vida do indivíduo. (1987, p. 144-5)
Uma outra característica do processo de produção pedagógico reside no fato de que o papel do saber, nele desempenhado, não se restringe à instrumentalização dos métodos e técnicas de ensino-aprendizagem. Incorpora-se ao produto final, comportando-se como matéria-prima.
Esse saber não é nada mais que o ?saber historicamente acumulado?, o qual não permanece apenas no ato de produzir a educação, mas ultrapassa esse processo, de forma análoga à matéria-prima na produção material, que entra no processo de produção como matéria-prima e sai como parte componente do novo produto. (Paro, 1987, p. 147)
Silva (1992), no entanto, analisando a questão sob a ótica da natureza do trabalho docente, argumenta que Embora possam ser observadas algumas tentativas por parte do estado para controlar as atividades docentes, o fato incontestável é que, essencialmente, sua natureza não tem apresentado modificações muito profundas. Embora o sistema educacional tenha se diferenciado enormemente, desenvolvendo uma burocracia que apresenta uma minuciosa divisão do trabalho, o trabalho de sala de aula continua a ser um trabalho essencialmente imune e impermeável ao controle externo. A impossibilidade de controle e de vincular a atividade de ensino a resultados precisamente especificados tem sido mesmo apontada como uma de suas características centrais. (p. 179- 180)
O mesmo autor admite, assim, a existência de tentativas de controle e de modificação do processo de trabalho docente com a finalidade de que ele se torne mais suscetível e passível de controle, o que, no entanto, não chegou a alterar essencialmente a natureza do trabalho pedagógico, tese da qual compartilhamos.
Enquanto a tese do caráter capitalista do processo de trabalho docente, defendida , entre outros, pelos autores citados, parte do axioma de que este é um processo capitalista, descrevendo-o como um processo de trabalho fabril, há autores que, seguindo as pegadas de Braverman (1987), deduzem o caráter capitalista do processo de trabalho docente a partir da evolução da profissão docente, advogando a tese da proletarização.



REFERENCIAS

DAL RI, Neusa Maria. Sindicato, autonomia e gestão democrática na universidade.São Paulo, 1997. Faculdade de Educação. Universidade de São Paulo. (tese de doutorado)
GAUTHIER, C. et al. Por uma teoria da Pedagogia: pesquisas contemporâneas sobre o saber docente. Ijuí: Unijuí, 1998.
IMBERNÓN, F. La formación y el desarrollo profesional del Profesorado: hacia una nueva cultura profesional. Barcelona: Graó, 1994.
HYPOLITO, Álvaro Moreira. Processo de trabalho na escola: algumas categorias para análise. Teoria & Educação. Porto Alegre: Pannonica, n. 4, p. 3-21, 1991.
LLINARES, S. Conocimiento Profesional del Profesor de Matematicas: Conocimiento, Creencias y Contexto en Relación a la Noción de Función.
MARX, Karl. Capítulo VI inédito de O Capital ? resultados do processo de produção imediata. São Paulo: Moraes, s.d.
PONTE, J. P. et al.Desenvolvimento profissional dos professores de Matemática: que formação? Lisboa:Porto, 1996. p. 47-82.
PARO, Vitor Henrique. Administração escolar: introdução crítica. 2. ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1987.
SÁ, Nicanor Palhares. O aprofundamento das relações capitalistas no interior da escola. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, n. 57, mai., p. 20-29, 1986.
SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1983.
________ . Ensino público e algumas falas sobre a universidade. 3. ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1986.
SILVA, Tadeu Tomaz da. O que produz e o que reproduz em educação: ensaios de sociologia da educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
TARDIFF, M. Saberes Profissionais dos Professores e Conhecimentos Universitários: elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas conseqüências em relação à formação para o magistério. Revista Brasileira de Educação, ANPED, n. 13, p. 5 - 24, 2000.



Autor: Alex Fabiano Sousa Barreto


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