Neutrino, O Sucesso De Uma Hipótese Ad Hoc



Neutrino, o sucesso de uma hipótese Ad Hoc

Levada, C. L.1; Maceti, H.2; Lautenschleguer, I. J.3

Grupo de Estudos em Ciências da Natureza, Matemáticas e suas Tecnologias

(1) [email protected] AFA – Uniararas (ISE)

(2) huemerson@uniararas-Uniararas(ISE) e

(3) ivanlautens@ Uniararas (ISE)

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INTRODUÇÃO

Este trabalho originou-se durante discussões ocorridas durante aulas de Prática de Ensino de Física, quando foi apresentado um tema que englobava o conceito de hipótese Ad Hoc. No decorrer das explicações surgiu a necessidade de apresentar exemplos a respeito de hipótese Ad hoc e, dentre os vários casos, mencionou-se o do neutrino. Após a apresentação desta partícula como uma criação hipotética, houve interesse do grupo de alunos em saber algo mais sobre os acontecimentos que envolveram sua descoberta. A partir de então, foi feita uma pesquisa bibliográfica a respeito do tema.

Com apoio dos professores de Física Básica e História da Física desenvolveu-se uma pesquisa bibliográfica baseada principalmente em autores que discutem, durante o período de 1930 a 1950, a questão da postulação do neutrino como partícula. Também foram utilizados dados secundários, obtidos em artigos e livros, nos quais se procurou examinar a questão do impacto causado na comunidade científica bem como as muitas controvérsias originadas desta hipótese. Procurou-se dar uma conotação que não fosse unicamente histórica, mas sim que aproveitasse as discussões e as idéias contidas no material bibliográfico para enriquecer o ensino de Física, inclusive enaltecendo o papel de uma hipótese Ad hoc bem sucedida.

UM POUCO DE HISTÓRIA

Comemorou-se, em 2006, setenta e cinco anos da postulação do neutrino, partícula esta que foi detectada há cinqüenta anos atrás pela experiência de Cowan e Reines que registrou os traços do neutrino, conforme se constata nas revistas Nature e Science de Setembro de 1956.

Em dezembro de1930, o físico austríaco Wolfgang Pauli comunicou por carta1 que não compareceria na conferência de Física Nuclear em Tübingen, mas naquela indicou a possível solução de um problema que atormentava os cientistas da época sobre o decaimento beta. No referido processo, a energia do elétron emitido assume valores que variam de zero até um valor máximo, fornecendo um espectro contínuo de energia, quando se esperava que assumisse apenas um valor fixo. Na referida carta, exposta durante a conferência, W. Pauli resolvia o mistério postulando a existência de uma nova partícula. Assim, na década de trinta, do século passado, alguns cientistas adotaram oficialmente uma partícula aparentemente inexistente, por meio de uma hipótese ad hoc, para escaparem do dilema que era explicar o "desaparecimento" de certa quantidade de energia em experiências envolvendo o decaimento beta para o qual não se observava uma coerência entre a teoria e a experiência. Com a proposta da nova partícula, o objetivo era confirmar o principio da conservação da energia. A tênue e misteriosa partícula neutra postulada por Pauli há setenta e cinco anos foi batizada de neutrino, ou, pequeno nêutron, por Enrico Fermi (1934), em sua teoria sobre o decaimento beta, publicada na revista Phys. Z de 19342. Experimentalmente, um núcleo A decaía em um núcleo B, sendo detectado um elétron e nada mais. Então, a sugestão da existência desta partícula foi acatada com muita relutância, uma vez que os especialistas "mais conservadores" sentiam que estavam evocando elementos da magia para explicar as propriedades da matéria. Esta afirmação se deduz da leitura do comentário feito por Eric Carle, na apresentação do livro , intitulado "The neutrino, Ghost particle of the atom" Asimov (1966). Este livro faz referência ao neutrino como partícula fantasma ou "nothing particle", proposta inicialmente como uma obra de ficção ou imaginação com finalidade de não violação da lei da conservação da energia.

Bush e Silvidi (1964), mencionam interessantes passagens e informações até certo ponto pitorescas sobre o tema neutrino, uma partícula imaginária que se tornou real.

A maneira pela qual a "nothing particle" foi relutantemente proposta e, depois, triunfalmente revelada é uma das emocionantes aventuras da história da Ciência.

