Uma Análise Da Paisagem Em Arqueologia – Os Lugares Persistentes



UMA ANÁLISE DA PAISAGEM EM ARQUEOLOGIA – OS LUGARES PERSISTENTES

Marcelo Fagundes

Doutor em Arqueologia (MAE/USP)

O estudo da paisagem em Arqueologia envolve questões complexas sobre as maneiras com que grupos pré-históricos, conscientemente ou não, moldaram seus espaços sociais e culturais, situações que envolvem uma variedade de processos tanto relacionados à organização deste espaço quanto a sua modificação em função de uma diversidade de propósitos que incluem subsistência, questões de ordem econômica, social, política, cognitiva, simbólica ou religiosa. É coerente afirmar que as pessoas percebem, classificam e moldam a paisagem circundante a partir de processos simbólicos que podem estar vinculados às tradições culturais do grupo, ao apego sentimental, à memória, aos mitos, enquanto local dos ancestrais e, quiçá, tendo como referências fronteiras sagradas e profanas (Knapp, 1999).

Os pressupostos da Arqueologia da Paisagem estão marcados, sobretudo, pelo uso – até mesmo abusivo –, das geotecnologias (Cf. Morais, 1999, p.31). Há uma preocupação inerente a este conceito da utilização desses métodos e técnicas a fim de que identifiquem os sítios arqueológicos (e lugares) dispostos na paisagem e interligados a ela, ou seja, o desenvolvimento de estudos sistemáticos e integrais do registro arqueológico e da paisagem (esta última compreendida não como uma entidade passiva onde ocorrem os processos sociais ou como um recurso a ser explorado, mais como uma construção social), de forma a compreendermos e interpretarmos a distribuição espacial dos assentamentos, ocorrências, locais de interesse arqueológico e, conseqüentemente, os possíveis usos do espaço por populações pregressas, no que Criado Boado (1991, 1996, 2001), definiu como uma estratégia de investigação, identificação e compreensão do registro arqueológico com vistas à reconstrução paisagens arqueológicas, bem como os processos de continuidade e mudança que constituíram a paisagem atual.

Graças aos avanços tecnológicos aliados às novas perspectivas da pesquisa arqueológica, muito têm se produzido em direção da compreensão da paisagem. Desta forma, a Arqueologia da Paisagem envolve o uso de ferramentas multidisciplinares, sobretudo fornecidas pela Geografia e Geociências a fim de compreender as maneiras pelas quais os grupos pré-históricos ocuparam e modificaram a paisagem em função de suas práticas econômico-produtivas, sociais e culturais, da mesma forma entendendo como as pessoas foram influenciadas, motivadas e restringidas por ela.

DA DIMENSÃO ECOLÓGICA À VISÃO CULTURALISTA DA PAISAGEM

Imprescindível à pesquisa arqueológica é a compreensão do entorno dos sítios, isto quer dizer, da paisagem onde se inserem os assentamentos pré-históricos, vista tanto em uma perspectiva natural, isto é, na sua materialidade, quanto em sua condição simbólica, grosso modo, como é pensada, interpretada e simbolizada pelos grupos que a ocuparam, fazendo parte de sua organização social como um todo.

Da relação entre Homem e Ambiente apropriações simbólicas do espaço são compreendidas dentro de um delimitador territorial que forma uma paisagem cultural, representada, no registro etnográfico, pelos mitos associados aos grupos humanos que mantêm uma relação duradoura com o local em que vivem. Essas relações revestem-se dos elementos que o Ambiente disponibiliza, como representam os mitos indígenas que reproduzem seus cenários de origem mesmo em ambientes distintos dos quais foram geridos e estabelecidos como tradição (SILVA-MENDES, 2007, p.142)

Acreditamos que a interpretação da paisagem sob o ponto de vista ecológico, enquanto meio que garante a subsistência de grupos pré-históricos que encontravam em seus recursos energia necessária para sua manutenção 'físico-biológica'; não é uma visão de toda equivocada, uma vez que é por meio da captação destes recursos obteníveis no ambiente que qualquer grupo humano sobrevive e, certamente, ocupam posição de destaque nas estruturas do grupo. O que é discutível seria a passividade destes grupos em relação ao meio.

