Contos de fadas sem fantasias



Era uma vez um mundo onde as crianças ouviam contos de fadas, algumas dessas crianças cresceram sonhando com príncipes encantados e finais felizes, outras sonharam encontrar tesouros escondidos e lutar vitoriosamente contra dragões, gigantes e bruxas; muitas delas se identificavam com o personagem oprimido que sempre é recompensado no final por sua conduta, outras vezes desejaram ser o vilão cheio de poderes mágicos e riquezas. As crianças hoje - já adultas - não escutam mais estórias infantis, não dormem ao som da voz que conta o conto de fadas. As crianças cresceram, e agora como está à vida delas? Será que o mundo da fantasia influenciou de algum modo para que suas vidas tivessem o final feliz dos personagens bonzinhos ou um fracasso iminente dos vilões indesejados? Ou nada aconteceu por influencia do mundo magico oferecido por meio dos contos de fadas? Hoje ainda as estórias começam com uma narrativa no passado que denotam que um dia existiu e não existe mais, "era uma vez" todas as crianças que um dia foram os telespectadores, os ouvintes e leitores dos contos, mas a questão é como estão elas ou se o final foi "feliz".
Quem nunca ouviu falar de personagens como: "branca de neve", "os três porquinhos", "chapeuzinho vermelho", "Pinóquio" e muitos outros que recheiam a imaginação das crianças com suas aventuras num mundo de fantasias onde o bem sempre prevalece. Será que essas estórias têm influencia no comportamento dos que foram submetidos a elas? São os contos de fadas destituídos de negatividade para a personalidade das crianças? Os adultos de hoje, crianças ontem, apresentam condutas, que se aproximam da aprendizagem passada pelas estórias dos contos de fadas? A palavra "fada" vem do latim "fatum" que significa algo como destinos, fatalidades; estariam às estórias dos contos de fadas predestinando seus ouvintes e leitores?

A estória na historia

Os primeiros registros, que definem a origem dos contos de fadas, foram associados à civilização egípcia em 4.000 a.C. Mas, os gregos, indianos e romanos também relatavam contos fantásticos. Porém, é no século VII, com o poema épico Beowulf escrito na atual Inglaterra (poema que narra às aventuras de Beowulf, um herói com força física superior que enfrenta perigos e monstros lendários como dragões, serpentes marinhas, feiticeiras e outros) que os contos fantásticos passam a ser caracterizados como os primeiros registros de fato, por agregar narrativas muito próximas das que conhecemos como contos de fadas. Outros registram, mostram que é no livro celta Mabinogion que as fadas são citadas, o titulo original deste livro seria mabinogi em referencia a divindade celta Maponos que é um "deus" da juventude conhecido no norte do Reino Unido e na Gália (França, Luxemburgo, Belgica, Suiça, Italia, Paises Baixos e Alemanha). O livro Mabinogion, conta as aventuras reais do Rei Artur e seus cavaleiros.
No século XIV, na Europa, a primeira coleção de contos intitulados Gesta Romanorum (Os feitos dos Romanos), escrito em latim e de origem persa, é um texto que tem uma mistura de contos e anedotas por um lado e teologia rigorosa por outro. Esses textos são precedentes a famosa coleção "As mil e uma noites", da literatura árabe.
No século XVII, os contos de fadas tem seu apogeu com textos como "Contos de fadas", "Novos contos de fadas" e "Ilustres fadas", da escritora francesa Marie-Catherine d'Aulnoy. Os contos de fada até aqui não eram escritos para crianças, eles eram lidos na presença de adultos em reuniões nas casas dos nobres após as crianças serem retiradas da presença dos adultos. É somente no século XVIII que os contos de fadas se voltam para o publico infantil com escritos de Charles Perrault (1628 ? 1703). Logo depois Os irmãos Grimm (Jacob e Wilhelm), Hans Christian Andersen (1805 - 1875) no século XIX Walter Elias Disney (1901 - 1966) no século XX.
Entre outras estórias bem conhecidas atualmente, Perrault escreveu: chapeuzinho vermelho, a bela adormecida, o pequeno polegar, Cinderela, barba azul. Os Grimm escreveram: Branca de neve, Cinderela, João e Maria, Rapunzel e outras. Andersen, por sua vez, popularizou personagens como: patinho feio, o soldadinho de chumbo, a pequena sereia, e muitos outros menos populares. Disney, conhecido de todos, partiu para os contos animados com personagens como Mickey Mouse e Pato Donald, não criou contos, ele apenas repaginou os que já existiam.
Perrault escreveu textos infantis com o intuito de orientar as crianças moralmente, um exemplo e a adaptação "A pele de Asno", em que o rei viúvo casa com sua própria filha, a moral da estória é a pratica do incesto. Os irmãos Grimm passaram 13 anos colecionando estórias e lendas contadas por camponeses, entre eles a senhora Viedhmaennin, essa velha senhora era conhecedora de muitas estórias que foram passadas de geração a geração e que ela repassará aos irmãos Grimm. Andersen, influenciado pela tradição oral escreveu contos com apelo moral como é o caso do texto "a roupa nova do imperador (rei)" em que um rei é enganado por bandidos que se dizem alfaiates e confeccionam uma roupa que só os sábios podiam enxergar, o rei para não parecer tolo diz ver a roupa e sai nu pelas ruas quando uma criança grita que o rei está nu, este conto exalta a esperteza dos bandidos. Disney, não criou nenhum conto, ele apenas fez releituras dos contos que já existiam por meio de animações cinematográficas, segundo Costa e Baganha (1989) Disney subtraiu passagens dos contos originais que poderiam chocar as crianças. Coelho (1987, p. 15) entende que, os contos que no inicio tinham sentido de verdade colorida e estranha ao mesmo tempo em que vai se transformando em contos que maravilham as crianças.
Os contos de fada deixaram de serem estórias para adultos ou estórias horripilantes, para tomar lugar na imaginação infantil com fantasias e mundos mágicos que descartam a realidade e ao mesmo tempo se inserem na realidade e realidades de cada um. Principalmente com o advento da televisão e dos filmes da produtora Disney que recriaram os contos de maneira a agradar as fantasias, a imaginação e o gosto das crianças