DILEMAS SOBRE CONSERVAÇÃO DA ENERGIA

Durante o decaimento beta-, um nêutron transforma-se num próton mais um elétron e, a princípio, durante este processo de emissão, a mesma coisa sempre acontece. Dessa forma, a energia do elétron emitido deveria ser sempre a mesma para uma dada amostra. No entanto, cada elétron emitido apresenta um valor diferente de energia, levando a um espectro de energia bem extenso. Em geral, obtém-se um valor menor da energia do elétron. Para onde teria ido a energia que faltava, perguntavam os físicos do passado?

Para entender os procedimentos experimentais adotados para verificar a não conservação da energia, sugerimos consultar o livro de Física Nuclear de Kaplan que faz referências, ao trabalho de Meitnar e Orthman (1930) entre as inúmeras publicações referenciadas. Tratava-se, então, de uma hipótese Ad hoc com a finalidade de não violação da lei da conservação da energia. Assim, o embrião que permitiu o conhecimento do neutrino foi o seguinte questionamento: por que nem todas as partículas b- emitidas por um mesmo isótopo apresentavam a mesma energia? Entre os trabalhos pioneiros que se referem a estes fatos destacamos Ellis e Wooster (1927), Richardson e Paxton (1936), Marinelli, Brinkerhoff e Hine (1947) que, entre outros aspectos, sugerem a possibilidade de que o processo de desintegração do núcleo não deveria ser o mesmo para os diferentes átomos de uma mesma amostra radioativa. Isto é, o fenômeno deveria ser característico do tipo de átomo em desintegração que, também, seria diferente de um núcleo para outro.

Niels Bohr, um dos fundadores da teoria quântica chegou a pensar em "uma possível limitação dos teoremas de conservação". Aliás, muitos físicos famosos eram adeptos de uma explicação para o espectro beta que dava conta da violação na lei da conservação da energia. A primeira argumentação plausível impondo sérias dúvidas sobre a validade da lei da conservação da energia em fenômenos de pequena escala foi apresentada em 1919 por Franz Exner, (apud Schrödinger 1958). De acordo com Dirac (1936), a lei da conservação da energia para processos atômicos foi formalmente contestada por meio de uma teoria bem fundamentada proposta por Bohr, Kramer e Slater, a teoria BKS (1924), com intuito de pôr fim aos sérios conflitos então existentes entre os aspectos ondulatórios e corpusculares da luz.

De acordo com a teoria BKS, não haveria conservação da energia para processos atômicos individuais, mas garantir-se-ia a conservação estatisticamente quando da ocorrência de um grande número de eventos. A teoria BKS não conseguiu sobreviver diante de evidências experimentais principalmente após o advento da mecânica quântica, como se pode constatar nos comentários feitos pelo próprio Niels Bohr (1936) na seção de cartas ao editor da revista Nature. Eis o que diz Bohr num dado ponto de seu comunicado: "... quando da generalização da teoria clássica da radiação para resolver o dilema sobre o caráter ondulatório ou corpuscular da radiação, foram expressas dúvidas a respeito da validade da lei da conservação da energia para processos quânticos individuais, mas a situação naquela época era bem diferente da de hoje. Não somente temos descobertas experimentais subseqüentes, mas, acima de tudo, temos o estabelecimento de métodos racionais da mecânica quântica e da eletrodinâmica, provendo a compatibilidade da existência do quantum de ação com estrita validade das leis da conservação em fenômenos como a difração de elétrons e efeito Compton. O exame iniciado por Heisenberg, sobre as limitações complementares da teoria quântica da medida de quantidades mecânicas e de componentes do campo eletromagnético removeram todos os possíveis paradoxos a esse respeito".

Por outro lado, vários experimentos associados com a Física Nuclear, especialmente aqueles obtidos por Shankland (1936), estavam em desacordo com a lei da conservação da energia e, de acordo com Dirac (1936), seria necessário recorrer a uma teoria do tipo BKS para explicação dos dados experimentais de Shankland. Dirac argumenta ainda que a adoção dessa teoria implicaria drásticas mudanças nos fundamentos da Física, tais como abrir mão da lei da conservação da energia e momentum em fenômenos da Física Nuclear.

