DIFERENÇA NÃO É DEFICIÊNCIA: UM ESTUDO SOBRE AS BARREIRAS DO PRECONCEITO LINGUÍSTICO.



DIFERENÇA NÃO É DEFICIÊNCIA: UM ESTUDO SOBRE AS BARREIRAS DO PRECONCEITO LINGUÍSTICO.

Maiele Maria Cristina Araújo

RESUMO
Este trabalho apresenta algumas características do português não-padrão, bem como faz uma análise diacrônica desta que é considerada uma das línguas mais difíceis de ser assimilada devido às inúmeras regras que a constitui. Através de uma visão objetiva de renomados sociolinguistas, procura demonstrar a funcionalidade e heterogeneidade do português falado pelas classes menos favorecidas, destacando seus possíveis "erros" e o papel da escola mediante os mesmos.

Palavras-chave: Português- Não-padrão- Língua- Erro- Variação- Deficiência-Escola.

1. INTRODUÇÃO

Desde o momento em que nascemos, e que o mundo nos é apresentado, percebemos que tudo que nos rodeia tem suas particularidades. A essas características particulares de cada objeto, ser, ou indivíduo, damos o nome de diferença. Aprender a lidar com as diferenças é um desafio que enfrentamos a cada dia, isso porque como nos diz Eliana Pougy : "Diferença é um modo de pensar, ou seja, é um exercício do pensamento que possui determinadas premissas ou um determinado modo de se entender o homem, a natureza, as coisas do mundo, as relações, a sociedade, a linguagem, os valores, a vida [...]". Ou seja, aceitar as diferenças é aceitar o outro, pois mesmo vigentes de uma mesma sociedade, cada ser humano traz consigo algo empírico e passível a modificações.

O PORTUGUÊS NÃO-PADRÃO E A RAÍZ DO PRECONCEITO

Quando falamos em português não-padrão (PNP), logo nos referimos ao português que não segue as regras vigentes nas gramáticas normativas, e geralmente, associamos esta noção ao jeito de falar de algumas classes chamadas "desfavorecidas". São as pessoas que moram em favelas, em uma cidadezinha do interior, nas ruas, enfim, indivíduos que sofrem de algum tipo de carência: de moradia, de emprego, de tecnologia. No entanto, nenhuma delas sofre carência de língua, pelo contrário, todas possuem um jeito próprio de falar, e dentro dessas particularidades constroem um sistema articulado e inteligível, não ferindo assim o intuito primordial da língua, que é a comunicação.
Segundo Gnerre (1994, p.5) "... A linguagem não é usada somente para veicular informação, isto é, a função referencial denotativa da linguagem não é senão uma entre outras; entre estas ocupa uma posição central a função de comunicar ao ouvinte à posição que o falante ocupa de fato ou acha que ocupa na sociedade em que vive. As pessoas falam para serem ouvidas, ás vezes para serem respeitadas e também para exercerem uma influência no ambiente em que realizam os atos linguísticos..."
A grande verdade é que aquilo que muitos chamam de preconceito linguístico nada mais é do que um preconceito social, ou seja, descrimina-se o falante, não a fala. Quando os portugueses "cá chegaram", catequizaram os nativos, enquanto que seus dialetos "bárbaros" foram desconsiderados. A este fato admitem-se dois motivos: a repulsa pelo diferente e o desejo de dominar. Hoje, mais de 500 anos depois, este retrato social ainda perdura.
Prova disso é que um fenômeno como o rotacismo, que é a tendência natural do falante de transformar o L em R nos encontros consonantais, é considerado um erro gravíssimo, se dito por um trabalhador como na construção "O pobrema do carro é no radiador". No entanto, quando Camões em seus célebres versos de os Lusíadas escreve "Nas ilhas de Maldiva nasce a pranta" (X, 136), considera-se que há ai uma licença poética.
A intenção do exemplo não é desvalorizar, muito menos corrigir o grande poeta português. O que se pretende é demonstrar que os fatos da língua são analisados de acordo com quem os profere, e isso é bem compreensível se levado em conta o fato de que o português é o idioma da classe dominante. Nosso processo de colonização deixou-nos a língua como traço cultural, excluindo quase que completamente qualquer outra influência das culturas afro/indígena (povos dominados). Marcos Bagno (1997), grande sociolinguista contemporâneo, aponta em uma de suas obras as principais diferenças entre o "português brasileiro" e o português de Portugal, que podem ser:
? Fonéticas (no modo de pronunciar os sons da língua): O brasileiro diz eu sei, o português diz eu sâi;
? Sintáticas (no modo de organizar as frases, as orações e as partes que a compõem): Nós no Brasil dizemos estou falando com você; em Portugal eles dizem estou a falar consigo;
? Semânticas (no significado das palavras): cuecas em Portugal são as calcinhas das brasileiras.
Essas diferenças são apontadas entre a metrópole colonizadora (Portugal) e a colônia dominada (Brasil). Teríamos resultados bem mais abrangentes caso está analise fosse feita dentro do próprio território brasileiro; estima-se haver mais de 200 línguas vivas, dentre estas, cerca de 170 são indígenas (autóctones) e mais de 30 são línguas de imigração (alóctones).
Por que então quase ninguém tem conhecimento disso? Simples, porque quando entramos em uma sala de aula qualquer outra língua que não a padrão é ignorada, ou melhor, dizendo, qualquer falante que a usa.

