DESCONSTITUIÇÃO DO ADVOGADO PELO MAGISTRADO FACE O PRINCÍPIO DA VERDADE REAL



1 ? INTRODUÇÃO

A idéia que tentei apresentar no presente artigo visa coadunar a desconstituição do advogado pelo magistrado com o princípio da verdade real, a partir da efetiva atuação da defesa, com a presença dos princípios do contraditório e da ampla defesa. Na linha de pensamento de que se a defesa, exercida por um profissional habilitado, que é o advogado, não é concretamente exercida, o juiz deve usar dos atos que a lei coloca à sua disposição, como parte de seu zelo pelo bom andamento do feito, para desconstituir o advogado e nomear um defensor ad hoc.


2 ? DESENVOLVIMENTO

Sabendo que os bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal são aqueles mais valorizados pela sociedade e merecedores de uma tutela mais eficiente e atuante do Estado - uma vez que este ramo do direito é o mais drástico e traumático, conhecido como "última ratio" -, consequentemente temos que a atuação do Estado na persecução penal também deve ser mais cautelosa e atuante, o processo aqui não é apenas um instrumento técnico de acesso ao judiciário, tem uma função mais ampla e ética. É interesse não apenas das partes, mas também da sociedade, que a verdade seja esclarecida, bem como que seja escolhida a melhor solução. Diferente do Processo Civil, o Processo Penal não se satisfaz com a formal existência das partes e com o que estas trazem aos autos. O juiz deve procurar a verdade para decidir, de modo a investigar como os fatos ocorreram no mundo real, não se contentando com a verdade formal dos autos, desde que não assuma a função de auxiliar de uma das partes (artigos 156, 157 e 197 do CPP).
Para a busca da verdade real o juiz deve garantir o equilíbrio na atuação das partes, como uma mediação dos argumentos pautados, caso contrário o procedimento penal ficará a serviço da condenação ou da absolvição, resultando em um entendimento da verdade pelo juiz fadado à manipulação. Complementado, como dizem Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly o juiz tem o poder de: "velar pela defesa técnica, seja nomeando defensor ao acusado, seja declarando-o indefeso, com o reconhecimento de nulidade insanável (564, inciso III, l, CPP), sem que, para tanto, tenha de abdicar da imparcialidade." e ainda, nas palavras dos mesmos autores
"O magistrado, como acentua Marco Antonio Marques da Silva, não é uma figura autómata e tampouco um burocrata que se abstém de "sentir e viver a lei em confronto com o sentido e a vida do caso a que ela se destina, no complexo de adequação do texto às condições do meio." (Apud SILVA, Marco Antonio Marques. A vinculação do juiz no processo penal, São Paulo: Saraiva 1993. p.59)
O direito de defesa não é um privilégio, e sim um direito originário, impostergável, integrante do direito à liberdade, fator legitimante da própria jurisdição. Sendo assim inalienável, com o resguardo da Constituição Federal, em seu artigo 5º, LV, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Direito este reforçado no Código de Processo Penal, art. 261, nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor.
É notório que a Lei Maior não se contentou em defesa plena, mas foi expressa em dizer que a defesa deve ser ampla. Na explicação de José Lisboa da Gama Malcher defesa plena é "(...) o uso dos meios e recursos essenciais ao exercício da defesa; defesa ampla é mais: por ela, as leis processuais devem estatuir meios e recursos adequados à sua livre manifestação não podendo o legislador ordinário restringi-los."
Como discorre José Lisboa da Gama Malcher
"O direito de defesa tem as mesmas características do direito de ação: é abstrato, no sentido de que a Constituição Federal o assegura a todos, sem limites (amplo) e sem distinção; autônomo, pois não se liga diretamente à pretensão punitiva, mas ao resguardo da liberdade; instrumental, pois é direito-meio de assegurar a liberdade (direito-fim); e público, pois nasce diretamente da Constituição Federal que o garante de forma ampla, e, portanto, irrenunciável e impostergável."
Para efetivar o direito a defesa ampla é necessário harmonia entre as partes, autor e réu devem se situar em plano de perfeita equivalência diante do juiz, por isso a defesa técnica ? aquela que faz jus a defesa por profissional habilitado ? é garantia de paridade de armas indispensável á concreta atuação do contraditório e, consequentemente à própria imparcialidade do juiz (Ada Pellegrini Grinover). Nesse sentido Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly citando Fernando de Almeida Pedroso dizem que
"Em vista do princípio da isonomia ou igualdade de todos perante a lei, ao réu confere-se o direito de atuar probatoriamente, em face do que alega, em igualdade de condições com o órgão estatal acusatório. Não fosse assim e o direito de defesa assumir-se-ia como simples quimera o fantasia legal, cuidando-se de mera formalidade e não de efetivo direito." (Apud PEDROSO, Fernando de Almeida. Processo Penal, o direito de defesa: repercussão, amplitude, limites. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p. 18-19)
O defensor representa o acusado, age em nome e no interesse deste, deve guardar sigilo profissional, assistir e amparar seu constituinte usando de seus conhecimentos. Nos ensinamentos de José Lisboa da Gama Malcher "O advogado exerce verdadeiro "munus" público, pois sem ele (seja o mais modesto) não há possibilidade de Justiça; esta só se manifesta com sua presença, pois ele representa e encarna o mais elevado de todos os Direitos: o de guardião da liberdade do réu."
