Banalização, um processo social



A banalização é um processo que transforma comportamentos, concepções, fatos e preconceitos em algo comum ao ponto de ser entendido como natural, isto é, aceito como sendo parte da evolução social e cultural de um povo que herdou e preserva o que herdou das gerações anteriores. Mas, a banalização também é uma atitude de comodismo diante de situações que poderiam ser evitadas para que não se transformem em "natural". Uma das situações que a banalização tem transformado em "natural" é a miséria e a fome vivida em países do continente africano, que tem sua aceitação pela maioria da população mundial, aceitação disfarçada de hipocrisia que perante câmeras de TV e de entrevistas levadas a publico com "ar" de preocupação.
A palavra banalizar tem sinônimos que por si explicam essa concepção. Banalizar é vulgarizar, tornar comum, trivial e habitual. Se a miséria e a fome estão banalizadas, foi vulgarizada, é trivial ao ponto de não causar mais nenhum desconforto, isto significa que a situação de miséria e de fome já é comum e habitual, logo é aceita, não tem importância quando comparada com a riqueza e a fartura de alimentos, passou a ser uma condição admitida como "natural" pelo próprio povo que vive nessas condições, assim como pelos que dela fazem algum comentário. Assim sendo, o que é banalizado tem aceitação por não sofrer resistências morais, éticas ou populares, e com isso a banalidade tem aceitação total ou parcial para que seja a transformadora de precariedades que serão tidas como naturais. Banalizar é tornar algo precário de importância moral.
A precariedade moral se dar com o desgaste da moral e com a valorização de um pré-conceito transformado em conceito. Sendo o conceito submetido a analise e reflexão, o pré-conceito é apenas recebido e praticado como "conceito" sem o adequado conhecimento dos fatos. Por exemplo, considerar uma etnia inferior é não entender nada de genética, é não compreender as pesquisas antropológicas, é não filosofar sobre a existência, é não ter lido os textos religiosos, é não se perceber como ser humano ou enxergar o outro como membro de uma espécie animal diferente da classificação "homo sapiens". O pré-conceito é a desvalorização dos valores morais e das atitudes éticas. Sendo que a valorização não pode ser entendida como algo reconhecido por um só ou por um grupo limitado de indivíduos, se assim for não corresponderá as expectativas da não-indiferença, tão pouco estará de acordo com a moral como um conjunto de regras de conduta assumidas pela sociedade, e menos ainda com a ética como noções de princípios que fundamentam a vida moral.
A banalização percorre as vias da distorção do real, da amoralidade e da indiferença. Ser conivente ou omisso em situações que se entende como banal é está permitindo e aceitando a distorção da moral, da ética e do que é valor. O primeiro passo da banalização se dar pelas palavras, são elas a representação do pensamento, como é o ator a representação do personagem. Foucault entende que as palavras são representadoras do pensamento daquele que fala e serão representadas pelo pensamento daquele que escuta, se alguém diz que a "violência" é inevitável pra alguém que está predisposto a aceitar a "violência" como dispositivos comuns do comportamento humano então têm aí a banalização da "violência" que passou de ação rejeitável a ação "natural". As palavras têm a tarefa de informar e o poder de representar o que é falado.

"Soberana, pois que as palavras receberam a tarefa e o poder de ' representar o pensamento'. Mas representar não que dizer aqui traduzir, dar uma uma versão visível, fabricar um duplo material que possa, na vertente externa do corpo, reproduzir o pensamento em sua exatidão. Representar deve-se entender no sentido estrito: a linguagem representa o pensamento como o pensamento se representa a si mesmo" (FOUCAULT.1999, p. 106)