A carta de Pauli apresentada na conferência em Tübingen mudou todo esse quadro. Ali, ele sugeria que a desintegração do núcleo A criava não só o núcleo B e o elétron mas também uma terceira partícula (X), que seria neutra e dificilmente detectada. Essa nova partícula carregaria a energia que faltava ao elétron, atendendo à lei da conservação. Fermi (1939) propôs o nome de neutrino, que significa neutro e de pouca massa, para a partícula X. A teoria de Fermi explicava os dados experimentais sem dificuldades, mas ainda desagradava os físicos, pois o neutrino não tinha sido detectado. As primeiras tentativas revelaram que a partícula podia atravessar imensas distâncias sem interagir com algum átomo. Bethe e Peierls (1934) sugeriram que, se o decaimento do nêutron criava o neutrino, um próton e um elétron, deveria existir o processo inverso, em que o neutrino seria absorvido por um próton, gerando um nêutron e um antielétron, processo batizado de decaimento beta inverso.Por isso, em 1934, Bethe concluiu ser praticamente impossível observar o neutrino. Entretanto, foi exatamente desta maneira que a hipótese do neutrino foi confirmada posteriormente.

A ACEITAÇÃO DA PARTÍCULA

O fato concreto que tanto martirizava os teóricos da época é que durante o decaimento beta (b+ ou b- ) são ejetadas do núcleo partículas com energia compreendida entre zero e um valor máximo (Emax ), oferecendo um valor médio da ordem de 1/3 de Emax, conforme indicam vários trabalhos experimentais, como os de Meitnar e Orthman, por exemplo. Muitos físicos famosos, entre os quais Bohr, Schrödinger e Dirac, eram adeptos de uma explicação para o espectro beta que levava em conta a violação da lei da conservação da energia. Dirac (1936) ressalta em seu artigo a teoria BKS (Bohr, Kramer e Slater), concordando com o fato exposto na teoria de que não haveria conservação de energia para processos atômicos individuais, somente ocorreria conservação estatisticamente quando da ocorrência de um grande número de eventos. Aos poucos, a proposta do neutrino foi tomando corpo e ganhando adeptos. Um episódio importante no papel de consolidação do neutrino como partícula foi o trabalho de Gamow – Schemberg (1940), com a inclusão do neutrino para explicar o processo ocorrido na formação de estrelas, o que ficou conhecido como efeito Urca, uma proposição bem sucedida. Enfim, a partícula até então imaginária ganhou vida nas experiências de Cowan e Reines como relatado nas revistas Science e Nature de 1956.

Apesar desta comprovação experimental, ainda muitas dúvidas pairavam sobre o objeto da detecção, conforme apontam alguns trabalhos da época como, por exemplo, o de Schrodinger publicado na revista Nuovo Cimento (1958) em cujo título se lê "Poderia ser a energia um conceito puramente estatístico?".

A DETECÇÃO

Os experimentalistas não conseguiam detectar o neutrino e nem mesmo sabiam quais os procedimentos para fazê-lo, visto que os neutrinos são partículas neutras que interagem com a matéria em baixíssima intensidade, podendo penetrar nos corpos, durante muito tempo e por grande profundidade. Assim, o processo de isolamento da aparelhagem deveria ser o melhor possível, evitando que registrasse qualquer outro evento nuclear espúrio.

Então, a experiência, como comentam Natale e Guzzo (1999) 3 deveria ser realizada num local extremamente blindado e, também, com a presença de um grande fluxo de neutrinos.

