Energia nuclear em fissão
Em seu ciclo de vida, a energia nuclear ainda é cara, não comprovadamente segura e não necessariamente limpa.
José Goldemberg
A energia nuclear é o único meio de superar a catástrofe do aquecimento global e criar um modo de vida que preserve Gaia.
James Lovelock
A volta do debate em torno do uso seguro de energia nuclear desencadeado após o acidente na usina japonesa de Fukushima em 11 de março de 2011, vai mudar a forma de o mundo encarar esse tipo de energia. Faz 25 anos que ocorreu o último grande acidente ? em Chernobyl, na Ucrânia (ex-URSS). Como desde então não houve nenhum acidente nuclear grave, parece que o medo passou e ter-se-ia o recrudescimento dessa indústria, estagnada desde a década de 1980. A Agência Internacional de Energia ? AIE tinha uma projeção que as usinas nucleares somariam 360 gigawatts à capacidade de geração energética global até o ano de 2035, mas após Fukushima esse valor sofreu um corte de 50 %.
Há atualmente por volta de 450 reatores nucleares espalhados pelo planeta, com vida útil media de operação de 25 anos, e 34 países construindo novas usinas, entre os quais o Brasil. Produzem cerca de 15 % do total de energia elétrica mundial e concentram-se nos EUA, França, Japão e países da ex-União Soviética. Houve estagnação e até decrescimento no Ocidente, mas na Ásia e Europa Leste a expansão atômica continua. As necessidades de maior segurança aumentaram sobremaneira os custos de construção de usinas, que passaram de U$ 400 milhões na década de 1970 para U$ 4 bilhões na década de 1990.
Utilizar a fissão ou a ruptura nuclear controlada como fonte de calor para girar turbinas elétricas causou enorme euforia após a Segunda Guerra Mundial, com a construção de centenas de usinas até ocorrer o acidente de Three Mile Island, em 1979 nos EUA. A partir de então, inúmeros projetos foram descontinuados, ou por vezes interrompidos durante a construção. A tecnologia nuclear consegue controlar a fissão nuclear, mas é vulnerável a acidentes. Sabe-se como os átomos se comportam e o que se deve fazer para que eles forneçam energia. Mas sabe-se também que especialistas físicos e políticos ficam perplexos quando ocorrem acidentes em usinas nucleares. Aí predomina a impotência humana, a falta de transparência na divulgação de informações, e a torcida para que a fusão do núcleo do reator pare por si só e não espalhe radioatividade pelo planeta.
Há anos a implantação de usinas nucleares enfrenta fortes movimentos de oposição, basicamente pelo medo provocado tanto por possíveis usos bélicos quando do domínio cabal da tecnologia do enriquecimento do urânio, como do espalhe da radioatividade devido a acidentes ou mesmo atos terroristas. Os receios são legítimos, pois os desdobramentos desses acidentes são intercontinentais e afetam a saúde e o meio ambiente por longos anos. O césio permanece na atmosfera por décadas e o plutônio por milênios.
Em março de 1970 entrou em vigor o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares- TNT, ratificado por 189 países, que obteve êxito apenas relativo em evitar novos entrantes na obtenção da capacidade bélica nuclear. Não conseguiu, por exemplo, que Israel, Índia, Paquistão e Coréia do Norte (esta saiu do TNT em 1993), cumprissem os preceitos do tratado. Frequentemente há países como o Irã e a Coréia do Norte, que desafiam inspetores da Agência Internacional de Energia atômica ? AIEA, responsáveis por fiscalizar e avaliar o cumprimento dos protocolos acordados ou eventuais perigos de dissidentes. O TNT não evitou também uma onda armamentista nuclear promovida por países detentores dessa tecnologia, a saber: EUA, China, Rússia, França e Inglaterra. Se bem que paira sobre estes países uma aura de desativação de seus arsenais nucleares, passado o período da Guerra Fria.