A presença atuante do advogado é necessária para garantia do contraditório, como assevera José Lisboa da Gama Malcher a atuação do advogado
"(...) se coloca na ordem das coisas sacras, pois reveste verdadeiro sacerdócio; não se faz favor algum em admiti-lo em atos em que a lei consente sua presença, pois ela decorre, em todos os povos verdadeiramente democráticos, da necessidade social de a todos garantir ante as investidas, ou possibilidades de investidas, do abuso e da prepotência."
No Processo civil, é possível que a parte escolha por não apresentar a defesa, o juiz declarará o réu revel e o processo segue. No processo penal isso não existe, se a parte ré perder o prazo, o juiz desconstitui o advogado e nomeia outro defensor pra realizar o ato. Tendo em vista que todos os atos do processo penal são obrigatórios, os atos devem ser realizados! Partindo do pressuposto que o processo penal e seus atos são públicos, a parte não se dispõe dos atos, a parte não tem a opção de querer ou não se defender, o processo é vinculativo. Diferente do processo civil que é um processo disponível, processo das partes, onde simplesmente se sujeito não se apresentar no processo sofre conseqüências. Pelas mesmas razões que o policial não tem opção de multar ou não um caso que se enquadre no fato típico que deve ser multado, ou, no processo penal, se presentes os pressupostos, o promotor não tem a opção de propor ou não a ação, da mesma forma o advogado não tem a opção de apresentar ou não a defesa, quando aceitou ser constituído como advogado daquela parte.
Dessa maneira entendendo o juiz que a parte não está tecnicamente defendida, quando ineficiente ou inexistente a defesa feita pelo defensor, o juiz, poderá, quando muito, designar defensor ad hoc para a prática de determinado ato processual, em substituição àquele anteriormente realizado, se realizado. (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. 2002). Tal entendimento é consubstanciado na Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal, in verbis: no processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu.
Pacelli entende que quanto à ausência de defesa ser causa de nulidade absoluta, não resta dúvida. Mas a questão da deficiência da defesa é mais complexa, pois, em princípio quem aferiria tal insuficiência seria o próprio defensor, o que com certeza é improvável que ele mesmo admita a deficiência de seu trabalho. Assim, Pacelli pensa que:
"(...) a citada Súmula 523 deve ser entendia como o reconhecimento da possibilidade de o próprio Judiciário reconhecer a deficiência da atuação do defensor, determinando, ex officio, a sua substituição ou retificação, nos moldes antes aventados. Estaria assim melhor atendido o princípio da ampla defesa."
Complementado este entendimento, penso eu que, na conseqüência deste ato o juiz estaria fazendo sua função de buscar a verdade real, afinal "o magistrado atua em função e no interesse de toda a sociedade, a quem deve prestar contas" (Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly apud GOMES FILHO, Antonio Magalhães). Tendo em vista que a existência de partes contrárias em um processo é justamente para que cada parte mostre a maneira como interpreta o fato ocorrido e principalmente como expões a reconstrução dos acontecimentos passados. Nessa seqüência de pensamento Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly citando Ada Pellegrini dizem que: "o concreto exercício de ação e defesa, tendo por escopo influir sobre o desenvolvimento e o resultado do processo, fica essencialmente subordinado à efetiva possibilidade de se representar ao juiz a realidade do evento (...)". Se a defesa é precária, ou seja, se o advogado não faz sua parte, o juiz fica limitado ao ponto de vista da acusação.
Afinal, a defesa não se resume na simples possibilidade de integração do processo, na simples formação das partes, a defesa deve ser efetiva, como ensina Pacelli: "Por defesa efetiva se deve entender e exigir a efetiva atuação do defensor em prol dos interesses do acusado, o que poderá ser aferido sempre diante de cada caso concreto, sopesando-se as provas careadas aos autos pela acusação e a possibilidade real de sua confrontação pela defesa."
Fundamentando este entendimento temos ainda que a defesa não pode ser entendida tão somente como oposição ou resistência, mas também como o direito de incidir ativamente sobre o desenvolvimento e o resultado do processo, por isso a busca da verdade real deve decorrer de uma participação dinâmica e ativa das partes dentro do processo. (Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly. 1999).
Complementado a questão de que a efetiva defesa é obrigação do advogado constituído, Capez diz que:
"(...) se no processo civil o defensor encontra-se plenamente vinculado à vontade daquele que lhe confia seus interesses, no processo penal, em razão da sua acentuada natureza pública, o defensor exerce representação sui generis, autônoma à vontade do acusado, já que pode atuar mesmo contra a vontade dele. Isto porque o advogado atua além do interesse particular do réu; também no interesse social, que reside na justa atuação da jurisdição, que será obtida à medida em que o provimento judicial constituía a síntese da atividade dialética das partes processuais. As prerrogativas do defensor, nesta ótica, não teriam origem no mandato outorgado pelo réu ou na nomeação efetuada pelo juiz, ma na própria legislação processual penal (quer constitucional, quer infraconstitucional) que considera inafastável a defesa técnica. "Daí a afirmação de que a defesa é o exercício privado da função pública." (apud Tourinho Filho)".


