Vidas Secas: Uma Análise Semiótica Da 'Mudança'



1 – A TEORIA SEMIÓTICA

1.1 – O que é Semiótica?

Semiótica é a teoria ligada à Lingüística que estuda o signo verbal e o não-verbal. Tem por objetivo o texto e procura descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz. Nota-se que o mais relevante nessa teoria é o sentido, que está diretamente ligado às condições de produção, por isso um discurso pode mudar de sentido de acordo com a história e com o momento.

1.2 – Quais as preocupações da Semiótica?

Segundo Diana Luz Pessoa de Barros, um texto define-se de duas formas que se complementam: pela organização ou estruturação que faz dele um “todo de sentido”, como objeto da comunicação que se estabelece entre um destinador e um destinatário; e pelo objeto de comunicação entre dois sujeitos (...) inserido em uma sociedade e determinado por formas ideológicas específicas. (1990, p. 7). Nota-se que a Semiótica se preocupa com a análise interna do texto, desprezando a externa. Por isso ela trata de examinar os procedimentos utilizados na organização do texto e os mecanismos enunciativos de produção.

Ainda segundo Barros, a Semiótica (...) propõe como primeiro passo para análise, que se faça abstração das diferentes manifestações – visuais, gestuais, verbais ou sincréticas – e que se examine apenas seu plano de conteúdo (idem, p.8). Esse plano de conteúdo é concebido, pela Semiótica, sob a forma de “percurso gerativo de sentido”.

1.3 – Etapas do percurso gerativo de sentido

A noção de percurso gerativo de sentido é fundamental para a teoria semiótica. Esse percurso apresenta basicamente três níveis:

a) nível fundamental: simples e abstrato, abriga as categorias semânticas que formam a base do texto narrativo, nesse nível devem ser analisadas as oposições temáticas, a euforia ou a disforia e os aspectos positivos e negativos;

b) nível narrativo: organiza a narrativa do ponto de vista de um sujeito, analisa o esquema narrativo, nesse nível se analisam as ações, os enunciados de estado e de fazer e o percurso narrativo;

c) nível discursivo: a narrativa é assumida pelo sujeito da enunciação e relaciona-se com o texto-enunciado, nesse nível se analisam as relações entre enunciador (autor) e enunciatário (leitor) e os temas, revestidos em percursos figurativos.

1.4 – Terminologia da Semiótica

Vale lembrar que essa teoria usa uma terminologia específica para alguns casos. Narrador é chamado de enunciador, leitor é o enunciatário, o sujeito e o objeto das ações são os actantes, os personagens, geralmente, são chamados de atores. Portanto empregaremos essa terminologia em alguns casos. Vamos, então, analisar esses três níveis do percurso gerativo de sentido presentes no capítulo “Mudança”, o capítulo que abre a obra Vidas Secas.

2 – NÍVEL FUNDAMENTAL

Este nível abriga as categorias semânticas que formam a base do texto narrativo. Analisam-se as oposições temáticas e os aspectos positivos ou eufóricos e os aspectos negativos ou disfóricos.

2.1 – Oposições fundamentais

Ao começarmos a análise semiótica, no nível fundamental, do capítulo que abre a obra Vidas Secas, denominado Mudança, é preciso determinarmos a oposição semântica a partir da qual se constrói o sentido do texto. Esse capítulo abre a trajetória da família do vaqueiro Fabiano, formada pelo patriarca, a mulher sinhá Vitória, o filho mais novo, o filho mais velho, a cachorra Baleia e o papagaio, que fogem da seca em busca de terras mais férteis, de trabalho e de uma vida melhor. A narrativa se desenvolve de forma extremamente pessimista, a morte ronda a família o tempo todo. Podemos perceber algumas oposições claras no capítulo: vivência x sobrevivência, céu estrelado x terra seca, sonho x realidade e homem x bicho. Mas a oposição fundamental do capítulo, sem dúvida, é vida x morte.

A oposição vivência x sobrevivência manifesta-se, em especial, na caracterização dada pelo enunciador à família de Fabiano: “eram seis viventes, contando com o papagaio” e no presente que a cachorra Baleia deu à família: um preá que serviria para saciar a fome por algumas horas e seria dividido entre todos os membros, inclusive a própria cachorra. Embora “ainda” estivessem vivos, era muito grande a luta para se manterem nesse estado, diante da terra seca, da míngua vegetação e da falta de comida. Ainda nessa oposição, podemos destacar o papagaio, que até então era companheiro e passa a condição de alimento para o grupo, após sua morte.