Deste modo, Clyde Cowan e Frederick Reines, em 1956, adaptaram os detectores em instalações a mais de 20 metros de profundidade em grandes tanques contendo líquidos cintiladores, numa região do subsolo abaixo de um reator nuclear na Carolina do Sul (EUA), uma inesgotável fonte controlável de partículas, especialmente neutrinos. Para garantir a blindagem absoluta para outros sinais, entre os tanques do cintilador foram intercalados tanques com água contendo cloreto de Cádmio diluído. Nesse arranjo, quando o neutrino é absorvido por um próton da solução, ocorre a liberação de um nêutron que se movimenta através do meio e, por intermédio de colisões com outras partículas presentes, vai perdendo energia até o nível em que é capturado por um núcleo de Cádmio. A captura deixa esse núcleo em estado excitado, permitindo que ocorra um decaimento com a emissão de raios gamas adicionais, isto é, além daqueles decorrentes da ionização. O processo todo dura em torno de 5 ms. Portanto, a detecção, por Reynes e Cowan, de sinais de luz espaçados por 5 ms, além da luz decorrente da ionização, confirma a presença dos neutrinos, inclusive na taxa de reação prevista pela teoria de Fermi.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A resolução de problemas assume uma função central nos processo de ensino aprendizagem tanto na educação básica como superior. Em especial no ensino básico as temáticas discutidas, em geral, sugerem abordagem de temas mais "atuais" que buscam aplicações da tecnologia para o atendimento de necessidades da vida contemporânea, tais como aqueles que instituídos pelos PCNs para o ensino médio. No entanto, o conhecimento aprendido na escola não necessariamente deve estar associado apenas ao cotidiano do aluno, mas, também devem contemplar os assuntos gerais pertinentes á educação escolar em Ciências como, por exemplo, temas tradicionais sobre descobertas científicas. Pensando desta maneira este artigo atingiu esta expectativa, pois, constatou-se na consulta aos alunos que o trabalho obteve aprovação, contribuindo para atingir os objetivos propostos nas disciplinas de Práticas de Ensino, História da Física e Física Básica nos cursos de Licenciaturas, assim como no ensino médio. Além disso, concluímos que poderá colaborar no sentido de orientar propostas curriculares dos cursos de formação inicial de professores, uma vez que conhecer a ciência que ensina é essencial ao docente, porém esse conhecimento vai além da resolução de problemas e contextualização, inclui o conhecimento das questões filosófico epistemológicas e históricas da ciência de referência.

Referências Bibliograficas

Asimov, Isaac The neutrino, Ghost particle of the atom – Doubleday & Company, Inc.,1966, Garden City, New York 1966

Bethe, H.A. and Peierls, R.E., Nature 133, 532 (1934)

Bohr, Niels – Nature, julho 1936 – Letters to the Editor

Bush, G.L. e Silvidi, A. – The Atom, a simplified description p.76-79 – Barnes & Noble, Inc. New York 1964

Dirac, P.A.M. – Nature –, p.298-99 Fevereiro 1936.

Ellis, C.D.; Wooster, W.A. – Nature p.563-64- Abril de 1927

Fermi, E. Zeits.f. Physik 88. p..161-177 – 1934

Gamow,G. e Schoenberg – Phys. Rev. V.59, p.539-547, 1941

Harvard Project Physic 1971 –partículas elementares (unidade suplementar A) por Haven Whiteside Federal City College p.49 – Projeto Física, tradução de Maria Teresa S.B.G.O. Ramos pela Fundação Calouste Gulbenkian – Lisboa 1987.

Kaplan, Irving – Física Nuclear – 2a edição, p.317 – 354 – Aguilar, S.A. De Ediciones, Madrid – 1962, 728p

Katz, L. ; Penfold, A.S. – Rev. Mod. Phys. n.1, v.24, p.28-44, 1952

Kurie, Richardson and Paxton – Phys.Rev., v.49, p 368-381, 1936

Majorana, E.- Nuovo Cimento v.14, p.171-184, 1937

Marinelli,Brinckerhoff e Hine - Rev.Mod. Phys., v.19,n.1, p.25-28, 1947

Natale, A e Guzzo M.- Neutrinos partículas onipresentes , Ciência Hoje 147,p.75 , 1999.

Reines, F , Cowan, C.L et all – Science n.3212 – v.124- p.103 – 104, 1956

Reines, F. And Cowan, C.L. – Neutrino – Nature, v.178, p.446 – 449, Set 1956

Schrödinger, E. – Nuovo Cimento – n.1, vol.9, p.163-169, 1958

Shankland, Robert S. – Physical Review, v. 49, , p.8 -13 janeiro 1936

Uhlenbeck e Konopinski, "On the Fermi Theory of b-Radioactivity" Phys Rev, v 48,1935.

Yang,C.N. and Tiomno – Phys.Rev. –v.79, n.3, p.495 – 498, 1950

1Harvard Project Physic 1971 – partículas elementares (unidade suplementar A) por Haven Whiteside Federal City College p.49 – Projeto Física, tradução de Maria Teresa S.B.G.O. Ramos pela Fundação Calouste Gulbenkian – Lisboa 1987.

2 Uma análise sobre a publicação de Fermi pode ser apreciada no texto de Uhlenbeck e Konopinski, intitulado "On the Fermi Theory of b-Radioactivity", no volume 48 da Physic Review de 1935.


Autor: Celso Luis Levada


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