Para produzir armas é necessário enriquecer o urânio acima de 80 % e foi o que fez o Paquistão em 1998, numa demonstração de independência e poderio militar. A rigor, em maior ou menor escala, todos os países querem entrar para o seleto grupo dos países detentores de arsenais atômicos, os quais lutam para manter sua atual zona de conforto imutável. Faltam normas internacionais sobre a segurança das usinas - pelas regras negociadas na ONU, a AIEA estabelece recomendações sobre segurança nuclear, só que a responsabilidade de execução dessas recomendações cabe a cada Estado e não são compulsórias. Depois do desastre de Chernobyl, uma convenção internacional foi estabelecida, mas apenas 72 países a ratificaram.
Todos os estudos sobre a "engrenagem Terra" projetam forte desenvolvimento econômico nas próximas décadas, a demandar suporte de energia firme na base de seu sistema. As cargas de energias firmes e contínuas originam-se de três fontes: fóssil, hídrica e nuclear. As energias eólica e solar são renováveis e limpas, mas por seu caráter intermitente e ainda altos custos, têm papéis secundários em matrizes energéticas. Movimentos ambientalistas fazem pressão para taxar emissões de carbono, que trará, quando ocorrer, enormes vantagens econômicas às fontes de geração de energia hídrica e nuclear.
A ciência pode ser usada para diferentes fins, éticos ou não, pacíficos ou bélicos ? a escolha fica nas mãos de quem possui esse conhecimento. Todo conhecimento está sujeito ao possível mau uso. No entanto, a energia nuclear é vista como uma das mais perigosas, apesar de ser fundamental em alguns países para compor matrizes energéticas. Sua geração é de baixo carbono e possui inúmeras aplicações benéficas como produção de radioisótopos para a medicina, agricultura, indústria e pesquisa científica; esterilização de alimentos; e propulsão de navios mercantes.
Outro fator positivo da energia nuclear é sua elevada densidade, ou seja, em pequenos pedaços de chão se constroem usinas que produzem quantidades de energia infinitamente superior a outras fontes, por utilizar poucos insumos ? a fissão nuclear é por volta de 2,7 milhões de vezes mais densa que o petróleo.
O fator de capacidade ? FC das usinas nucleares supera qualquer outra fonte de energia. O FC é um indicador de desempenho que mede a geração de energia face ao potencial instalado. Nos EUA, os fatores apurados no ano de 2007 foram: 13,4 % para óleo combustível e diesel; 36,3 % para hidrelétricas; 40 % para energias renováveis (eólica, solar, biomassa); 73,6% para carvão; e 91,8 % para nuclear.
Brasil e Austrália detêm as maiores reservas de urânio, elemento natural mais pesado da Terra, cujos recursos são suficientes para suprir a demanda mundial por cerca de 85 anos. Já o tório, principal substituto do urânio, possui reservas três vezes maiores. Quanto aos rejeitos radioativos, defensores da energia nuclear afirmam que após 175 anos as emissões desse lixo caem para apenas um bilionésimo do índice que deixou o reator e que avanços tecnológicos certamente encontrarão solução para esse depósito de energia.
Engenheiros e especialistas nucleares trabalham incessantemente no desenvolvimento de pesquisas para solucionar os problemas da atual geração de reatores. Há centenas de novos projetos em estudo com o objetivo central de que novas usinas, designadas de quarta geração, sejam menos onerosas, mais seguras e com menores impactos ambientais. Cada um dos reatores nucleares espalhados pelo mundo tem um projeto executivo próprio. A falta de padronização eleva os custos de engenharia e construção, compromete a formação e treinamento de mão de obra e torna capenga o cumprimento dos rígidos e essenciais protocolos e rotinas de segurança.