Já a oposição céu estrelado x terra seca manifesta-se de fora concreta no momento em que Fabiano “cavou a terra seca em busca de água, esperou que ela marejasse e bebeu-a, depois deitou-se, saciado, e olhou as estrelas se formarem no céu”. Nesse momento, o narrador afirma que uma alegria doida encheu o coração de Fabiano. A partir desse fato, manifesta-se a oposição sonho x realidade: Fabiano fica deitado, observando as estrelas e sonhando que “a catinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao normal, os meninos, gordos, brincariam no chiqueiro, sinhá Vitória vestiria saias de ramagens vistosas, as vacas povoariam o curral e a catinga ficaria toda verdade”. Nota-se a presença marcante dos verbos no futuro do pretérito, responsáveis pelo plano do sonho em oposição ao contato dele com a terra seca, a realidade que o cercava. Nessa oposição, podemos definir duas ordenações: realidade → não realidade → sonho e o percurso contrário, sonho → não sonho → realidade. Nessas ordenações, podemos associar a não realidade ao fato de Fabiano querer e não poder, e o não sonho ao fato de Fabiano lembrar-se de que sua família estava com sede, esperando que ele levasse a água. Pode-se dizer que esta oposição marca uma repentina transformação no estado do personagem.

A oposição homem x bicho aparece com freqüência no capítulo: os membros da família, caminhando em busca de um lugar melhor, são como bichos à procura de alimento. “O vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos”, nesse fragmento, os membros da família são os bichos moribundos, rodeados por urubus. A atitude de sinhá Vitória, descrita pelo narrador neste trecho “sinhá Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo”, nota-se uma inversão de papéis: quem é o animal? Sinhá Vitória ou a Baleia? Nesta oposição, também podemos definir duas ordenações: homem → não homem → bicho e o percurso contrário, bicho → não bicho → homem. Nessas ordenações o não homem é representado por sinhá Vitória, enquanto que o não bicho, pela cachorra Baleia. A isso podemos chamar, respectivamente, de zoomorfismo e antropomorfismo.

Analisemos, então, a principal das oposições presentes nesse capítulo: vida x morte. A família de Fabiano, nesse momento, à procura de um lugar melhor, está muito perto da morte, embora ainda vivam. A morte os espreita o tempo todo, a cena descrita é rica em adjetivações tenebrosas, fúnebres: “[...] a catinga, onde avultavam as ossadas e o negrume dos urubus”, [...] pensou nas ossadas, nos urubus [...]”, são alguns exemplos. Mas o mais marcante, sem dúvida, é a descrição do filho mais velho de Fabiano, moribundo, assim feita pelo enunciador: “[...] pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados no estômago, frio como um defunto [...] agarrou os bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos”. A cena aqui descrita é o ápice da oposição vida x morte: é um momento de grande tensão na narrativa: o filho mais velho, completamente debilitado, não conseguia mais andar e Fabiano pensou em abandoná-lo ali, largá-lo aos urubus. Fabiano, então, muda de idéia, pega o filho no colo e seguem viagem. Podemos definir, nesta oposição as seguintes ordenações: morte → não morte → vida, sendo a não morte representada pela decisão de Fabiano de levar o filho consigo.

É interessante notar, nesse capítulo, que a família de Fabiano, desesperançosa em relação à vida, volta a ter um pouco de esperança ao encontrar uma fazenda abandonada. Nesse momento, o enunciador descreve a ressurreição da família. Estava ali um resto de esperança que poderia mudar o destino daqueles viventes. Volta o plano do sonho. “As cores da saúde voltariam à cara triste de sinhá Vitória [...] a catinga ficaria verde”. Até a cachorra baleia manifesta sua esperança: “Baleia agitava o rabo [...]”, sonhando com dias melhores.

2.2 – Euforia x disforia: aspectos positivos e negativos

O nível fundamental do percurso gerativo de sentido ainda é determinado por categorias eufóricas ou positivas e disfóricas ou negativas. No capítulo em análise, isso é facilmente percebido. Há um predomínio muito grande dos aspectos negativos, marcados pela disforia da família de Fabiano. A caminhada desesperançosa através de paisagens marcadas pela seca, a fome constante, o sol ardente, a pele avermelhada, a sede, a debilidade do filho mais velho, a morte do papagaio e o desânimo total são os aspectos disfóricos desse trecho da narrativa.

