JEQUITIBÁS E PEROBAS POR EUCALIPTOS E PINHEIROS



JEQUITIBÁS PEROBAS POR EUCALIPTOS E PINHEIROS?

De vez em quando vou ao meu quartinho de despejo e abro um armário que tenho lá, cheio de velhas caixas e antigas pastas, todas empoeiradas, com cheiro de mofo e colônias de ácaros por todos os lados. Deixo as portas abertas para que o ar entre e pelo menos aquele odor de coisa velha e esquecida se dissipe. Talvez o cheiro desagradável não grude nas coisas porque elas são velhas. Isso ocorre quando elas são esquecidas. Pois é o esquecimento que fede e não a idade. Dei-me conta disso um dia desses, quando no meio dos meus guardados dei de cara com um velho texto de Lauro de Oliveira Lima que falava de eucaliptos e jequitibás, comparando a destruição da nossa floresta nativa e sua reconstituição com árvores de corte ao que vem acontecendo em nossa educação. O texto é dos anos setenta, quando eu fazia a minha licenciatura para professor, mas o reli como se tivesse sido produzido hoje.
Ele me fez lembrar de um velho livro que eu tinha, que catalogava os lugares e as pessoas de Mogi das Cruzes, listando praças, igrejas, ruas, prédios e pessoas importantes da cidade, um a um, com suas profissões e históricos familiares.
O velho catálogo já não tinha capa nem as primeiras folhas introdutórias. Daí que não dava para saber quem fora o brilhante organizador daquele precioso catálogo que teve a consciência e a feliz idéia de preservar para a posteridade as excelências de uma comunidade, registrando justamente aquilo que a inclemência do tempo e o descaso próprio da nossa indiferença para com as coisas do nosso meio ambiente nos forçam a relegar ao esquecimento.
O catálogo era interessante porque listava o nome de comerciantes, médicos, bacharéis, sacerdotes, farmacêuticos, músicos e até professores, os quais apareceriam lá no fim da listagem, mas pelo simples fato de estarem ali, mostravam, que pelo menos em um certo tempo da vida desta nossa comunidade, eles eram considerados gente importante.
Vi listados ali algumas profissões, atividades e empresas que já estão extintas. Selaria Paulista. Leiteria Estrêla. Lavanderia Elite. Armarinhos A Vantajosa, Cecília Faz Tudo. Carroceiro Cabo Verde. Rancho do Tropeiro etc..
Aí me lembrei que meu pai foi tropeiro. Ele morreu quando eu tinha oito anos, mas desde os cinco que eu não o via porque ele tinha sido internado no Hospital Santo Ângelo para se tratar de Hanseníase. Foi por isso que deixamos Cunha para vir para Mogi.
Com tudo que sei agora dá até para ter um certo orgulho do meu pai. Ele não era o Zé Ninguém, caipira caboclo que durante muito tempo eu achara que ele fora. Fora, na verdade, um empresário, dono de uma empresa de transporte. Pois a tropa de burros era o meio de transporte daqueles tempos. No lombo dos burros se transportava as mercadorias para aqueles lugares aonde o caminhão e o trem não chegavam. Minha mãe dizia que lá pelos idos de 1932, na Revolução Constitucionalista, o governo paulista requisitou a tropa de burros do meu pai para transportar víveres e munições para os soldados paulistas que se acantonaram na Serra da Bocaina para tentar deter o avanço das tropas federais que vinham do Rio e desciam de Minas através das estradas reais. Elas passavam por Cunha, em direção à Paraty, onde o ouro das minas gerais, no tempo da colônia, era embarcado. Disse que meu pai perdeu toda a tropa naquela revolução e o governo paulista nunca pagou por isso. Veio daí a simpatia que ela tinha pelo Getúlio Vargas.