A indústria nuclear orgulha-se de seu modelo de segurança, denominado defesa em profundidade, à prova de múltiplas falhas técnicas ou humanas. A projeção dos reatores prevê camadas redundantes de segurança. Para atacar o mal maior do aquecimento, há um sistema central de resfriamento de reatores e vários sistemas paralelos de reserva em caso de falhas. Um acidente de grandes proporções só poderá ocorrer se todos esses sistemas falharem ao mesmo tempo. Ao acrescentar camadas de redundância, a probabilidade de um acidente catastrófico é considerada desprezível. Um reator pode ter tantas camadas de defesa quanto se desejar, mas se todas elas puderem ser desativadas por um mesmo evento, a defesa em profundidade fica comprometida. Foi o que ocorreu em Fukushima, com o tsunami que interrompeu o resfriamento nuclear de 6 das 14 usinas da região afetada, causando estupor por toda nação nipônica.
O perigo nuclear não reside apenas nas panes, mas nos rejeitos, que podem tornar-se armas letais. Apesar de produzir reduzidas quantidades de rejeitos, alguns de baixo nível de radiação e até passíveis de reciclagem, não há um destino seguro para o lixo atômico. Ainda não existe em nenhum país do mundo um lugar adequado para depositar dejeitos radioativos, apesar de estudos e buscas intensas. A própria usina, finda a sua vida útil de cerca 40 anos, com possível sobrevida de mais 20 anos, transforma-se num grande foco potencial de contaminação, ou seja, depois de produzir toneladas de lixo, também se transforma em lixo.
O único depósito geológico definitivo do lixo radioativo fica nos EUA, em Yucca Mountain, Estado de Nevada. Sua construção já dura 25 anos, com custos de U$ 38 bilhões. Os resíduos estão densamente compactados no subsolo, em piscinas especiais e já há ações governamentais para fechar definitivamente o local, por pressão dos moradores locais. Ninguém quer lixo atômico no seu quintal!
Tanto a desativação de usinas nucleares quanto as responsabilidades e arranjos de compensação por acidentes não estão devidamente considerados nos custos totais das usinas. Quando ocorrem grandes acidentes, via de regra são os governos e a sociedade que carregam o pesado ônus da remediação, que em Chernobyl já alcançou estonteantes U$ 235 bilhões e ainda está muito longe a recuperação do local. Esse acidente, que liberou ao menos cem vezes mais radiação que as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, contaminaram uma área do tamanho da Suíça, transformou a cidade de Pripyat em um local inóspito e condenou essa região à vida selvagem por mais de 300 anos. A ONU diz que só após dois anos de estudos e pesquisas poderá entender toda a extensão do que se passou em Fukushima.
A grande maioria das usinas nucleares demanda enormes volumes de água, principalmente nos processos de resfriamento de reatores. Parte dessa água por vezes é despejada nos oceanos, contaminando a biodiversidade local. Em 2003 houve uma intensa onda de calor por toda a Europa, e França, Espanha e Alemanha tiveram que fechar ou reduzir a produção de algumas usinas, face aos baixos níveis de água.
Deve-se então reavaliar por completo as bases dos projetos em todas as usinas nucleares existentes. Processar a uma ampla revisão das normas de segurança e decretar sem piedade o descomissionamento de usinas com tecnologias inseguras e/ou vida útil no ocaso. Especificamente, precisa-se determinar se essas plantas são de fato capazes de suportar toda a gama de desastres que podem afetá-las: falhas tecnológicas, humanas, enchentes, terremotos e até atos de terrorismo.
Para que haja uma expansão da energia nuclear, o público precisa restaurar a confiança na indústria nuclear. Acreditar que as operadoras dos reatores nucleares, sejam públicas ou privadas, adotem rígidos padrões de segurança. Confiar na capacidade dos reguladores das regras do jogo de executar supervisão adequada; confiar que de fato a capacidade tecnológica constrói reatores que superam as vulnerabilidades dos modelos mais antigos; e que estes sofram um processo rigoroso de relicenciamento. Há de se convir que não será nada fácil o futuro da indústria nuclear. Novos reatores, dotados de mecanismos aprimorados de segurança, certamente não teriam sofrido o mesmo destino daqueles na usina de Fukushima, que têm mais de quatro décadas de vida útil.
