Docência Compartilhada na Educação Infantil: crianças e adultos em diálogo no cotidiano da escola



A docência compreendida como um protagonismo compartilhado: breves considerações


Partimos do princípio que o exercício da docência perpassa pelas relações e interações dos adultos-professores e das crianças entre si. Indubitavelmente esta é uma tarefa que envolve a parceria e a participação de ambos os sujeitos. Dessa forma que salientamos a importância que as interações humanas tomam no delineamento da profissão docente. O motivo principal que nos movem a tal afirmação, diz respeito ao fato que a profissão docente se desenvolve em um ambiente de trabalho constituinte e constituído de interações humanas. No qual adultos-professores e crianças estão imersos nessas interações, sendo influenciados por elas e influenciando-as.
O protagonismo compartilhado que estamos nos referindo, ajuda a definir elementos para construir um quadro de análise que se fundamenta em uma abordagem de docência como um trabalho interativo no processo de constituição de si ? o professor ? e de constituição do outro ? a criança. Um processo de constituição de sujeitos que não se dá aleatoriamente, já que se apresentam intimamente imbricados e são complementares.
Atribuímos o adjetivo compartilhado aposto ao termo protagonismo pela razão de compreender que todas as relações e interações sociais passam a configurar como sinônimo de educação, entendida como formação das humanidades. Tal configuração não se restringe as relações produzidas na interação adulto-professor e criança, mas também da criança com o adulto-professor e principalmente das crianças entre elas. Tais relações sociais não acontecem naturalmente, mas como produto das condições sociais concretas de vida. Podemos dizer que as condições concretas de vida determinam e ao mesmo tempo são determinantes de tais relações e interações. Tal processo não acontece de forma linear, ele é construído dialogicamente e interligado as dimensões culturais, sendo, contudo, historicamente significado pelos sujeitos que dele participam.
Em relação à criança, consideramos que quando ela é tratada como um sujeito histórico e cultural, a mesma emerge da sombra dos preconceitos do mundo dominado pelos adultos, deixa pouco a pouco o anonimato em que vive e passa a ser vista como personalidade em formação e passa a merecer a liberdade e a possibilidade de conhecer (MELLO, 2006, p.96); conhecer no sentido de se produzir e compreender o mundo, a cultura e as formas de sociabilidades. Lembro aqui das palavras de Lev Vygotsky (1995) quando afirma que: "o essencial para o ser humano não é o simples fato de perceber o mundo, mas de compreendê-lo".
Logicamente que os adultos-professores são os mediadores e possibilitadores de experiências ricas das crianças em contato com as variações da cultura humana, sendo, contudo, os responsáveis pelo processo educacional-pedagógico no espaço-tempo da escola de educação infantil. Para além de precisar reafirmar algo que é essencial ao processo de formação das crianças, nossa intenção é procurar ressaltar uma posição teórico-metodológica em que adultos e crianças estejam no centro do processo educacional-pedagógico, travando relações e interações que valorizem a humanidade que habita em cada um, considerando-se o lugar específico que cada um ocupa na realidade social e no interior da qual age, uma vez admitida à complexidade e a heterogeneidade de cada grupo.
Em relação as crianças, há que se concordar que sua realidade nem sempre é "captada" pelo professor, seus canais de recepção parecem muitas vezes obstruídos por certas lógicas adultocêntricas que o impedem de ver, ouvir, sentir as expressões que são peculiares do grupo infantil. Está aí implícita uma interdição do próprio professor na sua ação de sonhar, poetizar, transgredir, criar, inventar e reinventar a própria vida, o que o leva muitas vezes a fortalecer a lógica excludente que diz querer combater. Sendo assim, ao desconsiderar a alteridade do outro, diferente dele, o adulto-professor acaba colocando este outro-criança em um lugar de invisibilidade.
A ideia de docência pela via do protagonismo compartilhado inclui decisivamente com respeito e atenção as diferenças geracionais. Diferenças que nos provocam a dizer que a docência precisa entrar no clima das crianças, tomando jeito de criança, pois mesmo que a criança esteja inserida em uma sociedade regida pela lógica adultocêntrica, podemos afirmar que muito ainda temos em conhecê-las para aprender seus jeitos de ser. O adultocentrismo que criticamos, diz respeito ao que leva os adultos à obscurecer, silenciar, adormecer, regular e negar a condição de existência e insistência das crianças.
Isso permite tematizar a docência não mais por uma visão meramente adultocêntrica e cognitivista de transmissão de conhecimento, mas buscar construir um significado para ela com base nas práticas cotidianas dos professores, pois entende-se que estas produzem uma riqueza de conhecimentos que devem ser ponto de partida para o aperfeiçoamento da própria docência, bem como no que as próprias crianças expressam no movimento-vida cotidiano. Desse ponto de vista, temos procurado mostrar que simplesmente atender a criança, cumprindo apenas a rotina e as obrigações de cuidado, não é suficiente para uma Pedagogia da Infância que deseja respeitar as crianças como cidadãs no presente, e não no futuro.
Sendo assim, enfatizamos o desvio que vem a ser a docência exercida pela "versão escolar do conhecimento" em sua posição fechada e unilateral, isto é, o adulto-professor agindo sobre e pelas crianças. Esse é um viés de transmissão e memorização de conhecimentos cujo repasse (transmissão) é de responsabilidade do professor e o recebimento (memorização) de responsabilidade das crianças.
