Os Tamancos De Otília



Conrado voltara com a camisa rasgada. Camisa feita em pedaços. Otília lavou-a, coseu-a, passou a ferro e a colocou no cabide pendurado à escápula. Ali a deixara, pois sabia que, logo cedinho, seu marido ia à luta para tentar sobreviver. Mas Otília estranhou os rasgões. Não se pareciam com aqueles provocados pelos gravetos secos da caatinga que tantas vezes remendou nas vestes do marido e dos seus meninos. Rasgões que pareciam feitos a bico de tesoura ou à ponta de faca.

- Seria mesmo? Mas quem faria isso a meu Conrado? Ele não tem inimigo. Não! Estou enganada. Conrado não tem nenhum ferimentinho. Foram os espetos do mato seco pela aridez da terra. Pobre terra maldita de sequidão, que nos leva à loucura! Será que foi meu próprio Conrado que, em desespero, rasgou a camisa? Tadinho do meu velho! Deve de estar maluco com essa mortalha de fome estendida neste sertão. Assum preto bateu asa pras bandas da Serra Grande. E num tem mais vivente nenhum nas folhas esfareladas da carnaúba. E nós, quando vamos botar pé nesses caminhos? Não quero largar meu “quixó”, mas se for o jeito, que Deus nos ajude e nos dê a sua bênção.

Otília era o retrato da conformação. Seu rosto triste e envelhecido nem parecia o de uma senhora de trinta anos. Sua trempe há dias estava sem brasas. Nada havia para cozinhar, só se fossem as pedras das estradas cobertas de pó. Nenhum tiúzinho passava rasteiro. Todos se foram para o bucho de viventes cristãos que competiam de igual para igual com outros predadores.

Otília abriu a mala velha e começou a contagem: duas calças de Conrado, uma calça do Chiquinho e outra do Cazuza; uma camisa do Conrado (a outra estava lá fora, pendurada). Seus só existiam dois vestidos rotos e duas calçolas íntimas feitas de saco de açúcar. Nada mais. Apenas aquilo era o enxoval de quatro habitantes da morada.

Conrado, ao entrar na camarinha, percebeu lágrimas no rosto da mulher que tentava disfarça-las, voltando o olhar ao pano velho que tinha por entre as mãos. E a voz estridente e rude do homem rompeu o silêncio:

- Tá chorando por que? É essa cara que eu vejo quando chego da lida? Marcha já, vai atrás de botar alguma coisa no fogo, que estou com fome.

Otília assustou-se com o tom de voz e com as palavras ásperas do marido, porque nos dez anos de casados, Conrado nunca a maltratara. E por que o fez agora? Nem comida tinha, então, como ela poderia cozinhar algo?

- Escute, Conrado, o que há? Nada temos, você bem sabe. Já acabei todos os mandacarus e não peguei nem mais um lagarto. O restinho de farinha a gente comeu ontem de noite. Eu estava aqui pensando: o que nós vamos fazer pra alimentar os meninos, porque nós dois podemos ficar com fome...

- Você deixe de ser maluca, Otília. Como é que vou trabalhar se não comer? Marche, veja o que você pode arrumar.

A infeliz afundou o rosto nas mãos em concha e deixou escapar um soluço profundo, tão dolorido o quanto sua alma. “Que posso fazer, meu velho?”

- Cadê minha camisa, você já remendou? Me dê ela que eu vou sair. Não quero olhar sua cara de fuinha, ela me dá nojo...

A mulher surpreendida pela agressão do marido, nada respondeu. Encaminhou-se para a sala, ergueu o braço e retirou a camisa da escápula. Retornou ao quarto entregando-a a Conrado, momento em que fez a seguinte observação:

- Conradinho, como foi que você rasgou tanto a sua roupa? Quase que a linha não dava para consertar tudo...

- Rasgando. Por que pergunta? O que você está pensando? Que eu estou com alguma rapariga, é isso, e que ela rasgou? Vá pro inferno mulher do diabo, você só serve pra me fazer raiva.

Otília estava atemorizada, sem nada compreender. Seu marido sempre a tratara com carinho e respeito e entendeu todas as vezes que não havia comida, mesmo porque ele era o principal provedor e há dias nada trouxera para casa. O bodegueiro já não vendia fiado a nenhum morador, porque a terra seca, estorricada não prometia lavoura. Então, era prejuízo na certa. A ele não importava se seu vizinho morresse a fome. O importante era o lucro, o tilintar de moedas dentro de sua gaveta rústica.

Meu Deus, o que fazer? Pensou a pobre criatura. E respondeu ao marido:

- Que é isso, Conrado, só perguntei como aconteceu. Não pode responder?

- Respondo, sim. Foi a mulher que eu amo, tá satisfeita?

- Conrado, não brinque assim, já não basta o nosso sofrimento?

- Então, você quer saber tudo? É bom, porque eu já ia mesmo dizer.

E o desalmado contou à humilhada esposa o seu romance com a Maria do Batista, uma prostituta do cabaré da Jurema, que já beirava os cinqüenta anos, conhecida por todos na região por haver assassinado dois dos seus inúmeros fregueses.