No final do capítulo, a família de Fabiano chega a uma fazenda abandonada, com um curral deserto, o chiqueiro de cabras arruinado, a casa fechada, um deserto total, anunciando o abandono daquele lugar. Decidiram, então, ficar por ali. Entraram na casa, ajuntaram as poucas coisas no chão e assaram um preá caçado por Baleia. Ali seria a nova moradia deles. Renascia, assim, a esperança. Esse momento é descrito pelo narrador como uma ressurreição. Surgem, assim, os aspectos eufóricos e positivos desse capítulo da narrativa. É interessante notar que esses aspectos positivos são marcados exatamente pela descrição negativa da fazenda aonde os retirantes chegaram.

3 – NÍVEL NARRATIVO

Neste nível, denominado “nível das estruturas narrativas”, as oposições vistas no nível anterior, o fundamental, são assumidas como valores pelo sujeito, o actante, aquele que age, que transforma a seqüência narrativa, e circulam entre sujeitos, graças à ação também de sujeitos. Segundo a teoria semiótica, há nesse nível dois tipos de enunciados: de estado e de fazer. Isso se dá através do chamado percurso canônico: manipulação, competência, perfórmance e sanção. As transformações ocorridas através das ações do sujeito e do objeto dão a narratividade ao texto.

3.1 – Enunciados de fazer

No capítulo em análise, pode-se observar que o enunciador prioriza as descrições, para que seu enunciatário possa ter uma visão ampla do ambiente hostil provocado pela seca. Por isso, há poucas ações no capítulo. Essas ações não são determinadas pelos personagens, ou seja, tem-se a impressão de que eles são carregados pelo destino trágico e fatal e pela própria seca. Esta pode ser vista como a principal actante da narrativa, é ela que manipula os personagens, obriga-os à mudança, à caminhada pela paisagem árida e morta, em busca de vida.

Nesse capítulo, a única ação efetivamente praticada, conduzida pela própria personagem é o momento em que Fabiano se redime de um pensamento ruim, se refaz como homem e, em vez de abandonar o filho mais velho aos bichos do mato, pega-o no colo e segue viagem. Nota-se que é o único momento em que o personagem não é manipulado por forças exteriores, mas sim pela própria consciência, pois essa ação partiu dele mesmo.

A manipulação, citada na teoria semiótica, dá-se de forma interessante: a natureza manipula as ações dos personagens. Ela transforma seus estados, por isso pode ser vista como um sujeito das ações. Os “viventes” não são sujeitos do agir. Isso fica claro em várias passagens da história. “Levantaram-se todos gritando”, indica o momento em que a cachorra Baleia traz nos dentes um preá, que serviria de alimento ao grupo e adiaria a sua morte. No momento em que o preá está “chiando” no espeto, o enunciador afirma “eram todos felizes”. Esse estado, embora passageiro, é provocado pela ação da natureza. Até a cachorra, em estado de antropomorfização, age diante do fato: “Baleia agita o rabo, olhando as brasas.”

Merece destaque, não só nesse capítulo, mas no restante da obra, uma não-ação: os personagens não conseguem se comunicar entre si, cada um tem sua vida particular. O pouco que falam são expressões reduzidas, “raramente soltavam palavras curtas”, “sinhá Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis”; ou xingatórios, “anda, condenado do diabo”, “anda, excomungado”. Estas duas últimas são as únicas falas em discurso direto do capítulo.

3.2 – Enunciados de estado

Há, no capítulo, algumas transformações de estado, embora passageiras, mas que merecem destaque. A principal delas vai do início do capítulo, quando os “viventes” encontram-se em estado total de desesperança, aguardando a morte, perdendo o pouco que ainda restava de esperança e que os alentava. Já no final do capítulo, ao tomarem posse da fazenda abandonada, ocorre essa mudança de estado. Embora ainda estivessem no meio de um deserto árido, aquela fazenda, que aparecera no caminho deles, era o que faltava para dar um pouco de ânimo e esperar por dias melhores. Volta o plano do sonho: “Fabiano seria o vaqueiro, para bem dizer, seria o dono daquele mundo”.

Os enunciados de estado marcam a relação de junção – conjunção e disjunção – de um sujeito em relação a um objeto. Da conjunção para a disjunção ocorre a narrativa mínima de privação: os “viventes” queriam uma terra fértil, comida, água, boas condições de vida, mas foram privados disso. Já da disjunção para a conjunção ocorre a narrativa mínima de aquisição: eles conseguem parte do que queriam, ocorre a ressurreição da família.

Há, no capítulo, outros momentos de privação e de aquisição. De privação, quando o papagaio morre e priva a família de sua companhia. Sentiam a falta da gaiola sobre o baú que sinhá Vitória carregava, mas não se sentiam culpados por terem se alimentado dele, já que justificam a decisão declarando que o papagaio era inútil e mudo. Talvez ser inútil justifique, mas mudo, não, pois toda a família era muda.

