Habitus, campo e capital



Habitus, Campo e Capital


O foco desta resenha aponta para os conceitos Habitus, Campos e Capital, centrais da obra de Pierre Bourdieu. Para tanto, trabalhei com textos de alguns livros deste autor: O Poder Simbólico, Questões de Sociologia, A Dominação Masculina, Coisas Ditas, A Miséria do Mundo e o livro Escritos de Educação, organizado por Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani, com textos de Bourdieu que ainda não estão disponíveis no Brasil.. O interesse em entender como o autor utilizou e desenvolveu suas teorias utilizando sempre esses três conceitos foi o que orientou este trabalho.
O campo é um espaço de jogo e de luta entre o novo (dominados, pretendentes) e o os dominantes. É um espaço estruturado de posições que são objetos de disputas. As posições independem de seus ocupantes para existir. Cada campo possui propriedades suas que as diferenciam dos outros campos apesar de possuírem leis que não variam. Os dominantes criam as regras. Cada campo possui uma doxa, ou seja, regras e verdades implícitas que são conhecidas pelos dominantes do campo e que ao serem desveladas pelos dominados garantem-lhes alguma possibilidade de impor uma nova doxa. As regras são objeto de luta.
Uma das lógicas do campo é que os envolvidos possuem interesses em comum. Por exemplo, no campo científico todos os envolvidos têm interesse em serem citados, além de terem publicações em revistas e jornais científicos; assim há a reificação de que tal doxa expressa a verdade e desta forma impõe-se num fluxo "natural".
As riquezas que existem no campo são chamadas de capital. Para cada campo há um capital específico que deve ser acumulado afim de que o seu detentor possa assumir a posição de dominância. Exemplos: capital científico (livros, publicações etc); capital social (os relacionamentos sociais; ser figura pública ou amigo de alguém conhecido ? vale para todos os campos); capital cultural (viajar para vários países, falar várias línguas, assistir a vários filmes e exposições de arte...) etc. Essas riquezas acumuladas se prestam a conseguir uma posição de dominância no campo.
O capital acumulado num determinado campo pode ser transferido para outro, desde que ambos os campos requeiram os mesmos. Por exemplo, quem é modelo acumula capital que pode ser convertido para o campo das telenovelas somado a outros capitais específicos; jogadores de futebol podem tornar-se comentaristas esportivos. Alguns campos disputam entre si como, por exemplo, o campo das Ciências Sociais e o Jornalismo que querem ver seus discursos legitimados. Os jornalistas acusam os cientistas sociais de escreverem para poucos enquanto a réplica está no fato destes escreverem o óbvio.
Nesse tipo de análise não existe talento, vocação, dom, pois, sua posição dentro de um campo dependerá de como você incorporou o social. Os indivíduos não se deslocam ao acaso no espaço social, mas, ajustam as suas aspirações às suas oportunidades objetivas.. A vocação seria esta adesão antecipada ao destino objetivo que se impõe pelo habitus, pela estrutura e pelo volume de capital herdado e pelo "campo dos possíveis" objetivamente ofertado a um indivíduo determinado. Assim, vocação seria a combinação do capital herdado, do habitus e das possibilidades do campo. O acaso dependeria da posição no campo bem como os gostos.
Numa abordagem bourdiesiana, o habitus é o que determina a posição do indivíduo no campo. Por exemplo, será que Mozart seria Mozart se o seu pai ao invés de músico tivesse possuído outra profissão? E no campo artístico, Fernanda Montenegro, por exemplo, ao cuidar de sua carreira escolhendo bons papéis, bons diretores, construiu um capital que lhe proporciona dominância no campo. Houve um cuidado com a moldagem do habitus ao campo artístico que proporcionou acúmulo de capital específico.
Segundo Bourdieu, "O habitus, sistema de disposições adquiridas pela aprendizagem implícita ou explícita que funciona como um sistema de esquemas geradores, é gerador de estratégias que podem ser objetivamente afins aos interesses objetivos de seus autores sem terem sido expressamente concebidas para este fim". (Questões de Sociologia, p. 94). Logo, pode-se perceber que os habitus são estruturas mentais através das quais os agentes apreendem o mundo social. São em essência produto da interiorização das estruturas do mundo social. O habitus integrando todas as experiências passadas funciona a cada momento com uma matriz de percepções de gostos e de ações. O habitus é o jogo social incorporado e transformado em natureza.