Triste fim o dos tropeiros. Engolidos na voragem de um mundo que fez da pressa e da massificação das ações a sua forma de sobrevivência. Lembrança puxa lembrança. Cadê os sapateiros, os alfaiates, os caixeiros-viajantes, os seleiros, os tanoeiros, os boticários, as parteiras, os mestres-escola, os inspetores de quarteirão, os moleiros, os caixeiros de loja, os tecelões, os sopradores de vidro, os rábulas, os tocadores de realejo, os párocos de aldeia, os boiadeiros?
Que fim levaram esses profissionais? Penso neles como velhinhos que se aposentaram e terminaram suas existências na obscuridade do esquecimento, como aqueles que somem da vida pouco a pouco, e quando morrem, os seus enterros passam, com quatro pessoas a levar-lhes o caixão e outras poucas a acompanhá-lo, diante do olhar indiferente de um mundo que caminha, a passos largos e rápidos, na direção contrária à que eles vão.
Daí pensar no educador é apenas uma curta e rápida conexão mental. Onde andarão os educadores? Onde andarão esses profissionais que constroem a consciência de uma nação? Será que se transformaram todos em professores? E estes em divulgadores de informação, repetidores de matéria? Talvez essa seja uma boa resposta, pois é assim mesmo que certas profissões desaparecem. Primeiro se transformam, como o artesão em operário braçal, o desenhista em designer, o datilógrafo em operador de computador, o boticário em farmacêutico e este em bioquímico. Desaparecem, com isso, as vocações, e no lugar surge a técnica. E da sacralidade do ofício, que era um prolongamento da mente e habilidade das mãos, faz-se uma mera operação mecânica cujo único valor se mede pela quantidade e aparência do produto oferecido, aliado ao seu custo, que quanto mais baixo, mais estimado fica.
Vocação é hoje uma coisa tão sutil que beira à espiritualidade. Não faz parte do currículo do profissional moderno a vocação para alguma coisa. Hoje vocação se chama perfil. Tem-se ou não perfil para médico, arquiteto, secretária, comerciante, vendedor. E não me digam que perfil é a mesma coisa que vocação. Não é. Perfil é uma aparência de habilidade que se adquire por encaixe, por entalhe, por retoque. Alguém que é talhado para a coisa. Adquiriu conformação para aquilo. Vocação não se adquire por preparação, por aprendizado. É algo que se tem ou não se tem. É uma coisa de coração. Em qualquer profissão podemos desenvolver vocações ou perfis. Parece difícil imaginar que alguém possa desenvolver vocação para boiadeiro, tropeiro, sapateiro, alfaiate ou boticário. Mas isso existe sim. Talvez não mais hoje, mas um dia existiu e foi com base nessa relação de transcendência entre o homem e sua profissão, que nasceu a tradição de sacralidade de alguns ofícios, como as dos pedreiros, os forjadores, dos alquimistas., dos médicos e principalmente dos educadores.
Por isso não encontramos mais verdadeiros boiadeiros, a não ser nas velhas canções das nossas duplas sertanejas. Nem tropeiros, nem seleiros, nem sapateiros nem alfaiates. Desapareceram também os médicos de família, aqueles que faziam da medicina um verdadeiro sacerdócio, primeiro fazendo o parto, depois tratando as doenças da infância, as moléstias do adulto, desde a pneumonia, o sarampo, a catapora, a caxumba, até a gonorréia, acompanhando o cliente do berço até o túmulo. Hoje temos especialistas para tudo, desde medicina celular, até doutor em unha encravada, mas o que cura mesmo, o verdadeiro remédio, que era o amor, o carinho, a confiança que se tinha no profissional desapareceu com a vocação. Temos hoje muitos técnicos em medicina, mas quantos serão verdadeiros médicos?

É a mesma coisa com o educador. Haverá ainda lugar, em nossa civilização de cultura descartável, para um verdadeiro educador?
Da mesma forma que o boticário se tornou obsoleto, engolido pelas multinacionais do remédio pronto, o alfaiate pelas grifes e pelas fábricas de produção de roupas em larga escala, os sapateiros pela indústria do calçado bonito e descartável, também o educador perdeu o seu espaço numa civilização que hoje não precisa mais de cultura nem educação, mas unicamente de informação. Aliás, que utilidade teria ele nessa verdade indústria de informação em série que hoje são as nossas escolas e universidades?
Lembrança puxa lembrança e estas sempre trazem um pouco de nostalgia. Que saudade do Lauro de Oliveira Lima, grande e verdadeiro educador. É verdade o que ele disse: é mais fácil plantar eucaliptos do que conservar jequitibás. E é assim mesmo que acontece. Derrubam-se as velhas árvores seculares, que nasceram sozinhas, por milagre da natureza e no seu lugar replanta-se a floresta com árvores próprias para o corte, como são os pinheiros e os eucaliptos. E desaparecem os jequitibás, as perobas, os mognos e outras espécies nobres. E assim também caminha a sociedade humana.
A morte abate as nossas árvores mais nobres e são poucas as que nascem com a mesma nobreza para substituí-las. Até porque estas não são plantadas em série nem podem ser cultivadas artificialmente. Elas precisam de habitat peculiar para nascer e desenvolver suas vocações. Não é na floresta petrificada da produção em massa e do lucro a todo custo que elas vicejam e crescem. Educadores são como as árvores nobres da floresta, verdadeiras entidades especiais que possuem uma alma, uma tradição, uma estória, que se liga ao ambiente em que ela existe e influi, de forma decisiva, nele. Por isso é que muitos povos que vivem mais próximos à natureza cultuam certas árvores, vendo nelas um "espírito protetor", um totem que merece reverência, pois agasalha atributos da divindade e nasce e cresce exatamente naquele lugar para proteger aquele ambiente.
Que me perdoem aqueles que não entenderem a analogia, mas é assim que eu vejo o educador. Sua importância, seu carisma, seu resultado, sua habilidade não está no conjunto de informações que ele reúne para passar aos seus alunos, mas nessa relação de simbiose que ele mantém com seus pupilos, que verdade seja diga, são pupilos mesmos e não simplesmente alunos. Esse profissional nada tem a ver com o professor das nossas modernas escolas e universidades, que não por culpa deles, diga-se a bem da verdade, mas por força de um sistema que transformou o conceito de educação em créditos que o aluno tem obter numa certa disciplina, hoje só se preocupa em cumprir um programa sem alma, cujo conteúdo pode ser obtido, com maior prazer, na Internet ou numa revista de variedades. Se entendermos bem essa analogia, não será difícil entender também porque hoje os nossos alunos estão tão indisciplinados, desmotivados e rudes, e os nossos professores tão infelizes e desanimados com suas profissões.
Da minha parte, que saudade da Geraldina Porto, da Clara Coelho, do Ari Silva, da Aracy Steiner. Esses três nomes estão no catálogo a que eu me refiro no início deste texto. Em nome deles saúdo todos os verdadeiros educadores do mundo, profissionais ou não, pois educador não é profissão, é vocação, missão, apostolado. Da mesma forma que hoje terçamos armas para conservar as árvores nobres, seria de bom alvitre preservar os verdadeiros educadores. Esses são, como dizia Lauro de Oliveira Lima, os jequitibás que nunca poderão ser substituídos por eucaliptos.



Autor: João Anatalino Rodrigues


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