E o outro momento de aquisição também é marcado por um animal: o preá caçado por Baleia e que também serviria de alimento para a família. É interessante notar que esses momentos distintos – privação e aquisição – estão diretamente ligados a bichos que servem de alimento para os “viventes”. Alimentar-se do papagaio privou-lhes sua companhia; alimentar-se do preá, deu-lhes mais um tempo de vida.

3.3 – Percurso canônico

Ocorre nas narrativas complexas e se dá em quatro níveis: a manipulação, formada por situações de dever fazer – tentação e intimidação – e de querer fazer – sedução e provocação; a competência, atribuída ao sujeito responsável por realizar a transformação, ele ser dotado de um saber e/ou de um poder; a perfórmance, que é fase em que se dá a transformação e a sanção, reconhecimento através de um prêmio ou de um castigo.

A narrativa em análise não é complexa, por isso não se evidencia claramente o percurso canônico. Mas é possível notar algumas de suas partes, se considerarmos a transformação mais importante do capítulo em estudo, já que seu título é “Mudança”: o estado inicial de degradação e próximo da morte e o estado final de reencontro com a vida.

Para essa transformação, podemos destacar no nível da manipulação a “tentação”, já que os “viventes”, ao partirem atrás de terras melhores, vão em busca de um prêmio: a vida. No nível da competência, o sujeito responsável por realizar a transformação é o próprio acaso, dotado de um poder natural, coloca à frente deles uma fazenda abandonada. No nível da perfórmance, a principal parte da narrativa, ocorre a transformação: Fabiano decide hospedar ali a família e tornar-se o vaqueiro do lugar. E, por fim, no nível da sanção, a família recebe o prêmio: a vida.

3.4 – A modalização na semântica narrativa

No percurso gerativo, a semântica narrativa é o momento em que os elementos semânticos são selecionados e relacionados com os sujeitos. Para isso, esses elementos inscrevem-se como valores, nos objetos, no interior dos enunciados de estado (BARROS, 1990, P. 42). Barros afirma que, na semântica narrativa, temos duas modalizações: do ser e do fazer. A modalização de enunciados de estado é também denominada “modalização do ser” e atribui existência modal ao sujeito de estado. A modalização de enunciados de fazer è responsável pela competência modal do sujeito do fazer, por sua qualificação para a ação [...] (BARROS, 1990, pp. 42, 43). A autora afirma, ainda, que tanto na modalização do ser quanto na do fazer há quatro modalidades: o querer, o dever, o poder e o saber.

3.4.1 – Modalização do ser

Essa modalização prevê o querer ser, o dever ser, o poder ser e o saber ser. No capítulo em análise de Vidas Secas, podemos notar a constante presença do “querer ser”, que se relaciona a Fabiano: ele quer ser como seu Tomás da Bolandeira, antigo patrão. Quer ter uma propriedade, um trabalho rentável e uma vida confortável. Mas ele não consegue. Surge, assim, a modalidade do não poder ser. A vida passa a ser o objeto de desejo de Fabiano, entretanto ele não a tem como queria. Conseqüentemente, insere-se no plano do sonho, só assim consegue o que quer. Volta, então, à realidade e ao não poder ser.

3.4.2 – Modalização do fazer

Essa modalização prevê o querer fazer, o dever fazer, o poder fazer e o saber fazer. Primeiramente, podemos afirmar que o saber fazer não faz parte da vida de Fabiano. Ele nunca sabe nada, nunca sabe o que fazer para melhorar suas condições de vida. Mas ele tem vontade, ele quer fazer, quer ressuscitar a catinga, quer plantar sementes no curral, quer fazer a velha e abandonada fazenda renascer. Entretanto, o que se nota é o não poder fazer. Fabiano sente-se incapaz de fazer o que quer. Assim, ele também fica sem saber o que deve fazer: esperar ou ir atrás de algo melhor. A espera de Fabiano, aqui citada, será vista na chamada “Semiótica das Paixões”, a seguir analisada.