Os contos de fadas no mundo real

O mundo dos contos de fadas é repleto de reis, rainhas, príncipes, princesas, fadas, gênios, bruxas, gigantes, anões, objetos mágicos, metamorfoses, e um tempo e espaço estranhos à realidade conhecida que caracteriza os contos em que o herói ou heroína vivenciam realizações exteriores ou interiores.
Exteriores por tratarem do mundo social no qual o reconhecimento dos demais se dar sobre a vitória diante do mal na figura de uma "madrasta má", por exemplo. Interiores, porque envolve um problema existencial que tem a superação como solução ou problemática motivadora do mal, a solução é bem percebível na imagem da linda princesa que tudo conquista por meio de sua beleza, e a problemática é verificável nas crises que envolvem ciúmes e inveja da beleza da princesa que acarreta o plano maligno para o assassinato. Homicídios que são calculados minunciosamente com o objetivo de resolver um problema. Tal problema é o fato da princesa ser doce, bonita e agradável. Um ensinamento sinistro é repassado pelos contos: "à violência pode ser a solução de situações consideradas desagradáveis". O que parece se anular da imaginação do leitor ou do espectador é o comportamento assassino dos vilões dos contos de fada que também são praticados pelo herói ou heroína para se livrar do fardo que representa o vilão, por outro lado o que se fixa na lembrança é o termo "felizes para sempre" que soa como recompensa pela superação adquirida por meios nada louváveis.
É comum aos contos de princesa o encontro e o matrimonio entre ela e o príncipe, mesmo que fuja a regra das relações humanas do encontro, conhecer, conviver, noivar e casar. Coelho (1987, p.14) diz que os contos de fadas "(...) têm como eixo gerador uma problemática existencial. Ou melhor, têm como núcleo problemático à realização essencial do herói ou da heroína, realização que, via de regra, está visceralmente ligado à união homem mulher." Desse modo, pode parecer estranho, mas o foco principal é a união entre um homem e uma mulher em que se dar o final dos contos de fadas. Se observados sem a roupagem encantadora, muitos contos serão percebidos como portadores de conotações eróticas como é o caso do lobo que seduz a menina ingênua para depois comê-la, ou a Cinderela que sai em busca do parceiro ideal na calada da noite, ou ainda o caso da esperança do beijo da bela adormecida para despertar para a vida conjugal.
Mas, os contos não se limitam a seres humanos e animais falantes, em muitos casos a ideia que se quer passar por meio dos contos utiliza de personagens de todos os tipos, como espelhos que fala, bonecos de madeira que agem como humanos, grilos cultos, porcos que são arquitetos, lâmpadas que guardam gênios no seu interior, entre outros. Quando a narrativa não acontece com a presença de fadas ou de seres humanos, quando tem como personagens animais falantes, o foco do conto é sempre moral, uma estória em que exaltasse a boa conduta, o comportamento socialmente aprovado. O que se distancia da realidade por introduzir o impossível na vida humana. Imagine dois animais de espécies diferentes discutindo a utilização da água de um rio, um animal mais dócil é questionado pelo uso da água que o outro diz ser de sua propriedade, o animal mais dócil com argumentos lógicos faz o animal vilão tomar uma atitude assassina. Finalizada a estória, o contador é perguntado sobre a moral da estória. A resposta é sempre vaga e destituída de sentido. A moral é que o mal sempre prevalece independente de argumentos lógicos em que justo e injusto é relativizado. Outro caso, um animal canídeo tenta fazer um churrasco de três suínos, eles fazem suas casas de material diferente prevendo a chegada do lobo que tenta contra duas delas e obtêm êxito, mas ao tentar sobre a terceira o fracasso se dar pela sua morte em uma panela de água fervendo. Moral da estória: "matar com crueldade é justificável, e é a única saída". Ou será que a moral da estória é outra: mexer no que não é seu pode leva-lo para o cemitério? De u modo ou de outro, no final é a vida que está em jogo, é a banalização do mal que predomina.