As palavras podem curar, aprisionar, libertar, elevar a alma, fornecer alegrias ou tristezas, confortar, causar desespero, encorajar ou algemar com o medo, explicar ou confundir, enfim as palavras são pensamentos que formam pensamentos que se traduzem em ações. Como já foi exposta, a banalização começa pelas palavras, pela representação de um pensamento que se torna ação, que se torna conduta. As próprias palavras sofrem com a banalização, imagine quantas vezes durante um relacionamento os enamorados dizem um ao outo a frase "eu te amo". Certamente são tantas que acaba perdendo o sentido virtuoso da representação do que essa frase pretendeu transmitir. Ela se esgota na banalização ao ponto de ser mais uma frase pronta entre muitas que não dizem mais nada pra ninguém. As próprias palavras podem ser banalizadas e perdem a força que tinha anteriormente, passando para a sala da precariedade de importância. Foucault (1999, p. 412) diz que "(...) os homens, crendo que seus propósitos lhes obedecem, não sabem que são eles que se submetem às suas exigências".
A banalização ultrapassa a fronteira das palavras e se infiltra nas mais diversas áreas de atuação humana. O convívio social cada vez mais ameaçado pelo medo; as desigualdades sociais ilustradas no cotidiano social; a banalização das relações humanas; conjugar o verbo banalizar está se tornando constante nas ações humanas, ordenando as ações realizadas pelo sujeito que é também predicado da pluralidade que concorda com tais banalizações.
O convívio social está sempre armado ou na defensiva diante dos temores que rondam a imaginação que se produziu dentro da sociedade ameaçada e que ameaça a vida, a dignidade, a existência e a sociabilidade. Os indicadores dos crimes mostram mais vitimas que culpados, mais receio que punições aplicadas, mais paliativos que soluções. O medo de sair e ter que retornar para casa em um caixão, o medo de abrir a janela e ter a ultima visão da paisagem interrompida por uma bala que estava perdida até então, o medo de ser vitima da criminalidade e dos criminosos que sem rostos perambulam pelas vias citadinas e imediações rurais, o medo se tronou mais constante no ser humano que sua condição de raciocinar por mudanças e resoluções das dificultardes que se instalaram na convivência social, no convivo humano. Bauman no livro "Medo líquido" diz que o medo pode ser de três tipos; os que ameaçam o corpo e a propriedade, os que ameaçam a ordem social e a duração dessa ordem e os que ameaçam o lugar das pessoas no mundo. O primeiro (corpo e propriedade) está relacionado ao medo de ter os bens pilhados ou resgatados por qualquer meio que conduz a perda, de igual modo é entendida a vida que pode ser interrompida por meios que não os considerado naturais, já que é da vontade de todos é morrer sem a ajuda do outro.
O segundo (a ordem social) está relacionado à confiança sobre a ordem social que está sendo esfacelada pela desconfiança, os diversos casos de ações de suborno as autoridades ou por elas mesmas, da depravação ética e moral por parte dos políticos diante de suas obrigações sociais, alteração da ordem por grupos a fim de tirar proveito em seu próprio benefício; sedução da confiança pela mentira; insegurança em relação ao governo e lideres, autoridades e os que são responsáveis pelo bem estar de toda a sociedade.
O terceiro (hierarquia social), que está relacionado às ameaças constantes sobre ser excluído socialmente, esta exclusão pode ser de classe, de gênero, étnica ou religiosa. O convívio social favorece o medo social por causa dos acontecimentos que são noticiados e que se banalizaram por falta de atenção sobre os problemas quando se apresentaram ou, por conta da precarização das soluções adotadas que nada solucionaram e tudo vulgarizaram. Veja os casos de violência que ficam impunes ou são brandamente punidos. Não tendo respostas significativas os crimes e a violência se propagam com autorização dos que banalizam essas ações, o criminoso se ver com a permissão para continuar infringindo as leis e amedrontando a sociedade que tenta conviver em acordo com as condutas corretas e aceitáveis pela ordem social, jurídica e moral. Banalizar é aceitar a violência, é diluir seu impacto social, o terror que causa a todos e a cada um, é tornar toda ação violenta e criminosa aceitável, comum, parte da natureza humana. De igual modo acontece com a miséria e a fome, descasos sociais que se tornaram triviais ao ponto de não causar estranhamento diante dos olhos que assiste a tudo, e do juízo que aceita como normal, como se a miséria fosse uma determinação da condição humana, uma imposição natural.