SOCIOLINGUÍSTICA E O ESTUDO DAS DIFERENÇAS

Mediante os fatos sociais, e levando em conta que os estudos da língua até então se referiam apenas a sua estrutura interna (linguística segundo Saussere), um grupo de linguistas dedicou-se a pesquisar a língua como fruto de transformações sociais, eis que surge a sociolinguística. Dentre os nomes que mais se destacou está Willian Labov (1927).
Enquanto Saussure opôs linguística interna e linguística externa,Labov as associa,apresentando a sociedade como essencial no ínterim das questões linguísticas. No entanto, ele esclarece que mesmo apresentando algumas diferenças, a sociolinguística é um ramo da linguística, e que, portanto não há ai uma distinção de ciências, onde ressalta : "Durante anos recusei-me a falar de sociolinguística, pois este termo implica que poderia existir uma teoria ou uma prática linguística fecunda que não fosse social". Assim, esta linha de pesquisa demonstra que a língua e o comportamento linguístico de seus falantes estão estreitamente ligados à cultura em que ocorrem.
Labov realizou um estudo sobre as relações entre linguagem e classe social, e sobre as variedades do inglês não-padrão usadas por diferentes grupos étnicos dos Estados Unidos, particularmente por negros e porto-riquenhos da cidade de Nova York. Ele desmistificou a lógica que atribuía à "privação linguística" as dificuldades de aprendizagem na escola, das minorias étnicas socialmente desfavorecidas, dificuldades que, segundo o estudioso, são criadas pela própria escola e sociedade em geral, e não pelo dialeto não-padrão falado por essas minorias.
Pesquisas sociolinguísticas a respeito do dialeto popular em várias regiões do Brasil mostram que a ausência de flexão de número e pessoa na concordância verbal não é um "erro" cometido "por ignorância", mas, ao contrário, evidencia a existência de uma regra aplicada de maneira sistemática e não aleatória; uma regra da gramática do dialeto popular. O mesmo acontece com as marcas de plural. Enquanto a língua padrão apresenta uma marca de plural para cada elemento variável de uma construção frasal, o português não padrão faz justamente o contrário, ele o "enxuga", como nos diz Marcos Bagno "[...] O português não-padrão é mais sóbrio, mais econômico, mais modesto, menos ?vaidoso?. Sua regra de plural é a seguinte: marcar uma só palavra para indicar um número de coisas maior que um".
Todas as línguas do mundo são sempre continuações históricas ? gerações sucessivas de indivíduos legam a seus descendentes o domínio de uma língua particular. As mudanças temporais são parte da história das línguas. No plano sincrônico, as variações observadas na língua são relacionáveis a fatores diversos: dentro de uma mesma comunidade de fala, pessoas de origem geográfica, de idade, de sexo diferente falam distintamente.
Não há casualidade entre o fato nascer em uma determinada região, ser de uma classe social e falar de certa maneira.
Mediante estas particularidades é que a sociolinguística busca derrubar as barreiras sociais que separam os indivíduos de uma comunidade, apontando as diferenças como um traço cultural, e não como uma deficiência, conclui Labov: "O serviço mais útil que os linguistas podem prestar hoje é varrer a ilusão da ?deficiência verbal? e oferecer uma noção mais adequada das relações entre dialetos-padrão e não-padrão."