Toda estória envolvendo animais falantes é no mínimo bizarra, primeiro por se tratar de seres que no mundo real são desprovidos de fala no sentido humano, segundo porque eles geralmente são muito cruéis com os de espécies diferentes dos demais personagens da estória, tratando o diferente com ódio e astucias criminosa. Essas estórias ensinam que o bem sempre vence, mas não tem senso moral quando trata de mostrar que o bem vence por meio de praticas criminosas, e que o diferente é perigoso ou ameaçador. Sem falar do teor negativo de explorar a espécie de certos animais como perigosos e desse modo indesejáveis na vida real, bem o diga o lobo que é sempre um vilão que ameaça e é punido.
As fadas magicas, as princesas e a busca de felicidade, os animais falantes, todos estão intrinsecamente ligados à magia. Os personagens principais sofrem todo tipo de problemas, provas da vida, que logo se resolvem por meio do uso da magia. Vejamos um caso clássico de uma jovem que vive humilhada e numa noite de baile no castelo, em que o príncipe iria escolher sua noiva, ela é incumbida de realizar tarefas domesticas; uma fada piedosa aparece e possibilita a ela um tempo de vida como princesa; tudo acontece como o combinado até um dado momento em que a jovem volta a ser plebeia; o príncipe encantado com tamanha beleza passa a procurar a princesa e a encontra e se casa com ela, e eles viveram "felizes para sempre". O problema da falta de visibilidade da princesa para o príncipe se resolve por meio de uma fada que usa a magia. Mendes (2000, p. 35) diz que nesses contos as "(?) situações difíceis que são resolvidas com a ajuda da magia, e chega à maturidade, representada pelo casamento, que será a felicidade eterna, o despertar para a luz, depois de um longo período de trevas". Trevas e luz, problemas e soluções, sofrimento e felicidade, se cruzam dentro dos contos de fadas favorecendo as realizações pessoais dos personagens principais que são encarados como heróis. Fugir de casa para se encontrar o príncipe encantado tem sido uma regra no mundo real ou será que só acontece na realidade fantasiosa dos contos de fadas?
Todos os seres humanos têm conflitos ou já vivenciaram conflitos existenciais. Se equipararmos a realidade oferecida pelos contos de fadas e a realidade que carece de soluções, perceberemos que os dramas da alma têm morada nas possibilidades que figuram nos personagens, heróis e heroínas. O herói é a figura do sucesso, do êxito, geralmente são de qualidades especiais tanto no quesito conduta como no quesito beleza. Uma imagem fácil de ser absorvida ou copiada para a vida real por meio do imaginário. As crianças, em especial, são fascinadas pelas qualidades das heroínas ou pelos dotes dos destemidos heróis. Em contrapartida dos vilões que são rejeitados por suas ações de maldades descaradas, geralmente eles são de pouca ou nenhuma beleza física. O imaginário infantil logo se identifica com os heróis, que também praticam o mal, porém de maneira camuflada e aplaudida pelos resultados enfeitados no final da estória, sem falar que são de beleza admirada e de atos heroicos. O herói representa à solução, a saída dos problemas, dos conflitos da vida, a individualização dos desejos de equilíbrio da vida pela humanidade. O herói é o símbolo que representa ações, maneiras de viver, exemplos de vida, é ele o escolhido pela criança como símbolo de poder e superação, é ele o modelo que ela (a criança) quer ser.

