Uma gota no oceano



Luísa saiu correndo para atender o telefone. Já tinha em mente a identidade de quem aguardava ao outro lado da linha.
- Alô?
- Oi, Lu ? respondeu uma voz envergonhada.
- Olá, Diego.
- Como vai?
- Tudo ótimo. E você?
- Tudo nos trinques. Meu advogado ligou e confirmou a reunião amanhã às duas da tarde.
- Estarei lá, com o meu advogado. A papelada toda já estará pronta?
- Sim... E você?
Seguiu-se uma breve pausa. Luísa engoliu seco.
- Se eu o que? Estarei pronta?
- Sim.
- Eu não estava pronta há trinta anos?
- Essa conversa não merece interlocução através de dois telefones. Por favor, peço que me encontre para tomarmos um café. Aqui no Cafeína mesmo.
- Encontre-me em dez minutos. Até mais. ? ela desligou
De repente, Luísa viu-se na mesma correria matutina diária que havia enfrentado em seus anos de casamento com Diego, quando levantava antes do despertar do marido, e, nas pontas dos pés sorrateiros, saltitava até o banheiro para escovar os dentes apressadamente com pasta de hortelã. Assim começavam seus adultos dias de certeza, paixão e cuidados. Agora, porém, ela escovava os dentes notando as linhas das palmas da mão embaralhadas. O destino era incerto após uns trinta anos e lá vai fumaça de tanta convicção. Observou os olhos, hoje tão exaustos, pelo espelho, lembrando-se da falecida mãe no dia da cerimônia: "Diego foi o seu escolhido para ter a sorte de se perder nessas duas esmeraldas diariamente."
Diego, em seu apartamento alugado a alguns prédios do de Luísa, vestiu uma camisa amarrotada ? era a que a esposa mais adorava ? e prontamente saiu de casa. Sua pressa era tamanha em rever o amor de sua vida e dissuadi-la de loucura tão grande, que sua aparência ficou para segundo plano, como ficava também sua vida sem Luísa. Ela invadia-lhe os pensamentos vinte e cinco horas por dia, não havia porquê se deixar levar por isso justamente nesses míseros dez minutos. Enquanto apertando o botão no elevador, notava a aliança dourada rutilando como rutilava há trinta e dois anos.
Ela chegou primeiro e sentou-se à mesa no canto, próxima à janela, com vista para a orla. Olhava as moças jovens distribuídas pela cafeteria: loiras e morenas, solteiras e acompanhadas, magrinhas e corpulentas. Variadas, porém encantadoras. "Pessoas assim enfeitam qualquer ambiente", pensou. Até que avistou Diego, com seus olhos fixos nos dela, caminhando lentamente em sua direção e sentando-se à sua frente.
- Quanto tempo faz, não? ? ele a cumprimentou
- É verdade. Gozada essa mútua ausência.
- Tem falado com a Joana?
- Claro, ela passou lá em casa há pouco. Pediu-me para tomar conta da Aninha amanhã.
- A Aninha está cada dia mais linda, não é?
- Não existe neta mais encantadora.
Luísa chamou a garçonete e fez seus pedidos. Nunca mudavam, eram os de sempre: um chocolate quente para ela e um capuccino para ele.
- Lu ? ele disse, descansando sua mão sobre a dela -, como será amanhã?
- Como deve ser, ora.
- Eu digo, será definitivo depois que assinarmos.
Ela desviou o olhar para o mar e o sol poente, como costumava fazer para pensar. Pensava muito.
- Acho que estamos seguindo com nossas vidas, fazendo o que achamos certo, Diego.
- Foi isso o que pensamos quando demos nossos passos na saída da Candelária. A verdade é que devemos honrar com nossos votos.
- Provinciano e conservador? Logo agora? Essas suas facetas eu desconhecia, meu bem. ? irritou-se a mulher
- Torno a lhe perguntar: você estará pronta quando o dia seguinte chegar? ? ele pegou seu rosto e virou de encontro ao dele ? Depois de tudo que vem acontecendo, de tantas águas que rolaram, das roupas esquecidas, do perfume na roupa de cama, dos porta-retratos escondidos, das alianças, dos aniversários, das rugas que paulatinamente descobrimos juntos, dos filhos e dos netos?
Luísa, como em poucas vezes na vida, ficou sem palavras. Levantou-se, deixando o chocolate ali mesmo sobre a mesa e foi caminhar na orla da praia. O marido terminou o café calmamente e retornou para sua casa, entristecido.
Diego estava assistindo televisão na companhia íntima de uma dose de conhaque na poltrona, perdido em pensamentos, ponteiros, goles e guimbas. Subitamente, tocou a campainha. Ao abrir a porta, toda a tristeza imaginável foi reduzida a poeira em uma fração de segundo.
- Viemos lhe fazer companhia! ? exclamou a alucinante mulher parada à porta com a mais estonteante ainda mulher sendo carregada no colo dela
Aninha, muito criativa, fez questão de pregar justiça com as próprias mãos: rasgou em micropedaços todas aquelas baboseiras impressas, onde vira somente símbolos ("divórcio"), nada mais. Seus avós se entreolharam, maravilhados com a cena com a qual se deparavam; estavam orgulhosos com o que tinham construído juntos, agradecidos pelo trabalho que o outro tinha feito e percebiam a impossibilidade das vidas de ambos serem as mesmas se não fosse pelo outro. Luísa relembrou-se da ansiedade e da euforia que sentira quando conheceu Diego, quando começaram seu relacionamento, e da convicção de que seria o homem da sua vida no dia em que subiram ao altar. Naquele momento, seu coração estava invadido pelos mesmos sentimentos: ansiedade e euforia em ver sua neta crescer, assim como haviam criado seus filhos, e convicção de que queria essa vida só para ela por toda a eternidade de seus dias. Nem uma gota do oceano de diferença.

Autor: Jessica Finn


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