3 ? CONCLUSÃO

A desconstituição do advogado pelo Juiz faz-se medida necessária para o encontro da verdade real, na hipótese deste defensor não cumprir o seu dever de munus públicum, exercendo o contraditório e a ampla defesa adequadamente. Com essas palavras quero dizer que no caso do advogado não fazer o papel que lhe é incumbido o juiz estará induzido às manifestações aduzidas pela parte contrária. Sendo, pois, um prejuízo não apenas ao réu, que tem sua liberdade e integridade ameaçada, mas, também, à sociedade, partindo do pressuposto que o Direito Penal abraça situações de maior valoração pela sociedade. Portanto é interesse da sociedade que a situação que de fato ocorreu seja alcançada no processo, para se chegar a uma decisão justa e corretamente ideal ao caso e não, ao contrário do Processo civil, simplesmente a melhor decisão.
O juiz, que é quem conduz o processo, é o guardião do perfeito andamento do procedimento, estará sujeito ao que é exposto pelas partes para poder chegar à tão pretendida decisão justa. Claro fica que se o advogado falha na função que lhe é atribuída, deixando de usar, inclusive, adequadamente os meios de prova, comprometerá a interpretação do juiz, que ficará impedido de alcançar a verdade real.
A defesa em seu sentido objetivo, que pode ser entendida como a defesa concretamente exercida, o direito de produzir prova lícita e o direito de ver essas provas apreciadas - todas decorrentes da defesa técnica - influenciam no convencimento do julgador. Assim, uma boa defesa chega a um convencimento satisfatório pelo juiz, ao passo que uma péssima defesa faz com que o juiz tenha uma péssima percepção dos fatos, contrariando o princípio da verdade real. Deduzindo-se, portanto, que se o juiz faz seu papel cobrando uma boa defesa, chegará ao resultado que lhe é incumbido, qual seja, chegar à verdade real dos fatos.


4 ? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

? BARROS, Romeu Pires. Direito Processual Penal ? Volume I. 1ª ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1969;
? CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 12ª ed. Editora Saraiva;
? DEMERCIAN, Pedro Henrique e MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal. São Paulo: Atlas, 1999;
? DORO, Tereza Nascimento Rocha. Curso Básico de Processo Penal. 1ª ed. Editora Síntese, 1999;
? GALUPPO, Marcelo Campos. Da idéia à defesa: monografias e teses jurídicas. 2ª ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008;
? MALCHER, José Lisboa da Gama. Manual de Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1980;
? MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2006;
? NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002;
? OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

Autor: Carmélia Sannazzaro Ribeiro


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