3.5 – Semiótica das Paixões

As paixões, do ponto de vista da semiótica, entendem-se como efeitos de sentido de qualificações modais que modificam o sujeito de estado. Essas qualificações organizam-se sob a forma de arranjos sintagmáticos de modalidades ou configurações passionais (BARROS, 1990, p. 470). Como se sabe, em uma narrativa, o sujeito ocupa diferentes posições passionais, ou seja, diferentes estados, por exemplo, ele pode ir de um estado de disforia para um estado de euforia ou vice-versa. Essas diferenças de estado são chamadas, pela Semiótica, de “paixões”. As paixões podem ser complexas ou simples. Estas resultam de um único “arranjo modal”, enquanto aquelas são efeitos de uma configuração de modalidades, que se desenvolvem nos vários percursos passionais (BARROS, 1990).

É possível notarmos a presença de algumas paixões na trajetória de Fabiano, em Vidas Secas, em especial no primeiro capítulo, objeto desta análise. Essas paixões decorrem da modalização pelo querer-ser, quando o sujeito quer o objeto-valor. Neste caso, Fabiano é o sujeito, que quer um objeto-valor: uma vida melhor. Esse objeto-valor é sua “cobiça”. Caso o sujeito não a conquiste, ele passa a um estado de frustração ou decepção. Podemos notar que Fabiano não chega a experimentar esses estados, pois sua cobiça está muito além de ser alcançada, ele tem consciência de que seu objeto-valor está muito distante. Isso por um lado é bom, pois não lhe traz sentimentos de decepção ou frustração. Ele passa ao tempo em estado de “espera”, já citado anteriormente.

Esse estado de “espera” parece ser permanente na vida de Fabiano. Ele espera, pacientemente, a chuva, a comida, o trabalho, a terra, a vida melhor, tudo o que lhe cabe de direito. Mas ele sabe que não conseguirá, embora manifeste, esporadicamente, sentimentos de esperança. Aliás, a esperança de Fabiano está ligada ao próprio radical da palavra: esperança vem de “esperar”. E assim, ele vai mantendo a esperança. Essa esperança fica bastante em evidência na cena final do capítulo em estudo, já que a velha fazenda abandonada poderia mudar a vida dos retirantes.

Segundo Greimas (1983, apud BARROS, 1990, p. 49) o estado inicial do percurso das paixões complexas é denominado de estado de espera. A espera define-se pela combinação de modalidades, pois o sujeito deseja um objeto (querer-ser), mas nada faz para consegui-lo e acredita (crer-ser) poder contar com outro sujeito na realização de suas esperanças ou na obtenção de seus direitos. Sendo assim, temos em Fabiano um exemplo literal dessa paixão: ele quer algo, mas não faz nada para conquistá-lo, e ainda espera que um outro sujeito – no caso a própria natureza ou até o acaso – lhe traga seu objeto-valor. Ele tem total confiança no outro. É como se existisse um “contrato imaginário”: não é preciso fazer, basta esperar que o outro faça. Fabiano atribui a um outro sujeito – a natureza – o “dever-fazer”, permanecendo, assim, em constante estado de espera.

Entre as paixões simples, que decorrem da modalização pelo querer-ser, podemos, ainda destacar duas: a “aflição”, que é o querer-ser, mas o saber poder não ser, e a “felicidade”, que é o querer-ser e o saber poder ser. Esta última é passageira, já que esse estado surge com a esperança de uma vida nova na fazenda, tão desejada por Fabiano e sua família, mas que vai voltando ao estado inicial com o desenrolar dos próximos capítulos da narrativa.

4 – NÍVEL DISCURSIVO

A última etapa do percurso gerativo é o nível das estruturas discursivas, que devem ser analisadas a partir das relações entre a enunciação, responsável pela produção do discurso, e o texto-enunciado. Neste nível, analisam-se os efeitos de ilusão e de subjetividade produzidos pelo sujeito da enunciação. Além disso, as oposições fundamentais, assumidas no nível fundamental (v. cap. 2), desenvolvem-se sob a forma de temas e concretizam-se por meio de figuras, ou seja, os temas são revestidos de percursos figurativos (BARROS, 1990).

Este é o nível mais superficial do discurso, pois suas estruturas são mais específicas, complexas e ricas semanticamente do que as duas estruturas anteriores – fundamentais e narrativas. Podemos dizer que o nível discursivo é a narrativa “enriquecida” e que “analisar o discurso” é determinar as condições de produção do texto. Neste nível que se estabelecem as relações entre enunciador e enunciatário, pois o discurso define-se como objeto de comunicação entre um destinador e um destinatário (idem, 1990).