Otília apenas arregalou os olhos, entonteceu e caiu tocando bruscamente o rosto no chão. O homem, possesso, pensando que ela fingia, arrancou o tamanco velho que lhe caía do pé e com toda a força do seu braço bateu-lhe na cabeça três vezes consecutivamente. A mulher não se mexeu nem gemeu. E Conrado, sem olha-la, rapidamente fugiu, deixando os filhos que a tudo assistiram, em pranto, curvarem-se por sobre a mãe, morta, chamando-a desesperadamente.

Desgraçadas crianças! Além da fome que lhes diminuía os dias, agora, a mãe se fora, embora elas não entendessem a triste verdade.

A Polícia deu busca no cabaré da Jurema, lugar de pecados e perdições. Não encontraram o Conrado que há cerca de quinze dias era o freguês preferido. Agora, a Maria do Batista pagava a diária à “Madame”, dizendo-lhe que o dinheiro era do Conrado, que se apaixonara por ela, sem se importar se os dois “moleques” passassem fome.

Interrogada, Maria do Batista disse ao Cabo que naquele dia ainda não vira o Conrado, mas acreditava fosse ele o assassino de Otília, porque lhe dissera que dia mais, dia menos, ia livrar-se dela e dos fedelhos. E a mulher se estendeu em contar à autoridade, fragmentos do seu romance com o criminoso.

O Cabo que já tivera umas noites de amor com ela, mas fora desprezado, ainda guardava ressábios daqueles momentos de intensa desilusão e vergonha pelo abandono que chegara ao conhecimento de toda a cidadezinha, viu naquela disposição de ela ajudar a Polícia, a oportunidade de vingar-se da meretriz ladina que se exaltava de haver sido pivô de um crime, sem perceber que estava, inexoravelmente, condenando o amante.

- Então, dona Maria, a senhora me acompanhe até a Delegacia para que eu lavre este seu depoimento.

Maria do Batista era analfabeta, como as demais prostitutas daquele lupanar. O Cabo, sequioso de vingança, enquanto a mulher dizia o que pensava, ele batia à máquina o que ela ia assinar com o dedão.

Maria falou:

- Apois, num é seu Cabo, o Conrado vai me tirar do chatô e nós vamos pra Quixeramobim. Ele disse que ia abandonar a Otília e os meninos... já faz um tempo, não está levando nem um derréis pra casa. Se ele matou a Otília é porque ela deve de ter feito alguma araca quando soube da gente. O Conrado disse: “Pra me livrar dela e ficar com você, eu até mato”.

Ao que o Cabo, sagaz, perguntou: “E a senhora, aceitaria um homem que tivesse matado a esposa para ficar a seu lado?”

- Então, Cabo, e tem prova de amor maior do que essa?

- E se ele a chamasse para ajudar a mata-la, o que a senhora faria?

- Ora, bolas, eu ia, pois, num já matei dois. Por que não o terceiro?

- E por que a senhora matou dois?

- Num quiseram largar a mulher deles.

- Faz quanto tempo?

- O cumpade Deca... tem dois anos e o Cipó de Fogo, faz uns cinco.

Percebeu o Cabo por essas palavras que não estando prescrito nenhum dos dois crimes, o Termo de Declarações que ele ia fabricar seria o suficiente para “mete-la na cadeia”, coisa que já desejava acontecer há muito tempo.

Terminado o interrogatório e estando o termo concluído e assinado, o Cabo deu “voz de prisão” à Maria do Batista. A mulher escaramuchou, desgrenhou os cabelos, rodou na sala, abaixou-se ao tempo em que levantava a saia fazendo um gesto obsceno em direção a seu aprisionador.

O Cabo tinha um sorriso mordaz, preso ao canto da boca larga, enquanto os olhos miúdos e empapuçados dançavam ligeiros à espreita do mais leve movimento de sua desafeta. Ele queria ofende-la e até maltrata-la fisicamente, assim houvesse oportunidade. Além disso, esperava que correndo à larga a notícia de sua prisão, Conrado viria à Cadeia. Então, “cairia a sopa no mel”... Ficariam os dois presos, para seu deleite.

Anoiteceu e do Conrado nem notícia.

Na casa da finada Otília suas crianças não lhe abandonavam o corpo, já colocado por sobre um lençol estirado em cima de tamboretes amolecidos. Os poucos vizinhos, gente muito pobre também (era uma seca sem fim, que já durava três anos), sem nada para comer, perguntavam-se o que fazer com os dois meninos... duas bocas a mais na contagem, para a repartição do nada. Todavia, não podiam abandona-los: “Seja lá o que Deus quiser, Calixto, nós temos que ficar com os meninos” – disse Fulô.

Manhã despida na cabeceira do rio seco, amarela tal capinzal queimado, sem esconderijos ao longo do lajedo oposto à ribanceira. Enfeada pela desordem dos troncos mortos, antigos, estorricados pelo sol escaldante, em dias de fogo, sem nem mesmo uma gotinha rolar do céu, aquilo que fora uma linda várzea jazia... sem flores... sem o canto dos pássaros nem mesmo um “bem-te-vi”.