Nas palavras de Parker (2006, p.11): "There is nothing problematic per se with thinking that the environment in terms of economic resources affects human behavior including choice of location for particular activity, this is known from experiences of living in the world. Nevertheless, this view does not allow a full or rounded understanding of the world today or that which people may have experienced in the past; different cultures across time and space have perceived their environments, their landscapes, their worlds differently. People do not always choose to live, interact and 'be' in places that are most beneficial to them as determined by modern western academics"

Deste modo, acreditamos que este exame exacerbadamente "economicista" (e determinista), não explica por completo a égide humana, uma vez que enquanto ser cultural há outras necessidades tão quanto essenciais à sobrevivência além da alimentação, das matérias-primas, dos recursos naturais que garantem o desenvolvimento tecnológico, da procura por abrigos etc.

O manejo da paisagem abrange questões que extrapolam as condições adaptativas e de subsistência, relacionado aos aspectos de ordem cognitiva, ao apego sentimental ao lugar, às escolhas/ estratégias, políticas ou ritualística, enfim faz parte de uma rede de significação infinita. Segundo Silva-Méndes (2007, p.143; citando Bradley, 2000), até mesmo as paisagens que não sofreram modificações podem ser classificadas como culturais, visto que, conforme indicações do autor, "(...) revelam marcos simbólicos na mente das comunidades humanas que utilizam um espaço e dão significados às unidades elementares da paisagem, vale dizer, de apropriações de cunho mitológico, territorial e outros que transformam uma unidade elementar da paisagem de pouca freqüência no espaço em algo delimitador".

Sendo assim, esta visão ecológica pode ser considerada a compreensão objetiva da paisagem, pelo qual explica parte das relações homem versus meio. Contudo se esquece (ou faz nanica) das particularidades do processo histórico, das escolhas que são de ordem puramente cultural, das graduações do fato (Leroi-Gourhan, 1984a, 1984b), a consciência inerente à condição humana que permite a ordenação, classificação, os modos de pensar e de agir, o relativismo e as próprias escolhas. Da Matta classifica esta "atitude" como instrumentalista, ou seja, entende a cultura como uma resposta a certos desafios "(...) como um tipo de reação de um certo animal a um dado ambiente físico" (Da Matta, 1981, p.32).

Ainda segundo o referido autor, as abordagens ecológicas (comuns tanto à Antropologia quanto a Arqueologia), o homem nem contempla nem pensa "(...) apenas reage ao ambiente natural, como uma espécie de cão de Pavlov" (Da Matta, 1981, p.43). Neste caso, quanto mais primitiva for a sociedade, mais fácil é a observação desta assertiva, visto que graças à baixa capacidade de acúmulo de energia, os seres humanos são ainda mais dependentes do meio natural em que vivem.

Concordamos com Da Matta. Os grupos humanos com tecnologia simples ('primitivos'), mesmo aqueles não mais viventes e que a compreensão de seus modos de vida e culturas é possível quase que exclusivamente pelo o que foi cristalizado no registro arqueológico; são capazes de pensar o pensamento, de criar regra-de-regras, agindo com especulação e consciência, no que Lévi-Strauss classificou como um pensamento pré-científico (bricolage), por assim dizer, isto graças à capacidade humana de interpretar e idealizar o mundo em que vive por meio da cultura (Da Matta, 1981, p.32. Lévi-Strauss, 1989).

Se o ser humano é capaz pensar e repensar o meio que vive, por que se manteria passivo às condições impostas pelo ambiente?Indo mais além, a cultura é o que permite a organização social por meio dos sistemas de significação criados, recriados e transmitidos por um grupo e que, de certa forma, dá sentido à vida em sociedade. Ou seja, o mundo em sua materialidade é pensado e compreendido pelas sociedades primitivas diferente da lógica tecnicista do mundo ocidental, mas não menos objetiva (Lévi-Strauss, 1989).

"Essa visão instrumentalista da cultura como um tipo de reação de um certo animal a um dado ambiente físico deve ser substituída por uma noção muito mais complexa e generosa, por uma visão realmente muito mais dialética e humana. A de que a cultura e a consciência que a visão sociológica nela contida deve implicar. Situa o homem muito mais do que um homem que inventa objetos, chamando a atenção para o fato crítico de que ele é um animal capaz de pensar o seu próprio pensamento" (Da Matta, 1981, p.32).