DIFICULDADES DA ESCOLA: UM DESAFIO NO ENSINO DE LÍNGUA

Ficou claro o quanto a questão social influencia direta ou indiretamente na construção de uma sociedade mais justa e igualitária, e é unânime a opinião de professores e especialistas em educação que acreditam que tudo poderia ser diferente se o Brasil dispusesse de um sistema de educacional mais eficaz.
É na escola que as crianças aprendem as primeiras noções de cidadania, portanto, desde cedo devem ser alertadas sobre a necessidade de respeitar o ser humano, independente de suas diferenças. Nas situações de ensino de língua, a mediação do professor é fundamental: Cabe a ele mostrar ao aluno a importância que, no processo de interlocução, a consideração real da palavra do outro assume, concorde-se com ela ou não. Por um lado, porque as opiniões do outro apresentam possibilidades de análise e reflexão sobre suas próprias; por outro lado, porque, ao ter consideração pelo dizer do outro, o que o aluno demonstra é consideração pelo outro.
A grande questão de fato, é que muitos professores não conseguem trabalhar uma dinâmica de ensino eficaz no ensino de língua porque são "obrigados" a trabalhar com a gramática normativa, ou seja, encontram-se diante de um paradigma: ou ensinam as regras da língua tal qual determina à gramática, ou levam em conta a linguagem dos falantes e acabam por "ferir" a língua portuguesa. No quadro teórico de uma sociologia da educação que analise criticamente as relações entre a escola e a sociedade, percebe-se que a escola seleciona seus objetivos segundo os padrões culturais e linguísticos das classes dominantes.
Em sua obra "Por que (não) ensinar gramática na escola" , Sírio Possenti atenta para o fato de que todo falante da língua portuguesa consegue dominá-la, independente de sua classe social. Para ele, o ensino deveria ser direcionado a todos os alunos da mesma maneira, no sentido de que as variações sempre irão ocorrer, visto que é característica da língua sofrer modificações, mais que essas variações não impedem a nenhum aluno de que este consiga assimilar as regras de sua língua padrão. Aponta ainda (p.17) "[...] O problema do ensino do padrão só se põe em forma grave quando se trata do ensino do padrão a quem não o fala usualmente, isto é, a questão é particularmente grave em especial para alunos das classes populares."
È preciso desmistificar a idéia de que as pessoas economicamente desfavorecidas são também incapazes de adquirirem um bom aprendizado. Ensinar algo a alguém não significa forçá-lo a seguir uma linha de raciocínio comum a todas as outras pessoas, ensinar tem mais haver em propiciar condições favoráveis para que um indivíduo descubra em si próprio uma capacidade infinita de possibilidades e de enriquecimento intelectual.
Outro fator a se considerar é a falta de incentivo à valorização da cultura popular. Num país mestiço como o nosso, é lamentável que não haja ainda uma proposta educacional direcionada as línguas indígenas ou africanas, por exemplo. O sistema tenta mascarar essa carência ressaltando algumas vezes (geralmente no Dia do índio, ou da Consciência Negra) a contribuição do vocabulário destes povos, no entanto, se algum aluno chegar dentro da sala de aula e escrever numa redação "Era uma vez um curumim acaboclado", logo a professora vai chamar sua atenção e dizer imediatamente que aquilo está errado; eis ai outra questão que em muito dificulta o processo de aprendizagem: a língua falada é diferente da língua escrita.
As nossas gramáticas tratam, via de regra, as relações entre fala e escrita tendo como parâmetro a língua escrita. Esse procedimento cria uma postura polarizada e, por vezes, preconceituosa. Segundo Marcuschi (1993), "[...] Os gramáticos imaginam a fala como o lugar do erro, incorrendo assim no equívoco de confundir a língua com a gramática codificada". Ele ainda completa seu pensamento apontando outro equívoco bastante comum, que é o de associar a língua falada com certos níveis de realização da fala. Este tipo de erro dá origem à dicotomia: "[...] A fala não tem regras, é informal; já a escrita tem regras, é formal" . Incorreções como essas decorrem do fato de se associar a fala com um dos níveis de uso da linguagem, ou seja, toma-se a fala como sinônimo de informalidade.
Na verdade, tanto a fala como a escrita abarcam um continuum que vai do nível mais informal ao mais formal, passando por graus intermediários.
Assim, um mesmo indivíduo apresenta desempenhos diversificados quanto ao grau de formalidade/ informalidade, variando sua fala e/ou escrita.

