DO LUGAR AO TERRITÓRIO: UMA CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DE PERCEPÇÃO ESPACIAL EM UNIDADES DE CONSERVAÇÃO.



DO LUGAR AO TERRITÓRIO: UMA CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DE PERCEPÇÃO ESPACIAL EM UNIDADES DE CONSERVAÇÃO1.


Orlando Ferretti

Resumo

O presente trabalho propõe uma análise sobre a Unidade de Conservação, Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, situado no Estado de Santa Catarina, Brasil, a partir de sua inserção espacial, de uma demarcação de limites que pressupõe a caracterização de um território, e da confrontação com outro conceito geográfico: o lugar. Na escala local foram realizadas entrevistas com moradores de áreas dentro dos limites do Parque e na área de entorno, com o objetivo de identificar as diferentes percepções, atitudes e valores quanto ao lugar e como ficaram as interações espaciais nas comunidades com a delimitação do território do Parque. Este território é entendido aqui enquanto novo espaço de poder sobre os lugares, criando relações que por vezes está longe do objetivo da Unidade.

Palavras-chave: Unidades de Conservação, território, lugar, Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, percepção.

Introdução

O espaço enquanto suporte físico registra as marcas do trabalho humano e da natureza, em que o ser humano, não como mero espectador, imprime aos lugares onde vive. Sinaliza o potencial que o espaço físico, a partir de suas características naturais, tem para as sociedades que se propõe a explorá-lo e vivenciá-lo. Esse processo de criação (conceitual) e transformação da natureza é uma evidência da tentativa de superação do próprio homem no seu estabelecimento da construção da realidade. Esse processo pode ser fatigante tanto para a natureza como para ser humano.
O lugar proposto por TUAN (1980 e 1983) onde a experimentação/percepção cria lugares (Topofilia), é ponto de partida para o entendimento da ligação das comunidades com o espaço pesquisado. Foram realizadas entrevistas qualitativas, construídas para possibilitar o entendimento e a articulação dos processos de percepção e de sentido de lugar.
Na perspectiva de compreender a relação das pessoas com o lugar foram realizados 28 (vinte e oito) entrevistas em várias incursões nos meses de maio, junho e agosto de 2001, nas localidades de Praia do Siriú em Garopaba, na comunidade da Praia da Pinheira em Palhoça, a comunidade de Vargem do Cedro no município de São Martinho, a comunidade de Laranjal no município de Imaruí e a comunidade de Santa Maria no município de São Bonifácio.
Seguindo o trabalho de BLEY (1990), embasado no roteiro metodológico de WHYTE (apud BLEY op. cit.), determinou-se um roteiro de trabalho de campo em comunidades que vivem dentro e no entorno a área do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, para propor questões nas entrevistas com alguns moradores dessas áreas. Foram adotadas a orientações abordadas por MINAYO (1996), onde a percepção (em uma pesquisa qualitativa) é obtida através de interação entre o pesquisador e os sujeitos pesquisados, essencial para obter maior aproximação da realidade.
Houve uma série de dificuldades no acompanhamento das atividades do cotidiano, através da Observação Participante (MINAYO, 1996), no entanto este procedimento fez-se necessário na apreensão das experiências dos grupos e das relações estabelecidas no processo de usufruto dos recursos ambientais. Durante o tempo de convivência, pode-se entender uma parte do processo produtivo, onde as relações com o meio são realizadas com um conhecimento empírico que não pode ser desprezado, onde a experiência no trato com a terra obedece a certas práticas ancestrais misturadas com técnicas modernas. Ao mesmo tempo, as relações com o ambiente são respeitadas também por ser o espaço um lugar de preservação imposto.
A partir das entrevistas brutas foram decompostas as idéias centrais (Discurso do Sujeito Coletivo ? DSC; LEFÈVRE, 2000), depois foram identificadas idéias centrais iguais ou equivalentes nos discursos, começando a compor discursos únicos, ou seja, de falas isoladas construiu-se uma composição das falas.