O conceito habitus satisfez a necessidade que o autor tinha de explicar como o indivíduo (agente) internaliza, no seu corpo, nos seus gestos, o grupo social do qual faz parte levando em conta a preocupação de não direcionar a sua análise para um reducionismo explicativo estruturalista ou individualista. Segundo uma visão estruturalista, o grupo social do qual o indivíduo faz parte desde o seu nascimento seria o responsável em direcionar todas as ações individuais sem a mínima possibilidade de escolha; a institucionalização de valores seria anterior e independente dos indivíduos. Numa visão individualista o indivíduo seria o sujeito de suas ações, e que tomaria atitudes que estivessem mais de acordo com a satisfação das suas necessidades.
O habitus agrega em si uma explicação que tangencia essas duas vertentes: quanto maior o conhecimento que o indivíduo tem da sua situação de disputa dentro de um campo social, maiores serão suas chances de manipular o seu habitus e acumular capital específico. "O habitus (...) Sendo produto da história, é um sistema de disposições abertas que não cessa de ser afrontado por experiências novas e, portanto, não cessa de ser afetado por elas. Ele é durável, mas não imutável" (BOURDIEU. In: BOURDIEU e WACQUANT, Um convite à Sociologia Reflexiva 1992, p.108-9). Assim, ele responde à grande questão das Ciências Sociais: a estrutura social forma os sujeitos ou os sujeitos criam ou recriam as estruturas?
A sociedade está inscrita no indivíduo e este pertence a inúmeros campos sociais e se ele se reconhece numa disputa começa a compreender que precisa manipular o seu habitus e acumular o capital necessário ao campo ao qual disputa; o indivíduo começa a ter condições de disputar num campo quando ele percebe como não-naturais as verdades (ortodoxia) produzidas pela classe dominante e reproduzidas pelos sistemas simbólicos: "O habitus também pode ser transformado através da sócio-análise, a tomada de consciência que permite ao indivíduo voltar-se sobre suas disposições. Mas a possibilidade e a eficácia deste tipo de auto-análise são elas mesmas determinadas em parte pela estrutura original do habitus em questão, e em parte pelas condições objetivas sob as quais se produz este tipo de consciência. (BOURDIEU. In: BOURDIEU e WACQUANT, 1992, Um convite à Sociologia Reflexiva,1992, p. 239).
As verdades, as regras não são impostas dentro dos campos: elas são incorporadas como verdades. A violência simbólica é reforçada quando os dominados naturalizam as razões da sua não-dominância. Os sistemas simbólicos produzem um "conformismo lógico". Por exemplo, um operário de uma fábrica que faz um serviço manual acha justo um advogado ganhar muito mais do que ele, pois este mereceria devido ao tempo investido nos estudos, sua inteligência inata etc. Daí a meritocracia serve para justificar as diferenças de renda.
Avalio que existe um sistema simbólico que ampara a Meritocracia : especialistas surgiram para explicar o desempenho das pessoas numa sociedade individualista, hierarquizada e sem condições de atingir o pleno-emprego. O material produzido por esses intelectuais serve para justificar o neo-liberalismo e o aprofundamento das desigualdades sociais. Seria um exemplo para a analogia considerada por Bourdieu entre o Campo Científico (produtor de capital simbólico) e o Campo Econômico (interessado no acúmulo de capital econômico).
Cada campo tem os seus dominantes e nesse caso específico o que está em disputa é o monopólio da violência simbólica legítima. Os especialistas querem acumular produção simbólica vendo os seus discursos legitimados e os capitalistas querem acumular produção de capital .Os primeiros ao buscarem a sua legitimidade acabam legitimando os segundos.
Para cada campo há um capital específico; quem tiver o habitus mais incorporado e adequado ao campo, maiores chances terá de disputar e conseguir a posição superior na hierarquia acumulando os capitais específicos para isso. Os homens produzem e incorporam essas estruturas sociais. Conhecer as regras é ter relativa liberdade de acumular capitais específicos.
No campo científico, o habitus esperado é aquele que agrega dedicação de tempo exclusiva e consequentemente traz dificuldades para dedicação à família e portanto está mais associado ao homem. No campo dos executivos, é comum percebemos traços de habitus masculinos incorporados por mulheres, como o tom da voz, a roupa etc. As mulheres tentam incorporar características masculinas para que estas gerem legitimidade e acúmulo de capital.
A Sociologia contribuiria com a relativa emancipação do homem na medida em que nos ajudaria a negociar com os nossos determinismos.
" A Sociologia liberta libertando da crença mal colocada nas liberdades ilusórias" ("Fieldwork in philosophy". In: Coisas Ditas. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1990. Bourdieu, p. 28).

Autor: Regina Lucia Lima Feitosa


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