Esse comodismo, essa aceitação, essa omissão e juízo impessoal na presença do descaso se tornou comum na concepção das pessoas que se sentem incapazes de mudanças ou que já banalizaram os fatos como acontecimentos "naturais". Soma-se ao comodismo a concordância e a indiferença, palavras que são sinônimos de uma mesma perspectiva dos fatos, de uma concepção sobre os acontecimentos expostos aos olhos do espectador que sentado em seu sofá confortável até rir ou faz piada da miséria tomada como situação favorável à especulação financeira.
Outras vezes a ação humana se limita a expressão "é assim mesmo", como manifestação de um sentimento de distanciamento dos fatos, de não comprometimento, de permissão dada à banalidade do que não precisa e não deveria ser banalizado. Nietzsche (2008, p. 66) diz que "(...) algo existente, que de algum modo chegou a realizar, é sempre reinterpretado para novos fins, requisitado de maneira nova, transformado e redirecionado para uma nova utilidade, por um poder que lhe é superior", isto é, a miséria e a fome estão sendo reinterpretadas como uteis dentro do contexto humano por se transforem em situação comum, condição vulgarizada dos fatos que submete o julgamento a superficialidade para acatar como regra da existência o que não tem nada de natural e menos ainda comum. Pensar a miséria e a fome como naturais é adotar uma consciência ilusória da realidade que é no mínimo mais doente que as enfermidades e as degradações morais, que essas condições impostas causam em suas vitimas.
Adotar ou formular uma consciência ilusória de que fome e miséria são naturais é condenar a famigerada evolução humana e social a agressão e a autodestruição, Freud (1996, p. 143) analisando as relações humanas disse que "Assim como um planeta gira em torno de um corpo central enquanto roda em torno de seu próprio eixo, assim também o individuo humano participa do curso do desenvolvimento da humanidade, ao mesmo tempo que persegue o seu próprio caminho na vida." Desse modo, quando a situação de miséria e fome se apresentam dentro da sociedade o individuo que a observa pode se limitar a banalizar os fatos e seguir seu caminho na vida, mesmo que tropeçando por corpos putrificando, mas não pode acreditar que tal situação faz parte da evolução humana e social, essa crença corresponderia a uma ilusão da consciência que se formou como defesa de si mesmo diante da impotência de se aceitar inerte ou sem importância para mudanças na famigerada evolução tão exaltada. As relações humanas são importantes para evitar a banalização de situações precárias ocorrendo na sociedade na qual todos são membros importantes. Mas, até as relações humanas são banalizadas. Vejamos!
As relações humanas que são as ligações afetivas ou sexuais entre duas pessoas sofrem com a degradação da confiança e a exacerbação da liberdade, ademais novos conceitos são estabelecidos como padrão e logo que adotados substituem outros que são encarados como superados e desatualizados. O que é interessante é o fato de que as relações sentimentais vestiram novas roupagens para parecerem modernas e com isso perderam a sua verdadeira identidade.
Atualmente as relações amorosas e afetivas passam por reavaliações que permitem novas atitudes e novos comportamentos, não tão novos assim! Diríamos visíveis! Pois, certas atitudes sempre existiram, só não tinham a mesma tolerância dos dias atuais. O divorcio, por exemplo, que outrora foi recriminado e considerado desonroso, é atualmente apenas uma fase de uma experiência em que os casais se submetem, e que é considerada como normal. Muitos são os casais divorciados e as crianças que buscam referência paterna ou materna fora da sociedade familiar que já nasceu fragmentada. Assim como o divorcio, as relações sexuais passaram ao nível da banalização em que não se sabe mais oque é amoralidade e imoralidade. O sexo passou a ser encarado como necessidade de realização fora do casamento ou de experiências antes do casamento, em certos casos a "traição" é entendida pelo casal como "estimulante" quando na presença de um dos conjugues. Para Giddens a maioria das pessoas antes de casarem já tem uma carga de experiência sexual significativa e não consideram encontros extraconjugais errados ou possíveis de desestabilizar as exigências nupciais. O casamento não denota em seus primeiros momentos como um encontro e um período de descobertas sexuais, de aprendizagem, sendo que os conjugues já trazem consigo experiências que serão apenas trocadas. Porém, ainda se fala de segurança no casamento mesmo com a liberdade extremada do sexo sem compromisso antes das núpcias.