Território e Lugar: Conflito e Vivência

Abordar as modificações no espaço da comunidade em uma Unidade de Conservação (U.C.) é conceituar e dialogar a cerca do território. Pois, é esse território instituído que delimita as ações sociais, condicionando os atores sociais, e transformando a realidade local.
A diferenciação do espaço em âmbito histórico tem início a partir da delimitação do mesmo, isto é: por sua apropriação como território; em parte determinado pela necessidade de domínio e posse dos recursos naturais ? para a conquista das condições de sobrevivência ? e por outra parte, por sua ocupação física como habitat (HEIDRICH, 1998).
Em Santa Catarina, o Parque Estadual da Serra do Tabuleiro foi criado em 01 de novembro de 1975 (Diário Oficial n°10.359 de 07/11/75), pelo governo do Estado de Santa Catarina com o principal objetivo institucional de conservar a Mata Atlântica em seus diversos ecossistemas e nos ecossistemas associados de restinga e manguezal e ilhas, para isso contava inicialmente com uma área de 92.689,04 hectares, que passou por ampliação e desanexação dependendo de interesses e de conformações (Decreto de ampliação n° 2.335 de 17/03/77, publicado no Diário Oficial n° 10.699 de 23/03/77; Decreto de desanexação de áreas n° 8.857 de 11/09/79, Diário Oficial n° 11.312 de 13/09/1979).
O Parque compreende parte dos municípios de Águas Mornas, Florianópolis, Garopaba, Imaruí, Palhoça, Paulo Lopes, Santo Amaro da Imperatriz, São Bonifácio e São Martinho. Localiza-se entre as coordenadas geográficas 27° 42?09" a 28° 07?42" de latitude sul, e a 48° 34?09 "a 48° 57?13" de longitude oeste. Nas coordenadas dos pontos máximos UTM 6.884.000m a 6.938.000 metros ao Sul, e 700.000m a 744.000 metros a Leste do meridiano de 51º (FERRETTI, 2002).
As Unidades de Conservação (U.C) são inserções na paisagem de uma demarcação humana, limites, que pressupõe a caracterização de um território. Este território precisa ser cuidado e controlado para certos fins, que nas U.C. se configuram principalmente na proteção da diversidade biológica e dos ecossistemas.
Neste trabalho, para se atingir o objetivo de identificar o conhecimento do ambiente e as percepções espaciais nas comunidades a partir da delimitação da unidade, fez-se necessário, redescobrir o histórico da ocupação da área do parque e de localidades próximas a este. A paisagem da área do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro é fruto de um histórico de ocupação, que não pode ser observado isoladamente, mas sim regionalmente, é principalmente a partir da chegada dos colonizadores que as interações e modificações da paisagem se acentuam.
O olhar deteve-se em um dado momento no entendimento da colonização açoriana e alemã, evidenciada pela origem étnica dos entrevistados das comunidades. Foi preciso conhecer alguns aspectos culturais desses descendentes de alemães (nas comunidades de Vargem do Cedro e Santa Maria) e açorianos (nas comunidades de Laranjal, Siriú e Pinheira) buscou-se uma parte do histórico de ocupação e transformação do espaço por essas etnias. Não significa com isso que não há outros grupos étnicos e diferentes culturas sobrevivendo dentro e no entorno do parque, a escolha foi pela representação mais significativa para o entendimento das comunidades estudadas.
Configura-se, neste cenário, a relevância que se deve dar ao saber e técnica tradicional. Muito raramente, o conhecimento tradicional, sobretudo, as técnicas de manejo, são reconhecidas como adequadas para os órgãos gerenciadores dos recursos naturais (DIEGUES, 1998). As mudanças de manejo ou exploração do ambiente não são somente em si produtoras de novas relações sociais e, portanto de espaços sociais, a ideologia e o fator político representam importante papel na formulação desses novos ambientes. (SANTOS, C. 1997).
As Unidades de Conservação enquanto territórios devem representar importante papel na construção de uma nova aprendizagem da relação homem/meio seguindo um fio condutor da experimentação para a valorização do meio, essa valorização deve ser construída pela percepção e pelos conceitos adquiridos em um processo educacional.
Os aspectos metodológicos de percepção ambiental transpassam por uma busca pela experimentação espacial de uma pessoa e depois do grupo, uma busca dos sentidos, do significado que se dá ao espaço tornando-o lugar.
A colonização do litoral catarinense que sofreu as imposições do ambiente que era constituído de aspectos ecossistêmicos desconhecidos dos açorianos e europeus de um modo geral, e mais recentemente na destituição das tradições culturais, e principalmente nos projetos malfadados de modernização do campo. Enfrentam agora o ímpeto biocêntrico da constituição de espaços protegidos integralmente em lugares há séculos explorados, sem consultar e esclarecer as comunidades, ou seja, sem a sua participação nos projetos de proteção ao ambiente.
Observar os contornos da convivência com o meio consiste em grande parte em um trabalho etnográfico de impressões da experimentação humana. Facilmente é negligenciado o fenômeno humano da experimentação e se atem apenas ao trabalho que marca a paisagem. Esta ação humana sobre a natureza, o trabalho, parece confortar, talvez em conseqüência de uma visão economicista ou de um pensamento ocidental que permeia as construções humanas e não realmente o homem (TUAN, 1980).
É preciso saber dos lugares, mas também como se dá sentido ao lugar. As observações sobre o Parque Estadual da Serra do Tabuleiro freqüentemente buscam refletir sobre o entendimento do território, empreendendo as verificações científicas pautadas em uma lógica quase sempre biocêntrica.
A diferença entre os lugares é o resultado do arranjo espacial dos modos de produção particulares. O "valor" de cada local depende de níveis qualitativos e quantitativos dos modos de produção e da cultura e da maneira como eles se combinam. Assim, a organização local da sociedade e do espaço reproduz a ordem internacional (SANTOS, 1979).
Do ponto de vista metodológico, é necessário à transposição da abordagem técnica e jurídica da U.C para uma abordagem que implique em quais são os limites espaciais que podem ser dados ao conjunto dos aspectos sociais e o papel das condições naturais na formulação do território da Unidade de Conservação. Assim como o levantamento de fatores que proporcionem retratar a percepção e possibilidades de adaptação dos diferentes atores sociais.
Caracterizar uma construção essencialmente humana como o território não apresenta problemas, pois infere sobre limites evidentes, objetivos definidos, um código de condutas previamente estruturado e um poder consolidador. Diferentemente, o lugar pressupõe algumas condições que não são facilmente observadas, caracteriza-se essencialmente por uma relação que passa pela percepção e pelo entendimento do ambiente construído por um saber da vivência.
O lugar e o vivido aparecem na paisagem, interagem com esta, e por isso passa-se a privilegiar a percepção que os homens têm de sua experimentação do meio. Assim, TUAN em Topofilia (1980), analisa a percepção, as atitudes e os valores que os seres humanos têm para com os objetos, seres, para com sua própria raça e para com o ambiente. O pano de fundo de sua análise sempre é o espaço aos quais os seres humanos condicionam suas práticas tornando-a lugar.
As possibilidades de explorar as entrevistas com os moradores leva a diferentes olhares que os mesmos têm do seu lugar e da criação do território da unidade de conservação. A fim de possibilitar a compreensão do material adquirido nas entrevistas e de constituir um discurso coerente que valorize o maior número de falas utilizou-se na adequação dessas entrevistas o Discurso do Sujeito Coletivo.