Desta forma, sendo a cultura um sistema de significação, o meio físico onde o homem se instala faz parte deste sistema e, portanto, acreditamos que pode compreendido como um fato social total (Mauss, 1974). Somos adeptos à visão que a compreende a paisagem enquanto uma construção social (ou elemento cultural), perpassando uma entidade física e assumindo um caráter duplo, um enquanto sua inerente materialidade e outra enquanto constituída por aspectos cognitivos e comportamentais, haja vista que a ela pode ser concebida como um sistema de signos e símbolos apropriados e transmitidos por sociedades humanas (Cf. Acuto, 1999; Bradley, 2000).

Both cultural and cognitive landscapes are conceptualized and constructed by people in order to perpetuate or change existing political, social, or economic configurations. The landscape therefore cannot be viewed as a natural, ready-made substrate on which a cultural design or mental template is imposed. There is a dynamic tension between natural world and a socially constructed image of landscape (…) Landscape is neither complete, nor is it built or inbuilt: rather it is a social expression, perpetually under construction (Knapp, 1999, p. 230-231).

Portanto, a paisagem em que se inserem os assentamentos arqueológicos (ou paisagem arqueológica) é vista aqui como um ambiente que ultrapassa os preceitos de uma entidade física intacta, mas que há uma relação intrínseca com a dinâmica cultural, compreendida como uma construção social, fundamentada pelos processos que atuam em uma sociedade (Criado Boado, 1991, 1996. Ver também Morais, 1999, 2000; Zedeño, 2000; Thomas, 2003; Lewis, 1985; Knapp, 1999; Acuto, 1999, p.146; Bradley, 2000; Bandeira, 2006; Miguez, 2006).

Nesta ótica, as investigações arqueológicas devem transcender os espaços demarcados como assentamentos, para atender espaços territoriais amplos, ou seja, a paisagem arqueológica, percebida e compreendida pela sociedade que a ocupou cujas características são o resultado de fatores naturais e/ou humanos e suas inter-relações, no que Felipe Criado Boado caracterizou como conceito culturalista de paisagem (Criado Boado, 1991, p.06).

Outrossim, a compreensão destas inter-relações entre sociedade versus paisagem é um vetor central para elegermos nosso corpo de indagações acerca das possibilidades e restrições de como grupos humanos (com diferentes estratégias/escolhas de sobrevivência e subsistência, adaptabilidade e universo simbólico-cultural), estavam se movendo, apropriando-se e definindo seu espaço sócio-cultural, visto que "Entender a Geografia e o Ambiente de uma determinada área é, assim, um importante aspecto da pesquisa arqueológica. Permite, outrossim, que um olhar isolado no passado possa ser inserido em um contexto amplo e melhor compreensível" (Morais, 1999, p. 32), pois: "(...) entender o entorno de ambientação onde se insere um sítio arqueológico, construído e reconstruído em função do uso e da ocupação do solo, ajuda na tarefa de entender a vida pregressa e cultura" (Morais, 1999, p. 32).

Em todo o caso, ainda é muito corrente a tendência na academia norte-americana o uso do conceito de Landscape Ecology e suas ramificações (evolutionary ecology, forangig ecology, behavioral ecology, por exemplo), bem como a vertente conhecida como Evolutionary Archaeology, que segundo Kelly diz respeito à "an evolutionary science concerned with the diffetential persistence of variability in behavior over time (Kelly, 2000, p. 64).

Grosso modo, o enfoque ecológico/ evolutivo tem como preocupação primordial a compreensão do uso espacial do ambiente por diferentes organismos. Como os fatores ambientais e as variáveis que afetam o sucesso evolutivo de determinadas espécies estão distribuídos de maneira heterogenia na paisagem, estes organismos devem se mover através destes espaços para fazer uso da energia e nutrientes, em um contínuo definido como salvatory movements (Stafford & Hajic, 1992, p.139).

Assim, muitos arqueólogos apropriaram-se destes conceitos em suas pesquisas para compreensão da mobilidade, organização tecnológica e a própria variabilidade dos conjuntos artefatuais de grupos pré-históricos, partindo do pressuposto que o padrão de mobilidade está intrinsecamente relacionado aos elementos componentes da paisagem, que incluem plantas, comunidade de animais, temperatura, umidade, solo, recursos hídricos etc. (Stafford & Hajic, 1992, p. 140).