Deixamos sobressair a crítica endereçada à tradição da educação como instrução e ficamos desejosos de traçar a especificidade da educação infantil, a qual coloca a criança na marca da diferenciação em relação a uma visão de escolarização tradicional. Nessa noção, a creche e a pré-escola são compreendidas como um lugar privilegiado para se viver a infância e também espaço-tempo de esboçar processos sociais intencionais de mediação e interação qualificadas.
Neste caminho, a criança é tomada como ponto de partida, em um sentido de não subestimar suas potências e competências. Considera-se a importância de situar movimentos em que a potência da vida das crianças sobrepõe-se ao poder sobre a sua vida na produção de uma docência que seja inventiva de novas formas de relações do sujeito consigo mesmo e com os outros. Aqui, afirma-se que o pedagógico seja educacional e que o educacional seja pedagógico, sem distinção ao exercício da docência que está a todo tempo entrelaçada aos acontecimentos e situações-experiências cotidianas das crianças. É com base nessas assertivas que tecemos a hipótese de que a docência na educação infantil é constituída e se constitui no exercício do dia-a-dia pelos adultos-professores e outros profissionais, a qual se concretiza pelas ações nos diferentes cenários do cotidiano das creches e pré-escolas.
O pensamento de Moysés Kuhlmann Jr. (1998) auxilia a esclarecer que no movimento do trabalho docente da educação infantil tem-se como função um acolhimento à criança com atenção e respeito a sua faixa etária. O autor também afirma a importância de que "o ponto de partida desse movimento seja a criança e não um ensino fundamental pré-existente". Diz que não se trata de educá-la com o intuito de prepará-la para a escola posterior, em um sentido de antecipação, preparação e compensação. Ele mostra em sua crítica "a necessidade de se compreender uma especificidade da educação infantil, como de outra ordem que a do Ensino Fundamental".
Destacamos com isso que a docência com crianças pequenas precisa valorizar a totalidade das diferentes dimensões, sem fragmentações em graus de mais ou menos importância. Essas dimensões devem incluir e trabalhar os conhecimentos que advêm do corpo e seus sentimentos e emoções, bem como a ludicidade e a gestualidade em suas diferentes expressividades; o movimento constante das brincadeiras, a expressão estética, a produção intelectual em consonância com que foi e está sendo elaborado e objetivado pela humanidade, entre outros aspectos a serem desenvolvidos. Assim, ratificamos a afirmação de Kuhlmann Jr. (1998), quando diz que "tudo, absolutamente tudo, o que as crianças vivenciam na creche e pré-escola é educacional", precisando este educacional ser referenciado pedagogicamente e ser pautado no respeito à compreensão da alteridade do ser criança.
Debruçar-se sobre a construção do espaço coletivo de educação para crianças bem pequenas e pequenas, principalmente no intuito de significar sua distinção e especificidade, implica trazer à tona a pluralidade das identidades infantis, reconhecer a história individual das crianças, suas necessidades singulares de desenvolvimento. Implica atentar para as diversas interações que se desenvolvem no seu cotidiano entre os diferentes sujeitos. Implica considerar aspectos das humanidades das crianças, do seu ser-já-sendo e não como um vir-a-ser. Implica, por fim, afirmar que práticas de proteção, guarda, carinho, afeto, escuta, assistência, cuidado e educação são necessárias para o desenvolvimento infantil e indispensáveis à sobrevivência saudável de qualquer criança.
Por esse entendimento, as intencionalidades educativas no viés da docência como um protagonismo compartilhado não se subordina a modelos previamente estabelecidos como proposto prescritivamente numa grade curricular obrigatória com tudo-igual-para-todos. Assevera-se que tais modelos não dão conta da complexidade da educação das crianças bem pequenas e pequenas, já que acabam escamoteando seus contextos individuais-sociais-culturais particulares de vida.
Assim, há que se apontar para uma concepção extremamente minuciosa da docência em uma abordagem que acredita no "sujeito ativo em interação" (VYGOTSKY, 1995). Dessa forma, não consideramos possível um modelo único, monolítico de proposta político-pedagógica. Temos, portanto, a convicção da importância de conceber como relevante a pluralidade de pensamentos, propostas educacional-pedagógicas, processos de socialização, aprendizagens e desenvolvimento relativos às demandas das interações humanas que advêm da vida cotidiana. Tomamos a proposição que considera o "homem ser plural" (LAHIRE, 2002), o que nos faz pensar em uma proposta de educação também plural, aberta e potente para acolher e compreender as interações humanas que se desencadeiam no cotidiano da escola. Vale ressaltar que o uso do plural indica diversidade: somos múltiplos; "somos, portanto, desde o início seres plurais, diferentes nas diversas situações da vida comum". (Idem, 2002, p. 39) .
A proposta educacional que se almeja nascerá das realidades sociais e culturais das crianças, para ampliar e desenvolver tais realidades. O conhecimento é deflagrado em íntima relação com o processo de humanização, apostando-se na possibilidade de todos aprenderem, porém não de forma natural, igual, sequencial, segregada, mas pelas diversas relações e interações com a cultura, com o mundo que é gerado pelo próprio movimento-vida cotidiano, seja vivido no espaço social da escola ou fora dele, por adultos ou por crianças.
Essas questões são fundamentais para compreendermos, ou mesmo visualizarmos a docência no seu delinear cotidiano, descortinando os diversos condicionantes que estão presentes na prática educacional-pedagógica dos docentes e principalmente procurar desvelar como se dá o processo educativo das crianças levando-se em conta o alto grau de protagonismo infantil. Terminando com as palavras de Lev Vygotsky (1995) podemos afirmar que "o lugar que a criança ocupa nas relações sociais de que participa tem força motivadora em seu desenvolvimento".