As Falas: Buscado a Percepção da Comunidade

A ligação de afetividade o lugar da casa e da família são freqüentemente ignorados na construção de uma U.C, seja pela pressa em transformar o ambiente impondo-lhe objetivos de proteção, pela necessidade de salvaguardar a biodiversidade.

Depois da curva tem o cemitério (...) perto da igreja, lá tem meus avós e tios todos enterrados, quero ser enterrado ali também. Conheço outros lugares, mas aqui é muito mais bonito, tem de tudo.
Construí minha casa ali (...) antes tinha mato por tudo que é lado (...) tem água a vontade e meus netos podem correr até lá em cima (...) sem problema.
No mar antes tinha muito peixe e até que a gente vivia bem, agora tem dia que não da pra nada, mas mesmo assim eu não saio daqui, meu avô veio pra cá e o pai dele antes dele.

Nas respostas os elos de ligação com o lugar são os pais, o fato de terem nascido ali, ou dos pais e parentes estarem enterrados por perto, ou ainda o fato de conhecer todos os vizinhos. O significado do lugar aparece espreitando cada símbolo, não há só o lugar de residência, há o espaço de atuação (a plantação, a mata, o rio), o espaço de crença (a igreja, o cemitério). O lugar, que toma forma nos pensamentos e sentimentos das pessoas, refere-se ao cotidiano, ao sentido de ligação e afinidade, mais ainda é o lugar delineador das necessidades e muitas vezes das paixões. Os lugares nem sempre são visíveis, eles se fazem visíveis através do meio, sendo que é percebido pela rivalidade, conflito com outros lugares, ou ainda pelo contraste visual, pelos sinais artísticos, pela arquitetura, cerimônias e ritos. Esses lugares somente se tornam mais reais através da ação do homem. O espaço local se fortalece enquanto lugar pelas aspirações humanas, pelas necessidades e os ritmos da vida pessoal e dos grupos (TUAN, 1983) (2).