O herói, isto é, a figura de identificação escolhida pela criança ouvinte - que tem a liberdade de se identificar com a personagem principal masculina ou feminina - ocupa então o lugar do complexo do Ego. A representação de uma experiência de tormentos e até morte, no decorrer de amadurecimento, acontece também ao herói ou à heroína do conto de fadas (DIECKMANN, 1986, p. 119)

Esses complexos que Dieckmann chamou de "complexos do ego" pode ser entendido como um conjunto de ideias inter-relacionadas que têm um denominador emocional que influenciam significativamente a vida de quem os traz consigo, ou seja, a imagem que se tem de si mesmo e do mundo pode ser carregada de negatividade que não corresponde à realidade, mas que confronta a existência; quem nunca conversou com alguém que tem uma imagem medíocre de si mesmo ou que se lamenta de si em relação ao mundo que o cerca? Essas pessoas tem uma visão vulgar da realidade, uma visão distorcida de si na realidade. É comum dizermos que são pessoas complexadas! Muitas dessas pessoas podem estar correndo atrás de um personagem perfeito e bem sucedido que foi oferecido como modelo na infância ou está se entregando ao sofrimento por não se aproximar do modelo de felicidade e sucesso imposto em certo momento de sua vida. Se a imagem de sucesso foi oferecida na infância em modelos padronizados, será que no decorrer da maturidade essa imagem é esquecida ou é observada fortemente? Muito do que aprendemos na infância será reproduzido no decorrer de toda a vida. Vigotski (2003, p. 118), em suas analises sobre o desenvolvimento das crianças, entendeu que "(...) o aprendizado é um aspecto necessário e universal do processo de desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente organizadas e especificamente humanas". Sem aprendizado o ser humano não se desenvolve psíquica e culturalmente, isto é, a aprendizagem é necessária para o desenvolvimento do que pensamos sobre nós mesmos e sobre os outros, assim como é importante para a formação cultural de cada um em correspondência com a sociedade na qual estamos inseridos, é fundamental para chegarmos a ser o que somos. Quando assistimos a um filme, muito do que vemos e ouvimos é aprendido com muita facilidade, de igual modo acontece com as estórias contadas sobre coisas de que duvidamos, mas em ambiente adequado essas "coisas" passam a ter peso sobre nossa imaginação e sobre nossos comportamentos. Agora imagine como funcionam os contos de fadas nas mentes das crianças, é um bombardeio de imagens sendo montadas pela imaginação formando um filme mental que passa a ter influencia no pensamento e consequentemente no comportamento. Os contos de fada são, dentre outras fontes de aprendizagem, uma forma de ensinar as crianças a incorporar um novo comportamento. Mas quais são os desfechos verdadeiros dos contos de fadas?