4.1 – Percursos figurativos

Consistem em analisar as figuras concretas que vão aparecendo ao longo da narratividade. No capítulo analisado de Vidas Secas, podemos observar uma série de figuras utilizadas pelo enunciador para criar os efeitos de ilusão e subjetividade. A primeira figura que merece destaque, logo no início do capítulo, são os juazeiros. Essas árvores simbolizam a esperança em encontrar um bom lugar para viver, “os juazeiros alargavam duas manchas verdes”. Eles são uma espécie de guia para os retirantes, pois assim que são vistos ao longe, os “viventes” se arrastam em direção a eles. Em seguida, essas figuras se compõem em forma degradativa “os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se”, simbolizando, novamente, a falta de esperança.

Nesse momento, Fabiano é assim descrito pelo enunciador: “sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro”. É interessante notar, que essa mesma descrição é feita no último capítulo da obra, denominado “Fuga”, que narra a nova retirada da família. A repetição da descrição nos remonta ao fato de que, mesmo após tanto tempo naquele lugar, as coisas voltam a ser como eram no começo: sem trabalho, sem comida, sem água e sem saber o que fazer.

Esse capítulo é bastante colorido. A catinga é vermelha, cheia de manchas brancas. O vermelho é caracterizado como “indeciso”, pois com tanta seca, a terra já não sabe mais qual é sua cor predominante. Já as manchas brancas são as ossadas dos animais mortos pela seca. Nesse momento, aparece uma sinestesia muito interessante “voando” sobre as “manchas brancas”: “o vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos”. É possível notar, nessa passagem, a presença da morte, figurada e representada pelos urubus.

Uma outra figura bem forte é o “obstáculo miúdo”, termo usado pelo enunciador para se referir ao filho mais velho, no momento em que Fabiano pensa em abandoná-lo aos bichos. O obstáculo simboliza a dificuldade em continuar a marcha, o miúdo simboliza a fome, a debilidade e a morbidez da cena descrita. O momento é de tensão. Fabiano, pensativo, “coça a barba ruiva e suja”, examina os arreadores. “Sinhá Vitória estira o beiço indicando vagamente uma direção”, isso dá à cena um tom de grande expectativa. A ação de “estirar o beiço” simboliza a fala de sinhá Vitória, que pode ser assim interpretada: nem pense nisso, pegue-o, vamos, falta pouco. Volta, então, a figura simbólica dos juazeiros. “Sinhá Vitória aprovou esse arranjo, [...] designou os juazeiros invisíveis”. Eles são invisíveis, porque não existiam de verdade, só na imaginação, eles queriam muito que os juazeiros existissem, pois teriam a certeza de que haviam encontrado um bom lugar para ficar.

Na verdade, esses juazeiros existiam, tornaram a aparecer, simbolizando uma mudança no estado do personagem: “Fabiano aligeirou o passo, esqueceu a fome, a canseira e os ferimentos”. Surge, então, a figura da “cerca”, que “o encheu de esperança de achar comida”. A cerca, na cena, é sinal de comida, pois poderia indicar a presença de outros seres vivos que os pudessem ajudar. Ela, também, assume a função de "estrela-guia", já que os retirantes a acompanharam e, subindo uma ladeira, chegaram aos juazeiros. Agora, eles simbolizam o descanso merecido: “fazia tempo que não viam sombra”.

Vem, então, um momento de “desumanização”: “sinhá Vitória acomodou os filhos, que arriaram como trouxas, cobriu-se com molambos”. Esses molambos, que são panos velhos, sujos e rasgados, envolveram os filhos, desumanizados como trouxas, figurando um incômodo necessário, aquilo que atrapalha, mas não tem como se livrar. O filho mais velho, debilitado, mal tinha forças para abrir os olhos e ver se havia sinais de mudanças. Cabe, então, à cachorra Baleia, o papel da humanização: ela se encarrega de sair à procura de comida. “Baleia arrebitou as orelhas, arregaçou as ventas, sentiu cheiro de preás, farejou um minuto [...] e saiu correndo”. Essa cena atribui à cachorra o papel de provedor da família.

Com o “jantar” garantido por Baleia – ela capturou um preá e, incrivelmente não o devorou sozinha, levou-o para dividi-lo com a família – Fabiano se encarrega de conseguir água, para acompanhar. Nesse momento, figura-se uma ilusão muito interessante. Após cavar a areia com as unhas e encontrar um pouco de água, ele fica a observar as estrelas que iam nascendo. A princípio, isso deveria se configurar em um paradoxo, já que, embora belas e brilhando no céu, simbolizavam a falta de chuva e a seqüência da seca. Mas uns cirros – nuvens escuras – se formaram no poente, enchendo Fabiano de alegria. Eis o paradoxo da seca.