Sob o nosso olhar, o enfoque ecológico em relação à paisagem não abarca toda a complexidade do modo de vida e cultura no passado, devendo ser interpretado, neste caso, "(...)como um símbolo das relações sociais entre indivíduos, famílias, bandos e grupo de bandos..." (Hitchcock & Bartram, 1998, p.31), somado a sua dimensão ecológica e estratégica para captação de recursos intrínseca ao sistema produtivo e econômico de um dado grupo. Como já afirmado, a paisagem além da dimensão material que ocupa dentro do modo de vida de dados grupos humanos, também sustém um espaço simbólico vinculado ao apego sentimento (local dos ancestrais), aspectos cognitivos, que consideram um comportamento altamente específico, social e culturalmente determinado. Logo, "(...) territories represent far more to the Kua [grupo estudado pelos autores] simply areas that people use to obtain food and materials for tool manufacture and construction and where they locate their camps" (Hitchcock & Bartram, 1998, p.31).

Sem desmerecer as pesquisas ecológicas ou evolutivas (ao contrário, incorporando-os, porém sem uma visão extremamente determinista), temos optado em utilizar o conceito a partir da definição de lugar, definido por diversos autores, para compreensão destas inter-relações entre sociedade versus paisagem na intenção de eleger um número significativo de hipóteses acerca do uso social dos espaços, função de sítio, mobilidade e sistema regional de assentamento (Binford, 1980; Zedenõ, 2000, Schlanger, 1992; Stafford & Hajic, 1992; Knapp, 1999; Thomas, 2003; Silva, Mendes, 2007).

O CONCEITO DE LUGARES PERSISTENTES E SUA APLICAÇÃO EM PESQUISAS ARQUEOLÓGICAS:

O uso da definição 'lugar' tem assumido grande relevância nas pesquisas arqueológicas da atualidade, sobretudo a partir da premissa estabelecida por Binford em Archaeology of Places (1982), pela qual o arqueólogo deve expandir suas análises para além do sítio arqueológico, compreendendo as características dos espaços topográficos em que diferentes tipos de sítios (e não-sítios), componentes de um sistema regional de assentamento, estão distribuídos (Binford, 1982, 1992; Chang, 1992; Sttaford & Hajic, 1992; Silva-Méndes, 2007).

Grosso modo, seria inferir como estão distribuídas as estruturas arqueológicas em termos regionais, conforme as feições da paisagem, ou melhor, por meio do exame do registro arqueológico (atributos formais/ tecnológicos e distribuição espacial), inferir sobre as interações entre grupos humanos e os paleoambientes acerca da distribuição de recursos e exploração; padrão de mobilidade, escolhas relacionadas ao estabelecimento de sítios arqueológicos diversificados (residencial; de observação; de obtenção de matéria-prima; de pesca, caça e coleta; ritualístico etc.).

Segundo Binford, os sítios distribuídos no espaço geram o que ele chama de assentamentos, resultados de diferentes ocupações. Para compreendermos estes padrões devemos levar em conta: a) a freqüência que as ocupações ocorreram em diferentes lugares; b) os processos que geraram associações entre o material arqueológico nos sítios. Para tanto devemos compreender os processos que operaram no passado, o que o autor denomina como a habilidade do pesquisador em inferir corretamente as causas dos efeitos observados, ou seja, da formação do registro arqueológico.

Além disso, o modo que um grupo usa o habitat está diretamente condicionado pelo padrão de mobilidade e o retorno para o sítio habitação (base), tal condição vinculada às características biogeográficas do território (que o autor denomina de zonation) e, portanto, sempre existindo uma geografia cultural nesta área de "atuação" dos grupos pré-históricos. Por padrão de mobilidade o autor entende como a maneira pela qual a paisagem ao redor do sítio base é diferentemente ajustada em relação à distribuição de recursos, haja vista que "(...) It is thought mobility that a given place may be economically modified relative to the human system" (Binford, 1982, p.08).