Os desfechos macabros dos contos de fadas

Quando criados os contos de fadas tinham finais macabros e aterrorizadores, ao passarem por uma releitura com finalidades "educacionais" ou de "entretenimento" para o publico infantil eles foram transformados em estórias atraentes pelo colorido do cenário, das imagens de personagens de sorriso constante em contato com animais dóceis e de aparência amigáveis, é só recordar os contos da Disney em que a princesa está sempre acompanhada por pássaros cantarolando junto com ela, em resumo os contos de hoje são cheios de muita música, belas imagens, e personagens bonitinhos. Mas como era antes de passar pela maquiagem, iremos relatar as estórias "chapeuzinho vermelho", "João e Maria", "Bela adormecida", "Cinderela", "Branca de Neve"
Chapeuzinho vermelho tem como objetivo "ensinar" que não se deve falar com estranhos. Para tal o autor Charles Perrault empregou meios sangrentos e cruéis para esse fim, pois ele expõe a garotinha bem educada a uma situação trágica no qual o lobo a devora. No conto original o lobo não se disfarça de vovozinha, ele apenas deita na cama e aguarda que chapeuzinho vermelho chegue. Quando ela chega, o lobo pede que se deite com ele, a garota tira as roupas e entra na cama com o lobo. Um longo dialogo, sobre os braços grandes, orelhas grandes, é travado entre chapeuzinho e o lobo, até que ele a devora. No conto é obvio que o lobo é apenas uma metáfora, não se trata de um animal da classe dos canídeos e sim um ser humano. Bruno Bettelheim (no livro Na terra das fadas 1997) diz que , "O vermelho é a cor que significa as emoções violentas, incluindo as sexuais". E o lobo por sua vez não é apenas um sedutor violento, ele é real e estar sempre às espreitas em busca de vitimas que são as meninas bonitas e ingênuas que querem descobrir o mundo que lhe é proibido. "Não falar com estranhos" é mais uma cutucada na curiosidade que um alerta sobre perigos, a mãe de chapeuzinho vermelho não diz por que não pode falar com estranho, ela apenas diz pra não falar. A menina que já sai de casa sozinha, que não precisa mais dos constantes cuidados dos pais, se envereda por caminhos perigosos e encontra o homem sedutor que a conduz as descobertas proibidas para alguém da idade da pequena ingênua. O lobo a come depois de expor todos seus longos braços, grandes olhos, orelhas enormes. A boca que seduz é a mesma que comeu chapeuzinho vermelho.
O conto de João e Maria é mais dramático que o de chapeuzinho vermelho, pois envolve a mãe das duas crianças, abandono e morte. O pai das crianças não consegue livrar-se da miseria que assolava sua família, preocupada com isso a mãe das crianças decide abandoná-las, o pai não concorda com tamanha crueldade, e mesmo assim a mãe leva João e Maria para o meio da floresta e as abandona. As crianças assustadas encontram um pássaro branco e decidem segui-lo. O pássaro conduz João e Maria até uma casa em que o telhado e feito de bolo, as paredes de pão e as janelas de açúcar. Ao entrarem eles são aprisionados por uma feiticeira que obriga Maria a engordar João para que a velha possa comê-lo. No dia de cozinhar João, Maria empurra a feiticeira no forno onde ela arde até a morte. Berker (1992, p.170) diz que "A feiticeira representa a mãe cruelmente rejeitadora, privadora e traidora, mais preocupada com sua própria aparência, sentimentos e necessidades do que os da criança." A feiticeira pode ser a própria mãe das crianças, se usarmos o termo "bruxa" o sentido será o de uma velha assustadora que come criancinhas, essas são as mães que não atendem as expectativas de seus filhos de afeto e atenção. Mas, essa concepção pode ser mais percebível pelas crianças quando submetidas a interpretar o conto com base em sua própria vida ou comparando a rejeição de João e Maria com suas próprias.
A Bela Adormecida, outro conto de Charles Perrault, diferente das versões posteriores a de 1697, a estória causa espanto, pois se trata de uma princesa que dormia há cem anos e é desperta pelo beijo de um príncipe que se casa com a bela que dormia e a esconde dos pais por dois anos porque a princesa era de uma família de bruxas e tinha tendências a comer criancinhas. Depois que o pai do príncipe morre ele é coroado rei e a bela adormecida torna-se sua rainha. Quando moravam no bosque escondidos dos pais do príncipe a princesa dar a luz dois filhos que passam a se chamar aurora e sol. Quando no castelo o príncipe, agora rei, parte para a guerra. A bela adormecida, agora rainha, leva aurora e sol para a casa de campo e pede que seu cozinheiro as prepare para servir aurora e sol para a refeição. Antes que a rainha cozinhe as crianças o rei chega e a rainha se joga num tonel de cobras.

Quando o pai morre e ele assume o reino, traz a mulher e os filhos, mas em seguida parte para a guerra, deixando-os aos cuidados da rainha-mãe. Ela os leva para sua casa de campo e pede ao cozinheiro que os prepare, um de cada vez, para suas refeições. O cozinheiro, porém, engana a velha rainha, escondendo-os em sua casa. Quando ela descobre e se prepara para jogá-los num tonel cheio de répteis venenosos, o rei chega e a bruxa se atira às víboras. (MENDES. 2000, p.89)