Aprendemos a sobreviver no vale, mesmo o rio levando vez ou outra, todo o trabalho.
Essa mata que ainda há, nós não retiramos, antes sim, a gente tirava para abrir espaço para plantar, até lá em cima do morro, agora tem pouco espaço para plantar.
Não tenho mais o que fazer para arrumar mais dinheiro (...) sempre vamos a prefeitura (...) os políticos também prometem muito na eleição (...) ainda assim ninguém ajuda muito, o trabalho tá difícil e o jeito é vender palmito.

Nas entrevistas nas comunidades de Vargem dos Cedros, de Santa Maria e de Laranjal a concepção do lugar está muita atada ao nascimento, ao criar raízes, e muitas das pessoas entrevistadas apesar das duras lamentações sobre o desemprego, a falta de recursos financeiros, as dívidas e a pressão do parque, insistem que não querem sair do lugar; muitos deles expressam uma vontade de ficar e sobreviver com algum tipo de produção. A persistência de querer ficar no lugar é quebrada em muitos momentos quando se relaciona com a perspectiva de trabalho na cidade, mesmo que para os entrevistados esteja claro que arranjar trabalho no meio urbano é difícil. Muitas famílias continuam morando nas suas comunidades e buscam trabalho em Florianópolis.
Nas entrevistas fica evidente que a percepção da paisagem contrasta-se com a percepção da casa, do jardim, do "meu" e "nosso" que não pode ser utilizado ou que "tenho" dificuldades em trabalhar. Não que essa percepção seja de dados passivos, mas sim de dados organizados pelos sentidos, então construída e simbolizada no consciente e inconsciente do indivíduo, e construindo uma valorização do ambiente que responda as suas necessidades. É difícil para o homem urbano perceber que a ligação com o lugar é refletida em um trabalho com a terra e que na falta desta as esperanças diminuem e as possibilidades de existência estão unicamente atadas ao burlar a lei, "tirar o palmito", "queimar a lenha"; é o que se sabe fazer, não se tem meios ou condições de buscar soluções urgentes para calar a fome imediata.

A necessidade do lugar para se produzir à sobrevivência.

Aqui eu e os meus filhos plantamos feijão, milho, e quando dá retiramos lenha para carvão, a maioria de lenha caída.
Planto para o sustento e tem gado para leite e corte de onde retiro um pouco de dinheiro, faço cursos de atualização em agricultura para ter mais produção.
Estamos produzindo juntos com os vizinhos e na discussão sobre os limites do parque.
Disseram que logo seríamos indenizados e teríamos que mudar, então a produção diminuiu por falta de motivação, nas discussões jamais levaram em conta que poderíamos ficar e trabalhar junto para a preservação.

Esse lugar da comunidade é o espaço cotidiano, das encenações do dia-a-dia, não podendo ser simplesmente denunciadas como símbolos falidos ou atos desnecessários, mas devem ser analisadas de tal forma que cada pessoa da comunidade possa além de efetuar seu direito a terra ter a possibilidade de mudança.
As pessoas entrevistadas na Vargem dos Cedros e na comunidade de Santa Maria em São Bonifácio trabalham na terra, principalmente com a produção de hortaliças, também vem crescendo o aparecimento de pequenas granjas na região. Evidentemente, como em todo país, a situação do jovem é a de se desligar do campo e seguir para a cidade para procurar trabalho e em alguns casos estudar. As dificuldades em ficar e produzir na terra estão além dos problemas da agricultura, pois, há o fato de haver uma perspectiva de decisão quanto à indenização das terras dentro do Parque.

Para que serve o parque

É importante porque mantém a natureza intacta. Traz benefícios na qualidade da água.
A nossa região precisa da água que vem de lá do parque, por isso ele é importante.
O parque deixa a região mais bonita, mas precisa que o IBAMA e a prefeitura parem de multar o pessoal.
Agora os animais não são caçados; antes de virar Parque o lugar era desmatado, os animais eram caçados.
Não sei o que é uma unidade de conservação, ou para que serve o parque, imagino que para proteger a natureza.