E, finalmente, Binford nos alerta do perigo em considerar relações entre episódios deposicionais e episódios ocupacionais. Segundo ele, os índices e magnitudes da estratificação dos remanescentes arqueológicos são geralmente conseqüências de processos operando quase ou independentemente dos episódios ocupacionais, visto que os processos de deposição são relativos aos índices da dinâmica geológica da área (Binford, 1982, p.16). Deste modo, várias ocupações, dependendo dessa dinâmica, podem ser estratificadas juntas de modo que quando evidenciadas representem uma única ocupação.

Para Binford (1992), a garantia de uma compreensão efetiva do passado está relacionada ao entendimento das dinâmicas que envolvem a formação do registro arqueológico, sobretudo, de que forma se manifestam. Para tanto se faz necessário:

  1. Estudo sobre o processo de formação do registro arqueológico e como este reflete o papel e seus desempenhos na organização do passado, de modo geral: a) compreensão dos níveis de sedimentação e erosão; b) geomorfologia; c) processos pós-deposicionais;
  2. Por meio deste exame, inferir sobre a variabilidade em dimensões sincrônicas e diacrônicas.

Os sítios componentes de um sistema de assentamento, portanto, não são similares dentro dos contextos organizacionais em que fazem parte, muitas vezes contento inventários tecnológicos distintos, ou seja, apresentando conjuntos artefatuais e distribuições, estruturas e dimensões diferenciadas; entretanto sendo considerados complementares.

Logo, artefatos de curadoria, por exemplo, podem estar mais bem representados em um sítio, enquanto em outros são mais comuns os expeditos; estruturas de combustão podem ocorrer com mais freqüência e em desiguais organizações; diferentes tipos e distribuição de restos faunísticos são esperados no sítio base e na estação de caça, assim por diante.

Portanto, muitos pontos importantes são indicados em seu texto, entre os quais:

  1. Que para entender o passado é inerente à compreensão dos lugares, ou seja, da paisagem;
  2. Que se deve compreender os processos deposicionais de uma área e, antes de tudo, que não existe relação entre os episódios deposicionais e o sistema cultural (pelo menos em parte);
  3. Há diferenças entre o sítio base e locações de atividades específicas de ordem organizacional, possíveis de reconhecimento via registro arqueológico;
  4. As características biogeográficas influenciam o uso/ padrão do sítio base;
  5. Que diferentes sítios, inclusive com inventário tecnológico diversificado, podem ocorrer em uma mesma área;
  6. Que a mobilidade confere diferentes usos na paisagem (geografia cultural).

Ampliando este conceito (fato que tem sido já realizado por muitos pesquisadores), podemos considerar que os lugares, entendidos como subconjuntos da paisagem, fazem parte da rede de significação cultural e, por isso, as repetições do uso destes permitem a enumeração de recorrências (e variabilidade), que cooperaram para o estabelecimento de uma série de hipóteses à formulação de modelos de ocupação no passado.

Cada sociedade, por meio deste pensamento, teria "padrões culturais" próprios de percepção e uso da paisagem, de ordem moral, econômica, política, religiosa etc.

Desta forma: Quais os lugares mais propícios para as estações de caça? Quais os locais preferidos para o estabelecimento de sítios residenciais? Quais as relações entre determinados tipos de locações e feições da paisagem? Como as populações estavam se movendo pelos espaços topográficos? A interpretação de diferentes lugares na paisagem define os espaços sociais de um grupo?

Ao utilizarmos o conceito de lugar, priorizamos a "união" entre sítios, não-sítios e espaços topográficos para compreensão da paisagem enquanto definidora da área de atuação de um dado grupo pré-histórico. Por definidora entende-se como as escolhas percebidas pelas análises dos geoindicadores (Morais, 1999, 2000), aliadas às estruturas, variabilidade artefatual, tipos de sítio e distribuição espacial, que permitiram o uso de determinado espaço em longa duração.

Deste modo, as análises dos então chamados lugares partiriam de estudos sobre geomorfologia, das feições morfo-topográficas da área, do microclima, das características antropogenéticas, dos processos e índices de erosão e deposição, e distribuição de recursos (animal, vegetal e mineral), ou seja, inicialmente em uma dimensão geoecológica ou biogeográfica.

Um segundo momento é marcado pelo estudo da estratificação dos sítios escavados, ou seja, do processo de formação dos depósitos culturais de modo que indicassem hipóteses sobre períodos de ocupação, abandono e re-ocupação.