A estória da bela adormecida pode ter sido retirada da estória "Pentamerone: O Sol, a Lua e Tália" de Giambattista Basile. Obra em que Tália é a princesa adormecida enclausurada em uma torre pelo rei esperançoso que sua filha desperte da maldição que a mantinha dormindo. Passado algum tempo, outro rei que caçava pela região tem um de seus falcões preso na torre onde dormia a princesa. Este entrou na torre para buscar seu falcão perdido e encontra a bela princesa. O rei se encantou com tamanha beleza e tentou de tudo para acordar a princesa, mas fracassou em seu intuito. Não podendo acorda-la ele a estupra mesmo com a imagem da jovem desfalecida. Do estupro nascem duas crianças gêmeas, a lua e o sol. O parto é feito por fadas que cuidam das crianças e da princesa, até ajudam as crianças a encontrar o sei da mãe quando sentem fome. Um dia um dos bebes suga o dedo da mãe confundindo-o com o seio e retira a farpa que a mantinha dormindo. Desperta a princesa, mesmo sem entender como e porque é mãe, permanece no castelo que supre todas as suas necessidades, pois o castelo é magico. Mas, certo dia seu pai que havia enclausurado a princesa na torre do castelo, ao visitar a filha a encontra desperta e por ela fica completamente apaixonado. A rainha descobrindo a traição do rei; resgata sol e lua e prepara tudo para cozinha-las e servir ao rei como refeição. Mas as crianças são escondidas pelo secretario. Então a rainha pega a princesa que dormia para assa-la em uma fogueira, mas o rei chega a tempo e salva sua filha jogando a rainha em sua própria fogueira. Com isso ele toma a princesa como esposa e a constitui rainha.
A estória retrata um caso de incesto em que se valoriza a união entre pai e filha como correto e justificado pela morte da esposa que interfere na relação amorosa entre pai e filha. O sono provavelmente está relacionado à morte, mas a morte não do físico e sim da consciência moral. Outro conto que prende a atenção do leitor pelos requintes de bizarrices é o da Gata borralheira que depois vira Cinderela.
A gata borralheira, uma menina órfã criada pela madrasta que tem duas filhas malvadas, é proibida de ir ao baile em que o príncipe pretende encontrar a noiva perfeita. Com a ajuda da fada madrinha ela é transformada em Cinderela, que vai ao baile e atrai a atenção do príncipe. Além de deixar o príncipe apaixonado, ela ainda consegue arranjar dois nobres cavalheiros para suas duas irmãs malvadas que viviam humilhando e maltratando a gata borralheira, agora Cinderela. O final da estória, conhecido por todos: o príncipe se casa com Cinderela e todos viveram felizes para sempre.
Num primeiro olhar, a piedade é inevitável sobre as condições e situações em que vive a gata borralheira. Porém, a menina que sofre é também a mulher livre que sonha e que apela para que o leitor se veja na figura de um ser condenado a servir os outros sem nunca poder ser livre, pois não dispõe de favores mágicos para alcançar essa liberdade. Mas, o que pensam as meninas que conhecem a gata borralheira que se transforma na bela princesa, Cinderela? Pra muitas pessoas ser "gata borralheira" é um problema e com isso elas produzem em suas vidas um problema chamado de complexo de Cinderela. O complexo de Cinderela nada mais é que o desejo psíquico e emocional que certas mulheres têm de se livrarem de suas responsabilidades básicas, para tal buscam encontrar alguém que possa sustentá-las e protegê-las material e moralmente. As mulheres escravizadas por esse complexo estão sempre à espera de um "príncipe" encantador, e encantado em, seu cavalo branco.
"Complexo de Cinderela" é um termo criado pela psicóloga norte-americana Colette Dowling que entende que as mulheres de hoje ainda esperam algo externo que venha transformar as suas vidas. Este algo externo é o status social do parceiro, o que se tornou característica principal do parceiro ideal, do príncipe, assim o casamento é o fim do sofrimento e o inicio do "felizes para sempre". Branca de neve não é tão diferente da Cinderela, ela se casa com um príncipe, um homem bonito e rico.