Enquanto os cirros animavam Fabiano, fazendo-o crer que, em breve, choveria, ele recordou-se da bolandeira de seu Tomás, o antigo patrão. Imaginou que o ex-patrão também fugira da seca e abandonara a bolandeira. Essa passagem ganha uma conotação bem forte ao configurar-se Fabiano como sendo a própria bolandeira, parada, inútil, abandonada, sem serventia, perdida num deserto árido, esperando o fim. “E ele, Fabiano, era como a bolandeira. Não sabia porquê (sic), mas era”. O percurso figurativo, nessa passagem, caminha entre o querer e o ser. Fabiano queria ser seu Tomás, mas era apenas a bolandeira. A carga semântica atribuída à bolandeira coloca Fabiano na condição de “coisa”, ocorre o chamado processo de “coisificação”. E, o que é pior, uma coisa inútil, sem serventia, o que lhe tira, ainda mais, a condição de “homem”.

Dentro do plano figurativo sintático, cabe destacar a importância de duas repetições significativas: a do nome de sinhá Vitória e dos verbos no futuro do pretérito do indicativo. “A cara murcha de sinhá Vitória remoçaria, as nádegas bambas de sinha Vitória engrossariam, a roupa encarnada de sinhá Vitória provocaria inveja das outras caboclas”. Podemos centralizar essa repetição, inicialmente, em dois pontos básicos: o querer e o sonhar. Fabiano quer uma mulher diferente daquela que tem, mais bonita, mais feminina, mais sensual, objeto de desejo e de prazer, e ele insiste nessa idéia. Fabiano cria várias imagens de uma só mulher, aquela que sempre quis ter ao seu lado. Mas ele tem consciência, ao mesmo tempo, de que isso é apenas um sonho, mas que se realizará.

Também merecem destaque, no percurso figurativo, os elementos da natureza. Vamos elencá-los conforme a descrição do próprio enunciador: o céu estrelado, a lua branca e grande, a catinga rala, a planície avermelhada, os galhos pelados dos juazeiros, as folhas secas, as plantas mortas, um bosque de catingueiras murchas, o sol quente, o poente vermelho, o deserto queimado, a fazenda morta e a noite clara. É interessante notar que há predominância das características negativas da natureza. Aquelas consideradas positivas pelo senso comum, como o céu estrelado, a lua branca e grande, o sol quente e a noite clara, assumem valores negativos. Para Fabiano, era sinal de que não choveria, a seca e a fome não iriam dar uma trégua. A situação vivida pela família de Fabiano é tão trágica, que até os elementos mais belos da natureza, deixam-no de ser, por simbolizarem a seca que os castigaria ainda mais. Vejamos esta passagem do capítulo: “aquele azul que deslumbrava e endoidecia a gente”. É possível notar a presença simultânea do aspecto positivo – deslumbrava – e do negativo – endoidecia.

4.2 – Sintaxe discursiva

O sujeito da enunciação faz uma série de opções para projetar o discurso, tendo em vista os efeitos de sentido que deseja produzir. [...] os mecanismos discursivos têm, em última análise, por finalidade criar a ilusão de verdade. Há dois efeitos básicos produzidos pelos discursos[...]: o de proximidade ou distanciamento da enunciação e o de realidade ou referente (Barros, 1990, pp. 54-55). Diante dessa teoria, é fácil notar que o sujeito da enunciação no capítulo de abertura de “Vidas Secas” utiliza-se de vários mecanismos para projetar seu discurso. No entanto, são dois deles que merecem ser destacados: o uso acentuado do discurso indireto livre e o emprego repetitivo e seqüencial de verbos no futuro do pretérito do indicativo.

O discurso indireto livre serve para criar a ilusão de verdade nos personagens. Vamos destacar algumas passagens em que ocorre esse tipo de discurso: “Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato”, discurso de Fabiano ao decidir levar o filho mais velho, na verdade não era isso que ele queria. “Não podia deixar de ser mudo”, discurso de sinhá Vitória para justificar o fato de eles terem aproveitado o papagaio como alimento. “Faziam tempo que não viam sombra”, discurso de Fabiano ao encontrar os juazeiros, aquela sombra era apenas uma ilusão, ela não acalmaria os males. “Certamente o gado se finara e os moradores tinham fugido”, discurso de Fabiano ao vasculhar a fazenda a que chegaram e da qual pretendia tomar posse. Na verdade, ele queria que houvesse alguém por ali para oferecer-lhes comida. “Ia chover. Bem”, discurso introspectivo de Fabiano, após observar a lua cercada de um halo cor de leite. Na verdade, Fabiano queria que chovesse e queria muito acreditar nisso., criando-lhe a ilusão da verdade.