A OUTRA FACE DA MOEDA: A ESCOLA E SUAS SOLUÇÕES

Mesmo ainda muito distante de ser uma potência no que diz respeito à educação, nosso país vem apresentando algumas melhorias frente à construção de uma escola mais justa e igualitária. Hoje, as salas de aula contam com uma imensa estrutura pedagógica a fim de capacitar seus professores para receberem todo e qualquer aluno, e ainda, ajudá-los a transformar cada um deles em cidadão crítico. Dentre os que mais contribuíram para este novo jeito de fazer escola, está, sem duvidas o grande Pedagogo Paulo Freire.
A obra de Paulo Freire tem por base a pedagogia crítico-educativa, tendo como eixo o homem enquanto sujeito inacabado, ela se expressa por uma educação militante, colada aos setores populares a aos marginalizados da sociedade capitalista, uma pedagogia libertadora. Esta visão Freiriana que algumas escolas tentam adotar tem elevado os índices de melhoria na leitura e na escrita dos estudantes. A proposta de Freire sempre primou por considerar as experiências que cada educando já traz de seu ambiente extra-escola, utilizando-as para estimular uma nova práxis educacional. Isso, em última instância, contraria o modelo de educação proposto pelos opressores: uma educação sem arestas, que desconsidera as diferenças entre os sujeitos, as desigualdades sociais, as características próprias de cada indivíduo, enfim, afirma supostamente iguais os diferentes.
Uma pesquisa mais recente e ampla, de 2008, mostra novos e melhores dados. Foram ouvidos 5.012 brasileiros, de 311 municípios em 27 Estados, ou seja, 92,3% da população nacional. Essa nova pesquisa mostra que a média anual de leitores com mais de 15 anos e com ao menos 3 anos de escolaridade passou para 3,7 livros.
A nova pesquisa mostra que 55% das pessoas entrevistadas se dizem leitoras e que o brasileiro lê 4,7 livros por ano, sendo que foram contados como leitores aqueles que leram ao menos 1 livro nos últimos 3 meses antecedentes à pesquisa. Os maiores leitores são os estudantes, já que os que estão fora da escola lêem cerca de 1 livro ao ano.
È bem verdade que esses dados não se referem especificamente ao processo ratificação das diferenças dentro das salas de aula, porém, entende-se que as crianças estão lendo mais por que encontraram na escola um espaço de incentivo para aprimorarem seus conhecimentos e descobrirem suas capacidades. O que antes era apenas privilégio de uma classe elitizada vem ganhando aos poucos espaço significativo na vida de pessoas, que para sociedade, eram taxadas de incapazes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim como o hábito de ler tornou-se algo popular, esperamos que daqui a alguns anos, pesquisas mostrem baixos índices de evasão escolar, já que mais crianças vão se interessar em ir à escola se nela não forem discriminadas ou humilhadas devido fatores sócio-econômicos.
Após as observações feitas sobre a questão da diferença linguística e suas barreiras no processo de ensino-aprendizagem, pode- se concluir que não existe língua fácil ou difícil "[...] Todas as línguas são estruturas de igual complexidade. Isto significa que não há línguas simples e línguas complexas, primitivas e desenvolvidas. O que há são línguas diferentes". , muito menos falantes que não conhecem sua língua mãe. O que ainda há em nosso país é uma educação que caminha a passos lentos rumo a um progresso que atinja a toda população, seja ele no âmbito educacional, ou principalmente sócio-econômico.
O preconceito social assume diversas facetas, nas questões linguísticas, ele ainda assume grandes proporções. Precisamos aceitar que o nosso português já possui status de língua, e que, portanto, temos uma língua brasileira, cheia de variações, de modificações e principalmente, carregada de cultura. Discriminar a língua é renegar nossas origens.
Diferença não é deficiência; A escola precisa pregar essa ideologia. È de suma importância que indivíduos conscientes sejam formados dentro das salas de aula, para que saiam capazes de transformar a realidade em que vivem, pois a única deficiência que realmente separa e distingui de forma desigual e injusta os seres de uma sociedade é o preconceito.

REFERÊNCIAS

BAGNO, Marcos. A língua de Eulália: novela sociolinguística/16. Ed. São Paulo: Contexto; 2010.
BASTOS, Núbia Maria Garcia. Introdução a Metodologia do Trabalho Acadêmico. Fortaleza, Nacional; 2008.
CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística, uma introdução crítica. São Paulo: Parábola; 2002.
GNERRE, Maurizie. Linguagem, Escrita e Poder. São Paulo: Martins Fontes; 1994.
LABOV, Willian. The Logic of Nonstandart English, 1969/Sociolinguistique, Paris. Ed.de Minuit; 1976. (Ed. BR: Padrões Sociolinguísticos, São Paulo: Parábola editorial, 2008.)
MARCUSHI, L.A. O Tratamento da oralidade no ensino de línguas/4. Ed. São Paulo: Núcleo; 1993.
POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas. SP: Mercado das Letras; 1996.
http://destaquein.sacrahome.net/node/348
http://sites.google.com/site/leituraereleitura/indice-de-leitura-no-brasil/.com



















































Autor: Maiele Maria Cristina Araújo


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