Nestes 30 anos da criação do Parque, as comunidades, mesmo ausentes no processo de criação e nas tentativas de implantação da unidade, refletem sobre a utilização do parque, construindo um conhecimento parcial do "porque proteger". A referência a área do Parque como o lugar da casa e do trabalho estimula entender que é preciso proteger (o lugar de vivência) e que esse espaço, seja pela água, pela mata ou pelas montanhas é o espaço conhecido, é o espaço percebido e vivenciado, portanto, esse espaço é também o espaço da conservação.
Nas comunidades do interior (Vargem dos Cedros, Santa Maria e Laranjal), os entrevistados precisam dos recursos naturais para continuar sua existência, sua produção enquanto que no litoral tanto no Siriú quanto na Pinheira os entrevistados reconhecem a importância do parque, "ele fica lá na serra", então não me atinge, ou seja os limites do parque são sempre os de outra comunidade, assim não "podem" afetar a vida da comunidade
Em Laranjal os entrevistados desconhecem a importância do parque, talvez à causa seja o isolamento da comunidade, a dificuldade em se estabelecer programas específicos esclarecendo a importância do Parque. Para esses entrevistados a percepção do parque é a da multa, do outro que determina o território.
Por maior que seja a diferença entre o território constituído do parque e o lugar de vivência das comunidades, é preciso lembrar que eles se constituem em sobreposições de atribuições que precisam ser construídas com as comunidades. Assim, mesmo que o traço cultural seja o definidor das relações com o meio, os entrevistados nas comunidades respeitam as novas estruturações dadas ao ambiente, desde que se respeite seu espaço de sobrevivência, seu lugar.

A idéia que se faz do Parque

Existe o parque, mas nós não temos acesso a ele e ao que tem lá.
Criaram o parque e mesmo assim estão desmatando tudo tem até a pedreira (referindo-se a uma pedreira próxima ao parque no morro do Cambirela bem junto a BR 101).
Porque sofremos muitas restrições, não podemos mais construir.
Podia-se criar animais no Parque; e antes o Parque pegava menos fogo do que atualmente.
Os moradores antigos foram tirados do local onde gostavam de morar.
O povo produzia lá mesmo na mata fechada, e mesmo assim tinha muita mata, agora a gente vê muita destruição por lá.

O poder do território impôs condições de uso sem discutir a propriedade do fazer diário do morador do parque ou da área do entorno. Surpreso, o antes parece melhor que o agora, imaginar que a memória do que havia pré-unidade sem as multas e sem a fiscalização era a liberdade de opinar sobre o lugar de refletir sobre os rumos do lugar.
O lugar de vivência é a comunidade, seus limites são a abrangência centenária do trabalho ? a ação diária. A paisagem natural articula-se com o espaço da comunidade, é também lugar de experiências e de transformações sociais, de vivências e de afetividade ? um prolongamento da casa.
Portanto o parque constitui o espaço da comunidade enquanto realmente uma imposição de limites de atuação, mais ainda de rompimento com o relacionamento da comunidade com o lugar. Não se pode sugerir que não há um trabalho humano sem interferência imediata sobre ecossistemas da área, mas não se pode destituir o trabalho humano sem chamar esse grupo destituído para planeja os novos arranjos do ambiente.
Enquanto as comunidades litorâneas apresentam motivações concretas, para que se possa ter mudanças na estruturação e na ordenação do ambiente, pois seu lugar vem sendo modificado independente da existência do parque, nas comunidades no interior em Vargem do Cedro, Santa Maria e Laranjal os entrevistados quase na sua totalidade querem ficar no lugar, exatamente como está. É evidente que contribui para isso o desempenho na venda de produtos hortifrutigranjeiros para a Grande Florianópolis.
A praia, enquanto local de existência, de viver, prazer e de trabalho constituía-se no olhar das comunidades da Pinheira e do Siriú no local ideal para sobreviver, surge o parque: o olhar retrai-se. É evidente que a ocupação do litoral precisava de uma normatização, de um planejamento para organizar as áreas que, já na década de 70, crescia a olhos vistos, mas a criação imposta do parque condicionou modificações que mesmo depois das desanexações, jamais foram rompidas, isso porque se instituiu uma frenética e desorganizada aglomeração urbana que modificou de maneira irremediável o ambiente.

Quanto aos conflitos

Ficamos insatisfeitos com as desapropriações. Muita gente não quer sair do parque, mas vai ter de sair.
Muita gente não queria e não quer sair, ter que vender a terra, ir para outro lugar, a onde eu vou achar outro lugar como esse aqui?
Nós entendemos que é preciso preservar, mas não conseguimos conversar sobre como vai ser o parque com o pessoal que controla o parque.
Eles tão dando cursos, mas a gente não consegue tempo para ir aprender tudo o que precisa para preservar, o que a gente pode fazer a gente faz.
Mesmo depois que virou parque, muita terra foi comprada por pessoas da cidade que vem aqui e abrem tudo para por umas criações.
Lá em cima da Serra passa gente todo o final de semana e eles nem são daqui e não conhecem ninguém, mas eles podem entrar lá no parque.
Os moradores tiveram sua renda diminuída porque tiveram de tirar a criação da área do Parque.