Manhã sem Otília ajoelhada no chão batido, em prece a Deus pelo seu Conrado, pelos seus meninos (se havia comida), de cara e mãos sujas - iscas das moscas – eles, a espanta-las, elas, renitentes, atormentando-os. Olhos tristes e olhar comprido à cata de mais um pedacinho de um alimento qualquer para enganar-lhes a fome.

Manhã de Otília endurecida por sobre tamboretes... mãos cruzadas, enverdecidas, gélidas, sem mais afagar a cabeleira revolta do menorzinho... sem cortar xiquexique, sem pegar calangos, sem arrumar a trempe... sem afagar Conrado... sem...

- Cadê os tamancos de Otília? Quem os pegou?

E procuraram, procuraram. Anita, a vizinha, os desejava. Os pés descalços, rachados, precisavam deles (santa pobreza!) mas onde estavam?

O Cabo voltou do enterro coçando as mãos para agarrar o assassino da mulher que até a hora de baixar à sepultura derramava sangue vivo pelo ouvido – um pedido de vingança – diziam os mais velhos. O homem frio, endurecido pelos relhos da vida, chorou. Compungia-se ao fitar o cadáver, os filhos debruçados, quase a cair dentro da cova... soluços amargos, pranto convulso. O homem frio chorou... chorou. O homem frio amou Otília, morta, mãos cruzadas no peito, faces encavadas... ouvido sangrando... seu vestido roto – sua mortalha curta -, a reza fanhosa do contristado povo... um, dois, três... (quem sabe?) dez, vinte vizinhos a esperar a morte. Havia dentre eles quem a invejasse. Seus tamancos... Anita, a vizinha, precisava deles. Onde estavam, tão velhos e encardidos?

Caatinga morta.

Risca no céu, escarlate - que foi isso? O Cabo entende: a morta quer vingança. E a terá - ele o disse.

Noite alta. O vento sibilante por sobre a cumeeira da casa vazia... vazia. O estralar da porta de tábua de felpas desfiadas, amortecidas, como se alguém abrisse... Quem se atreveria? Ali morrera alguém cujos tamancos sumiram. O estralejar da tábua, o assobio do vento da madrugada alta... Se houvesse algodoeiro em pé, a Lua resplenderia os capulhos – cabelos brancos dos fantasmas – balouçantes, desenhando sombras enfeitiçadas, ora anjos ora demônios, no chão ressequido, morto, morto a lembrar Otília, inerme, inerme.

O Cabo divisou uma sombra movendo-se, sorrateira, a esconder-se atrás do fogão de barro da Cadeia, lá fora, ao relento. Veio-lhe ao pensamento: Conrado a procurar Maria do Batista, encarcerada por seus crimes, pelo maior dos seus crimes: desprezar o Cabo, enxota-lo de sua cama. Todos souberam... todos. E sorriram dele – a autoridade escarnecida por uma puta “sem-eira-nem-beira”.

Ah! A vingança doce – regalo de sua alma empedernida de ciúmes de Conrado - “Vou pegá-lo – pensou”. Vou colocar ele no xadrez ao lado dela. Vou mata-los de tormento, de ansiedade... é assim que se diz? E vou gozar a minha vingança. Escrevam isso.

Cauteloso, colocando a arma em posição de ataque, pé ante pé, sombra gorda, disforme, avança o Cabo: “Quem vem lá?” E o silêncio quebrado apenas pela respiração alterada que tenta controlar, torna-se mais grave. Ele avança e resmunga: “Quem vem lá?” Fale ou atiro.

- Atire, não, seu Cabo, ele está morto.

- Morto? Quem está morto?

E o silêncio mais grave... a transpiração das mãos, exagerada, o respirar acelerado, o coração em tumulto... “Quem está morto?” Fale ou atiro.

- Atire, não, seu Cabo. Atire não. Num perca sua bala, ele tá morto.

O Cabo não entendia aquela voz fanhosa de troça, cavernosa, que ele não atinava de onde vinha....Seria gente? Ou... Aí, temeroso, parou. Sentia no corpo um peso desmedido que o aprisionava ao solo. Não podia movimentar os braços... a língua pesada, suor abundante a esfriar-lhe o espírito... quis perguntar... não deu. Sua fala nem mesmo existia... secura tão grande na garganta. Pensar... somente pensar. Mas pensar era muito... se morto estava, atemorizado, engasguecido.

O dia o encontrou adormecido, a arma disposta nos joelhos, o Sol desenhando sombras – uma delas, em sua boca – o casquete do soldado – “Acorde, Cabo, como dormiu aqui fora? Vigiei a presa.”

O fogão de barro ali, a trinta passos... “Acode, gente, o criminoso está morto... o crânio esmagado... dois tamancos velhos, encardidos, vermelhos de sangue calçam-lhe as mãos.”
Autor: Lucineide Souto


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