Esse último discurso citado de Fabiano vai iniciar o segundo mecanismo a que nos referimos anteriormente: o do uso dos verbos no futuro do pretérito. Após ter convicção de que choveria, ele começa a imaginar: “a catinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral, [...] chocalhos de badalos de ossos animariam a solidão, os meninos, gordos, vermelhos, brincariam no chiqueiro das cabras, sinhá Vitória vestiria saias de ramagens vistosas, as vacas povoariam o curral e a catinga ficaria toda verde”. A escolha desse tempo verbal pelo enunciador [tem por objetivo introduzir o plano do sonho, que nessa passagem se confunde com delírio. Diante daquela dramática cena de miséria e fome, Fabiano apenas sonhou com dias melhores ou já estava delirando? O uso das formas verbais ratificam os dois efeitos básicos teorizados por Barros (1990, pp. 54-55)

4.3 – Outras figuras analisadas

Ao analisarmos o capítulo inicial – “Mudança” – e associá-lo ao último – “Fuga” – podemos notar que o sujeito da enunciação utiliza alguns mecanismos interessantes de significação. Através do percurso figurativo, ele inverte os títulos atribuídos aos capítulos em questão. É possível notar que, no capítulo em que ele se propõe a anunciar a “mudança” da família de Fabiano, afirma o seguinte: “Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se [...], ou seja, eles são “fugitivos”, estão fugindo de algo ou de alguém. Já no capítulo final da obra, ao propor anunciar a “fuga” da família, o enunciador afirma: “Arrastara-se até ali na incerteza de que aquilo fosse realmente uma mudança”, ou seja, os retirantes estão de mudança para a cidade. Assim se procede, então, a inversão de títulos. Essa inversão, na verdade, tem por objetivo juntar o primeiro capítulo ao último e ratificar a condição de retirantes da família de Fabiano: por mais que queiram buscar uma vida melhor, o destino e as condições de vida sempre continuarão o mesmo.

Há de se destacar a presença de outras figuras que adquirem sentidos. No momento em que Fabiano decide não abandonar o filho mais velho aos bichos, o enunciador descreve assim: “Entregou a espingarda a sinhá Vitória, pôs o filho no cangote, levantou-se [...]”. Essa cena se assemelha ao momento em que um caçador, após abater sua caça, põe-na sobre os ombros e a carrega, como um prêmio. Nota-se, mais uma vez, o processo de animalização do ser humano, presente em grande parte da obra. O filho mais velho é a caça abatida.

No trecho “Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio [...]” o sujeito da enunciação faz um “flash-back” ao dia anterior e anuncia a morte do papagaio. É interessante notar que o enunciador sente pena do papagaio – “coitado” – por ter morrido. Mas ele não se compadece dos demais membros da família, só porque ainda estão vivos – “viventes” – embora sofressem muito mais que o pobre papagaio, cujo sofrimento já chegara ao fim.

Outra figura que merece destaque é a forma poética como a cachorra Baleia é tratada no processo de narratividade. Neste capítulo, em especial, ela protagoniza uma cena ímpar, digna de um ser humano que sabe conviver em uma sociedade grupal: dedica-se, preocupa-se com os outros, doa-se, compartilha e humaniza-se. Após caçar um preá, leva a “caça mesquinha, mas que adiaria a morte do grupo” para ser dividida entre os viventes, entre a sua família. Essa ação não é natural. Um animal, na verdade, não teria feito isso. Ele devoraria a presa em uma só abocanhada, ainda mais com a fome que estava sentindo. E o mais interessante é que Baleia se contentaria com pouco. “Baleia , o ouvido atento, o traseiro em repouso e as pernas da frente erguidas, vigiava, aguardando a parte que lhe iria tocar, provavelmente os ossos do bicho e talvez o couro.”

Essa cena é de grande sensibilidade poética. E assim encerra o capítulo: “Baleia agitava o rabo, olhando as brasas. E como não podia ocupar-se daquelas coisas, esperava com paciência a hora de mastigar os ossos. Depois iria dormir.” A ação física é natural de um cachorro, mas a ação psicológica é puramente humana. O sujeito da enunciação, assim, faz com que o leitor se apaixone pela cachorra e torça por ela nos capítulos seguintes. E lógico, sofra junto com a família a morte de Baleia.

REFERÊNCIAS

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 45ª ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 1980.

BARROS, Diana luz pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. 1ª ED. São Paulo: Ática, 1990.


Autor: Wagner Torlezi


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