Na Alemanha nasceu o mais representativo movimento antinuclear mundial, que originou o Partido Verde ? o mais robusto movimento ecológico da Europa. O acidente de Fukushima reacendeu a oposição à energia atômica e a Alemanha anulou uma decisão que prolongava a vida útil de 17 de suas usinas mais antigas, por pressão do movimento verde. Finlândia, Itália, Inglaterra e China (esta, responsável por 40 % das novas usinas em planejamento), anunciaram a suspensão e/ou revisão de seus planos de investimentos em novos projetos nucleares, pelo menos até baixar a radiação dos efeitos de Fukushima.
A França é sempre citada como um case de sucesso no uso de energia nuclear, já que 78 % de seu consumo de eletricidade provém dessa fonte. Ocorre que o programa nuclear francês é majoritariamente estatal, tem fortes subsídios tarifários, o próprio governo é o maior consumidor e há muitas dúvidas na obscura caixa preta operacional e financeira desse sistema. Nos EUA, apesar de incentivos governamentais, a iniciativa privada mostrou-se pouco estimulada em investir em novas plantas nucleares, face aos custos e altos riscos envolvidos.
Países como França e Japão, entre outros, têm poucas alternativas de explorar energia hidrelétrica devido a aspectos geográficos, diferentemente do Brasil, que além de ter inúmeras bacias hidrográficas não totalmente exploradas para a geração de energia hidrelétrica, tem possibilidades de incrementar em muito o desenvolvimento de energia solar, eólica e de biomassa, antes da duvidosa opção nuclear.
De acordo com o Greenpeace, a usina de Angra 2 funciona sem licença ambiental permanente e um laboratório com material radioativo foi soterrado por um deslizamento de terra onde as usinas estão instaladas. O plano de evacuação em caso de acidente em Angra é incipiente, não existem sequer rotas seguras para garantir a retirada da população que mora no entorno das usinas. Ainda conforme o Greenpeace, caso ocorra um acidente nuclear similar ao de Fukushima, a evacuação deveria abranger até 1,5 milhão de pessoas, em 27 municípios do Rio de Janeiro e São Paulo. Como não consegue comprovar que tem um plano de segurança para suas atividades nucleares, o governo brasileiro recebeu recentemente do Ministério da Economia da Alemanha o aviso da suspensão do financiamento de ? 1,3 bilhão para a construção de Angra 3, ora em andamento.
O uso da energia nuclear envolve materiais complexos, de alto risco, que exige governança supranacional por centenas de anos. Exige também elevados investimentos no entorno; mão de obra altamente especializada e treinada; disciplina militar; rotinas rígidas de segurança; e tecnologia de ponta. Cabe às instituições organizadas dialogarem em exercícios de alteridade democrática junto ao poder constituído qual será a participação de cada fonte em sua matriz energética, sem açodamento ou viés passional. É uma tarefa hercúlea e de difícil consenso, mas após um moroso processo brota uma nova cultura energética.
Ainda há muito que aprender com a energia nuclear e sua adoção possui pontos favoráveis e contrários. A decisão de adotá-la ou não tem então que ser tomada de forma democrática e transparente pelo conjunto de forças centrípetas da população envolvida. Provedores de energia nuclear têm que cercar a sociedade de garantias e credibilidade, transformar as secretas caixas pretas atômicas em painéis públicos. Enfim, provar que a energia nuclear não atingiu seu ponto de fissão como fonte energética segura.
Quem quiser se aprofundar no tema deve ler o excelente livro "Energia nuclear: do anátema ao diálogo", Editora Senac, 2011. Organizado pelo professor da USP o economista José Eli da Veiga, tem a participação, dentre outros, da maior autoridade brasileira no tema: o físico José Goldemberg.
Autor: Rodnei Vecchia
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