E, finalmente, por meio dos dados obtidos, analisar, interpretar e inferir a dimensão sócio-cultural da paisagem em termos de perceptos e conceitos, memória sócio-histórica, apego sentimental, cognição, universos político, religioso, simbólico etc.

Mas qual seria a base empírica desta última análise?

Ao nosso olhar, por meio do exame da organização social, da tecnologia, da variabilidade intra e inter sítios, da mobilidade e uso espacial (sincrônico e diacrônico), tendo como aportes a distribuição espacial dos sítios, análise das áreas de atividade, das estruturas (concentração cerâmica, combustão, bolsões de lascamento, restos faunísticos etc.), possíveis rotas de mobilidade, distribuição de sítios de registros gráficos etc.

Assim, as análises e posteriores dados geográficos, biológicos e culturais constituiriam recursos capazes de elucidar as relações homem versus meio, dentro de uma concepção holística e sistêmica, compreendendo, assim, a paisagem como um fato social total.

Logo, compreender os "lugares" significa ampliar nossas análises de forma a inferirmos sobre os meios pelos quais os grupos pré-históricos estruturavam suas estratégias de mobilidade, utilizavam diferentes espaços para a realização das tarefas cotidianas, enfim se apropriavam ativamente da paisagem em função de suas necessidades sócio-culturais e econômicas que foram sendo delineadas em meio à dinâmica cultural e ao próprio processo histórico de conhecimento do local, da atribuição de valores e das já faladas inter-relações entre sociedade e ambiente.

Na verdade, nossa interpretação de lugar não está exclusivamente delineada pelas abordagens "processuais", mais realizando uma releitura por meio das mais variadas definições tanto processuais, quanto pós-processuais; justificando-se, sobretudo, por esta ampliar a noção de sítios arqueológicos, de compreender que o estudo de sítios isolados não satisfaz as premissas da pesquisa e que, desta forma, entende que a paisagem seria o foco principal da intervenção arqueológica, indiferente dos aspectos teórico-metodológicos que a nortearam.

Além disso, os métodos e técnicas oferecidos pela Arqueologia da Paisagem, sobretudos relacionados aos geoindicadores, são imprescindíveis para a pesquisa arqueológica na atualidade, indiferente do posicionamento teórico do pesquisador.

Logo, este tipo de análise expande a possibilidade de compreensão da dinâmica cultural pré-histórica, permitindo que por meio do contexto arqueológico (aglomerado de remanescentes culturais, por achados isolados ou estruturas desconexas) e da prática da observação dos espaços topográficos atuais e suas dinâmicas, possamos inferir com maior propriedade o contexto sistêmico.

Inúmeras são as críticas a esta abordagem, sobretudo no tocante aos fins pelos quais é utilizada: estudo do sistema de assentamento de grupos pré-históricos. Desta forma, não condizente ao que a Arqueologia da Paisagem, com tendência mais européia, por assim dizer, pretende: a compreensão da paisagem como meio de interação entre meio/homem e homem/homem, visto que tem como objetivo a análise da articulação de sociedades com o meio circundante enquanto uma totalidade social, buscando por meio dos geoindicadores uma pormenorização dos elementos que integram a paisagem com vistas à compreensão das inter-relações com as sociedades.

Nesta tese já afirmamos que não acreditamos nas barreiras intransponíveis entre diferentes escolas arqueológicas, o que permite transitarmos entre os conceitos e abordagens, fato comum entre os acadêmicos na atualidade (Hegmon, 2003).

O conceito de lugar pode ser entendido como uma reação à ortodoxia que vinculava a pesquisa arqueológica exclusivamente ao estudo de sítios arqueológicos com presença de cultura material, ou seja, pode ser entendido como uma oposição às pesquisas que focam o estudo de sítios isolados, indicando a necessidade de uma arqueologia de área (ou regional). O conceito instaurado por Binford não foi o primeiro trabalho a destacar a importância da paisagem e das características geoambientais à pesquisa arqueológica, haja vista que o próprio registro arqueológico está inserido em meio à matriz sedimentar (Morais, 2000; Araújo, 1999).