"A maioria das pessoas, homens e mulheres, chega atualmente ao casamento trazendo com elas uma reserva substancial de experiência e conhecimento sexual. Para elas não é abrupta a transição entre os encontros furtivos desajeitados ou ilícitos e a sexualidade mais segura, mas também com uma frequência mais exigente do leito nupcial. Os casais recém-casados de hoje são em sua maioria experientes sexualmente, e não há período de aprendizado sexual nos primeiros estágios do casamento, mesmo quando os indivíduos envolvidos não viveram um com o outro previamente." (GIDDENS. 1993, p. 21)

Já se tornaram habituais as despedidas de solteiro (a) em que os noivos se submetem a extravagancias como ritual de saída da vida solteira para a entrada na vida conjugal. Giddens (1993, p. 37) diz que "A sexualidade passou a fazer parte de uma progressiva diferenciação entre o sexo e as exigências da reprodução", isto é, a sociedade moderna com as tecnologias de concepção artificial condenou o sexo a sua total autonomia. A independência da atividade sexual da sua condição primeira de reprodução perde sentido quando a reprodução pode ser independente e artificial, a atividade sexual passa a condição de busca de prazer onde o maior número de experiências é exaltada como condição moderna. Ser moderno é entrar na vida sexual mais cedo, é viver o maior numero de parceiros possíveis antes do casamento, o próprio casamento pode ser dispensado quando se trata de sua condição procriativa diante dos diversos meios de concepção independente.
A sociedade passou a categorizar e a ser categorizada com atributos estereotipados que sujeitam e submetem. Um exemplo é a tirania da moda que dita o que é belo e o que é ridículo. Essa ênfase na beleza padronizada foi banalizada e adotada como modelo a ser seguido a qualquer preço, muitas vezes paga-se com a vida o que a banalização de estereótipos fabricou com o preconceito a beleza. A sociedade aceita esses estereótipos de modo à territorializar espaços em que cada grupo pode ser encontrado, e onde grupos considerados diferentes não convivem juntos. Goffman na obra "estigma" diz que a sociedade se categoriza por meio de atributos que são considerados comuns e naturais a todos seus membros, e com isso estabelecem ambientes a cada grupo categorizado.

"A sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias. Os ambientes sociais estabelecem as categorias de pessoas que têm probabilidade de serem neles encontrados." GOFFMAN (1982, Pp. 11 ? 12)

A sociedade que segrega, exclui, caracteriza e atribui valores é a mesma que sofre com o que ela banaliza. Nada é feito se não com atos e palavras, meios pelos quais nos inserimos ou nos segregamos na sociedade.
A banalização pode ser relativizada e tudo o que foi expostos até aqui poderá ser considerado contrario a o que se pretendeu. Para muitos a banalização da miséria e da fome é uma clara atenção humana sobre o problema que exalta debates e clama por solução, e se não banalizada não chamaria atenção e exigiria mudanças. De igual modo, a sexualidade em que o casamento é percebido como tradicional e desgastante existencialmente, sendo que a família não necessita da união entre dois para poder existir com os avanços da medicina e das ciências biológicas que propõem os métodos de gravidez artificial; ou que a relação sexual nunca foi uma atividade exclusivamente procriativa, na maioria das vezes foi a busca do prazer pelo prazer. As relações humanas já nasceram banalizadas e é com a banalização que tudo o que é considerado normal e natural chegou a sua normalidade e naturalidade. Mas, não é relativizando que se mantem a ética, os conceitos e princípios morais, a unidade familiar, enfim a existência. Não é precarizando as importâncias que se constroem outras, isso é no mínimo irresponsável e desastroso.


Referencia Bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993.
GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4.ª ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1982.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tamus Muchail. 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999 (Coleção Tópicos).
NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo. 2008. Cia. das Letras.

Autor: Chardes Bispo Oliveira


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