O conto de Branca de Neve, dos irmãos Grimm, tem alguns pontos interessantes, nesse conto branca de neve é resultado de um desejo. Sua mãe está numa janela de esquadrinhas de ébano costurando e acidentalmente espeta seu dedo deixando cair três gotas de sangue sobre a neve que ficou tão bonitas misturadas ao branco da neve que ela desejou ter uma filha de pele alva como a neve, rubra como o sangue e negra como o ébano. Assim que branca de neve nasce sua mãe morre; seu pai casa e ela passa viver com sua madrasta que arquiteta sua morte e pede como prova da morte de branca de neve seu coração e o fígado, órgãos que ela manda cozinhar e os come pensando ser de sua enteada. Branca de neve fica pela floresta e encontra no meio da floresta na qual mora sete anões com os quais ela passa a viver (uma mulher vivendo com sete homens !). A rainha tem um espelho que fala da sobrevivência de branca de neve; a rainha tenta por três vezes matar a menina alva como a neve; na terceira o desfalecimento aparenta ser definitivo; um príncipe encontra seu esquife (caixão) de cristal e decide leva-lo pro seu reino para cultuar a beleza de branca de neve morta. A jovem desperta de seu sono de quase morte por acidente e não por intenção do príncipe; ao despertar eles se casam. No dia do casamento a rainha vai a feste e é reconhecida pelos anões como a madrasta má e planejam a morte dela na festa, os anões forçam a rainha madrasta calçar sapatos de ferro em brasa e a fazem dança até que ela não aguentando mais cai morta, mesmo com o assassinato praticado pelos anões a festa continua com muito mais alegria. O sangue é utilizado como ritual e pacto para que uma criança seja gerada, a morte é o preço do pacto, gnomos e anões do conto são muito próximos em semelhança, o assassinato é exaltado em todo o conto, canibalismo e bruxaria são triviais e o mais intrigante: o príncipe pretende ter uma mulher morta como sua.
Como foi verificado nos poucos contos de fadas relatados até aqui, todos tem intenções de fornecer ensinamentos que favoreçam de algum modo o comportamento dos leitores, ouvintes e telespectadores, mesmo que para isso se utilizem do medo pra imprimir tais comportamentos. Medo que é usado como apelo emocional para fixar as ideias dos contos na mente das crianças. Assustar, educar pelo medo, significaria alertar para os possíveis perigos que estão sempre prontos para vitimar criancinhas desobedientes ou que se comportam de modo contrario ao que é observado como correto.
As condutas sociais impostas pelos contos favorecem comportamentos violentos, isso porque a criança não distingue entre violência imaginada e violência real, assim um vilão violento ou um herói que usa da violência para proteger alguém ou alguma coisa, tem ambos o mesmo valor moral na concepção infantil. O vilão por receber o conceito negativo é encarado como reprovável, mas o herói que tem conceito positivo é admirado e por vezes imitado. O herói passa a ser modelo para a criança por serem imagens simpáticas, bonitas, educadas e por se auto definirem como pessoas do "bem", mesmo que ele maltrate, humilhe, provoque sofrimento e até cometa assassinato, suas ações são sempre premiadas com festas, honrarias e aplausos. O herói é premiado pela violência aplicada por uma causa nobre nos contos de fadas. A criança, quando se comporta como o herói espera, também, uma premiação por suas ações violentas por entender que nas estórias toda ação em favor do "bem" é justificável e digna de compensações.
Outras crianças não tem coragem de aplicar a violência como defesa contra aquele que representa o "vilão" da estória, preferem ao invés da violência se submeterem ao agressor. De um modo ou de outro, a criança estará sempre aprendendo a aplicar a violência ou ser vitima, pois os contos de fadas trabalham com a fantasia que oferece símbolos e modelos que satisfazem os desejos por meio do brincar na realidade com base na ficção. Segundo Piaget (1994, p. 18) a criança transforma objetos que o cerca em símbolos que satisfaçam seus desejos, e isso se verifica no ato da criança transformar uma vassoura em cavalo; "outras vezes a criança se transformar para tomar o aspecto do objeto imitado", ou seja, a imitação do modelo admirado pela criança molda sua personalidade. A imagem utilizada como modelo a ser imitado parte da compreensão de quem imita para sujeitar a inteligência em favor do imitado, da imagem adotada para imitar.
Assim, fica evidente que as estórias têm força sobre a conduta da criança por serem apresentadas em um mundo fantástico diferente do mundo real. Mas que apresentam a dualidade de forças (bem v.s. mal) em que a criança se percebe como herói ou vilão, dependendo de sua inspiração ideológica. Esse mundo fantástico e magico dizem para a criança que ela pode adotar certas condutas voltadas para aumentar a força do "bem" a qualquer preço, pois ela "sempre" será "valorizada" por suas ações. Muitas crianças não conseguem assimilar o fato de que os contos de fadas não passam de mentiras e sendo assim já são moralmente incorretos e não servem como exemplos para a vida real, porque não se expõe como ficção querendo para si a crença sobre suas fantasias. Depende exclusivamente dos pais alertar as crianças sobre a realidade oferecendo-lhes educação moral condizente com a realidade.