Deste modo, lugar (place) pode ser definido como "(...) a attempt to reconceptualize the interaction between human subsistence strategies and landscape environment and physiographic by focusing on locations on the landscape where these elements conjoin. Places are locations of varying size and scale consisting or resources or topographic, microclimatic, and anthropogenic features that participate in systems of land use (Rossignol & Wandsnider, 1992, p. 62).

Outras definições e aplicações estão sendo realizadas, a saber:

Por espaço social Zedeño define como: "(...) a product of interactions between people and the material world and is thus amenable to archaeological inquiry" (Zedeño, 2000, p. 98).Assim, lugares e recursos são incorporados na vida social de forma que são compreendidos como uma categoria de cultura material (Zedeño denomina de landmarks).

Schlanger amplia o conceito de lugar, propondo a utilização dos denominados persistent places, definidos como "(...) places that were repeatdly used during long-term occupations of regions. They are neither strictly sites (that is, concentrations of cultural materials) nor simply features of a landscape. Instead, they represent the conjunction of particular human behaviors on a particular landscape" (Schlanger, 1992, p.97).

Stafford & Hajic, sob uma abordagem mais geoambiental, descrevem os lugares como "(...) spaces of size and character appropriate for specified functions under a given settlement or mobility strategies" (Stafford & Hajic, 1992, p.41).

Thomas, por sua vez, indica a relatividade do conceito de lugar estabelecido pelos arqueólogos processuais, que só pode ser entendido a partir das redes de relações de lugares que constituem a paisagem. Deste modo, para o autor: "My alternative conception of landscape is thus a network or related places, which have gradually been revealed through people's habitual activities and interactions, trough the closeness and affinity that they have developed for some locations, and through the important events, festivals, calamities, and surprises which have drawn other spots to their attention, causing them to the remembered or incorporated into stories" (Thomas, 2003, p.173).

De qualquer forma, este emaranhado de conceitos será aqui utilizado conforme a indicação de Schalanger (1992), compreendendo o uso da paisagem em termos do que a autora denominou como persistent places, ou seja, locais usados repetitivamente durante a ocupação de uma região (em termos diacrônicos). Partindo do pressuposto que em função de certas particularidades (tanto de ordem histórica, econômica, política, social, religiosa ou cultural), os espaços topográficos são ocupados em longa duração refletindo na distribuição e formação do registro arqueológico (Schalanger, 1992).

Persistent places are places that were repeatedly used during long-term occupations of regions. They are neither strictly sites (that is, concentrations of cultural materials) nor simply features of a landscape. Instead, they represent the conjunction of particular human behavior on a particular landscape (Schalanger, 1992, p.97).

Para a autora, os "lugares persistentes" podem ser classificados em categorias, a saber:

  1. Certas particularidades do local que o fazem singular e requisitado para certas atividades, práticas ou comportamentos;
  2. Existência de certas características que os tornam foco de seguidas reocupações;
  3. Existência de matéria-prima, cultura material ou estruturas (de qualquer tipo) de outras ocupações que podem ser reutilizadas.

Adicionaríamos a estes indicações o apego sentimental sugerido por Hitchcock & Bartram (1998), ou seja, o local dos ancestrais; marcos na paisagem que estejam vinculados aos mitos do grupo tanto de caráter religioso como simbólico; ambições culturais; doutrinas político-religiosas etc. (Vide Lewis, 1985).

Schalanger ao trabalhar com uma área no sudoeste do Colorado, Estados Unidos, principalmente relacionada às ocupações de agricultores; apresenta dados empíricos que comprovam que o sistema regional de assentamento e os padrões do uso do espaço na área estariam vinculados ao que a autora denominou de persistent places, locais que foram ocupados e reocupados em longa duração, haja vista as condições favoráveis de utilização e apropriação ao longo do tempo, relacionadas aos pântanos da região e as rotas de acesso para as demais áreas da paisagem local (Schalanger, 1992, p. 105).

Estes locais foram escolhidos em função da facilidade de captação de recursos, sobretudo relacionados aos pântanos (e proximidades) e pela pré-existência de estruturas de ocupações anteriores, fazendo que estas locações se tornassem parte do repertório tecnológico dos grupos pré-históricos que ocuparam a região, enquanto área de atividades específicas não relacionadas aos sítios bases.

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Autor: MARCELO FAGUNDES


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