O processo administrativo, instituído ao longo das décadas no território do parque, definiu uma outra relação de usufruto entre a população humana e a natureza, uma relação de medo. Nos grupos sociais de agricultores e pescadores, nem sempre as relações estabelecidas atendem às suas carências e expectativas. A revolta dos moradores diminuiu com o passar dos anos, ficou uma indiferença quanto ao parque que só é quebrada pelo medo da fiscalização.
As comunidades que vivem na área delimitada para o parque, enraizadas no lugar, como o local de nascimento, e sobrevivência, passam a ter um novo caminho a partir da criação do Parque Estadual, valores novos passam a ser agregados e tradições têm que ser reformuladas dentro do espaço institucionalizado. Mas como deve ser essa passagem ao novo? Deve haver uma busca constante de abstrair da paisagem o devido valor a seus moradores, esses mesmos que precisam assimilar e posicionar-se em defesa da diversidade biológica da área de interesse, para a sobrevivência da sua diversidade cultural.

Partes da Realidade a se Considerar

É evidente que é preciso haver uma nova organização territorial, pensada a partir da participação comunitária. A imposição de Unidades de Conservação que mistifica a natureza, e transforma o homem no mero visitante é uma busca de impressões sociais típicas de um modelo econômico e social que aniquila a concepção comunitária dos espaços, destituí a organização local e reprime um desenvolvimento das comunidades. Na atual crise institucional brasileira isso não significaria que logo esses territórios, as Unidades de Conservação, não poderiam ser privatizados?
A criação de Unidades de Conservação tem deixado, no Brasil, as comunidades ausentes do processo de criação das U.C e do seu planejamento e gestão, somente insistindo com essas quando os problemas aparecem. É relevante acrescentar que a preservação e conservação da natureza são pontos comum entre comunidades e administração das unidades. As diferenças surgem nas propostas e nas delimitações de objetivos, que normalmente esbarram não só na ineficiência dos órgãos condutores do processo de criação e implantação da unidade, como também na radicalização da comunidade que perdeu seu espaço ou vive nele sem possibilidade de reproduzir-se.
É preciso saber que um plano de gestão ambiental não pode, por si só (questões técnicas e jurídicas sim) responder a toda a complexidade das relações envolvidas nos espaços das comunidades. O processo de zoneamento em um plano de manejo não pode fugir de um debate sobre a dimensão da comunidade, não se trata somente realidade econômica e social dos moradores dentro e do entorno da unidade, mas de sua dimensão simbólica dos traços culturais, das manifestações quanto ao uso da terra e de suas práticas diárias na paisagem.

Referências

BLEY, Lineu. Morretes: Estudo da paisagem valorizada. Tese de doutorado. Rio Claro: Instituto de Geociências, Universidade Estadual Paulista, 1990. 256 p.
FERRETTI, Orlando. Parque Estadual da Serra do Tabuleiro: território institucionalizado e lugar de vivência. 2002, Dissertação (Mestrado em Geografia) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980.
__________. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983.
MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento. In: ______________. Pesquisa qualitativa em saúde. 4ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, ABRASCO, 1996.
LEFÈVRE, Fernando et al. Os novos instrumentos no contexto da pesquisa qualitativa. In:__________ (org.). O discurso do sujeito coletivo: uma nova abordagem em pesquisa qualitativa. Caxias do Sul, RS: EDUCS, 2000. 138p.
HEIDRICH, Álvaro Luiz. Fundamentos da formação do território moderno. Boletim gaúcho de geografia, Porto Alegre, nº 23, p. 9-22, março 1998.
DIEGUES, Antônio C. S. O mito moderno da natureza intocada. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1998.
SANTOS, Carlos. A territorialidade e a sustentabilidade ou a ecologia do espaço político. Sociedade & natureza, Uberlândia, n. 9, p. 41-56, jan./jun. 1997.
SANTOS, Milton. Espaço e sociedade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1979.
1. Este artigo é parte da dissertação de mestrado apresentada à pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina no ano de 2002 com o título "Parque Estadual da Serra do Tabuleiro: território institucionalizado e lugar de vivência".





Autor: Orlando Ednei Ferretti


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