Referências

BARBOSA, Maria Carmem S.. Por amor e por força: rotinas na educação infantil. Universidade Estadual de Campinas/Unicamp, Doutorado em Educação, 2000.

KUHLMANN JR., Moysés. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação, 1998.

LAHIRE, Bernard. O homem plural: as molas da ação. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.

LAHIRE, Bernard. A cultura dos indivíduos. Porto Alegre: ARTMED, 2006.

MARTINS FILHO, Altino José (Org.). Criança Pede Respeito: temas em educação infantil. Porto Alegre: Mediação, 2005, 160p.

MARTINS FILHO, Altino José et. al. Infância Plural: crianças do nosso tempo. Porto Alegre: Mediação, 2006, 120p.

MARTINS FILHO, Altino José. Crianças e Adultos: marcas de uma relação. IN: MARTINS FILHO, Altino José et. al. Infância Plural: crianças do nosso tempo. Porto Alegre: Mediação, 2006, 120p.

MARTINS FILHO, Altino José. A vez e a voz das crianças: uma reflexão sobre as produções culturais na infância. In: Presença Pedagógica. Belo Horizonte/MG. n.61, p.35-45, jan./fev.2005.

MARTINS FILHO, Altino José. O lugar da criança. Pátio Educação Infantil, ano 6, nº. 17, p. 10-13, jul/out 2008.

MELLO, Suely Amaral. Enfoque histórico cultural: em busca de suas implicações pedagógicas para a educação de 0 a 10 anos. In: Anais da I Conferência Internacional: o enfoque histórico cultural em questão. 2006. p.89-102.

ROCHA. Eloisa Acires C. A Pesquisa em Educação Infantil no Brasil: trajetória recente e perspectiva de consolidação de uma pedagogia da educação infantil. Florianópolis: Núcleo de Publicações - UFSC, 1999.

SARMENTO, Manuel Jacinto. As Culturas da Infância nas Encruzilhadas da 2ª Modernidade. In: SARMENTO, M. J. & CERISARA, A. B.. Crianças e miúdos: perspectivas sociopedagógicas da infância e educação. Edições ASA- Porto- Portugal 2004.

VYGOTSKY, L. S. Obras Escogidas vol. III. Madrid: Visor, 1995.


Autor: Altino Martins Filho


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