As fadas e as moiras

As fadas já foram comparadas as moiras. As fadas têm por missão prever o futuro de algum ser, seja ele humano ou pretendente a se tornar humano. Elas são geralmente representadas como mulheres jovens, bonitas e meigas, aparecem por piedade, por chamado de alguém ou por pura vontade de interferir na vida de alguém. Mas, a origem das fadas remonta às Moiras gregas (Parcas latinas). Que eram três: Cloto, Láquesis e Átropos. Elas tinham por missão tramar, armar, inventar, enfim tecer o fio da vida. Fio que elas cortavam com suas tesouras a hora que bem entendessem. Eram descritas como "velhas de aspecto sinistro e severo" e às vezes são representadas como mulheres de meia idade de face calma e pura, e ainda como mulheres bonitas e de meia-idade e/ou jovens donzelas de muita beleza. Fazendo um paralelo, podemos dizer que as moiras encarnam as figuras mais comuns nos contos de fadas, velhas de feições assustadoras (bruxas), mulheres bonitas e de meia idade (madrastas) e belas donzelas (princesas). Será coincidência ou intencional? Fica a cargo do leitor, tirar suas próprias conclusões. Existia a crença de que as moiras apareciam três dias após o nascimento de uma criança e decidiam sobre o destino dela, oferecendo o recém-nascido parte para o "mal" e parte dele para o "bem". Quando da decisão de cortar o fio da vida de um ser humano, as moiras eram assistidas pelo cachorro Cerberus (em grego Kerberos = demonio do poço, um monstruoso cão de múltiplas cabeças e cobras ao redor do pescoço) que se apoderava do corpo do morto para conduzi-lo ao Hades que, era irmão de Zeus, que foi encarregado de cuidar do mundo inferior para onde todos iriam após a morte. Hades também era o nome de um lugar dividido em Tártaro (como se fosse o inferno) e os Campos Elísios (como se fosse um paraíso) para onde todos iriam após a morte. Podemos representar Hades como diabo e o Inferno que surgem na literatura cristã ocidental. As moiras também assistiam as batalhas que ocorriam esperando para se alimentarem do sangue dos que morriam nessas guerras. Porém as fadas serão percebidas de acordo com imagem pintada nos contos na mitologia nórdica.
Na mitologia Nórdica a fada (elfas) é a fêmea dos elfos, estes são espíritos em formas de seres humanos, mas bem menores que os homens, são belos e luminosos, mas temem a luz do sol e a presença humana. Dançam a luz da lua, e se algum humano os assiste dançando este fica aprisionado pela beleza dos Elfos. As fadas têm asas de libélulas e carregam consigo uma varinha de condão que tem poderes para realizarem encantamentos. Diferente da mitologia grega, as fadas nórdicas não controlam a vida das pessoas, essa função é das Nornas que são Urd (guardiã do passado) representada como uma mulher extremamente envelhecida de idade muito avançada, Verdandi (vigia do presente) encarnada na imagem de uma mãe, Skuld (guardiã do futuro) representada por uma virgem.
Sejam denominadas de fadas, Elfas, Moiras ou Parcas, elas todas são a mesma figura, a mesma deidade que decide o destino dos que são assistidos por elas.

Conclusão

Toda sociedade é composta de elementos culturais que são entre outras coisas a identidade de um povo. A escrita e a oralidade são traços que acompanham todas as culturas de todos os povos. Não poderíamos nos diferenciar das demais espécies animais se não fossemos dotados da criação e da transmissão do que criamos. Os contos de fadas são parte da transmissão oral e escrita da cultura humana. Foram criadas para entreter e ensinar, ao mesmo tempo em que distraem e divertem constroem condutas por meio dos ensinamentos contidos na estória. O ensinamento moral é foco principal dos contos, por moral entendemos comportamentos socialmente aprovados e hereditariamente reproduzidos, uma criança de muitas décadas passadas aprendeu que não se pode falar com estranhos por meio do conto de "chapeuzinho vermelho", a mesma aprendizagem foi transmitida de geração a geração até os dias atuais. Mas, os contos de fadas não se limitam a fornecer ensinamentos morais, eles também oferecem outros ensinamentos quando observados pela ótica de uma criança.
As crianças não entendem apenas o lado positivo dos contos, tão poucos centram suas atenções na "moral da estória", elas observam detalhes que passam a ter influencias sobre seus comportamentos. A velha bruxa malvada terá referencias no mundo real quando a criança associa o personagem do conto ao adulto da vida real, e em muitos casos identificam a si mesmo como o herói que usa da violência para vencer o mal ou o personagem coitadinho que precisa da ajuda da magia para reverter uma situação problema que se apresenta na vida real, e que de algum modo muitas se parecem com a situação relatada nos contos.
Os contos de fadas trazem para o mundo real a ficção que se basearam nas realidades das pessoas reais, essas estórias apenas se moldaram em fantasias para serem absorvidos pela imaginação e se formarem na personalidade como conduta a ser praticada na vida real.


Referencias Bibliográficas

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Autor: Chardes Bispo Oliveira


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