0,80 Cêntimos



O cenário é uma rua movimentada da baixa de Lisboa, mas poderia ser
qualquer cidade deste ou de qualquer outro país ditos civilizados.
Mal agasalhada, tremendo de frio, carregando o peso quem sabe não só dos longos anos de vida,
mas de alguma ou de muita amargura, ali estava uma velhinha. Por incrível que pareça,
aos olhos da multidão apressada, ela era invisível.
Essa multidão de pessoas, a quem se inseriu um chip com valores como os de, seguir em frente,
ganhar, gastar, subir, subir, subir, mas pessoas que não tinham as coordenadas para a ver e sentir,
no seu frenético passar, deixavam ainda mais frio no já de si mirrado corpo da velhinha.
Se alguém pudesse escutá-la, ouviria, numa voz meiga e doce, apenas: " Dê-me uma sopinha, por favor".
Isso foi o que escutou uma menina que caminhava, também com os seus problemas, também apressada mas que,
ao escutar, parou defronte dela e disse-lhe com a voz já comovida:
De momento não estou prevenida mas...

Sem a deixar terminar a senhora falou:
" Não faz mal, filhinha. Que Deus te abençoe!
A jovem, já com lágrimas nos olhos, acelerou os seus passos, dirigiu-se a uma caixa multibanco e
momentos depois estava de novo junto da velhinha.

-Aqui tem algum dinheiro para a sua sopinha. - disse a jovem estendendo a mão.
-Não, filha. - Disse de imediato a senhora. Dinheiro eu não queria mas... se me pudesse comprar uma sopinha...

Pegando na senhora pelo braço, a jovem dirigiu-se a um snack bar próximo e antes de fazer o pedido ainda perguntou:
- Será que só com uma sopinha a senhora vai ficar bem?
Quase como que a pedir desculpa, a velhinha disse ;

- Se fossem duas sopinhas, ficaria melhor.
A jovem pediu ao empregado que tirasse duas sopas, o que ele fez de seguida,
não sem antes deixar transparecer um olhar estranho, como se aquele pedido fosse de outro mundo e, ao dar-lhe o saco
com as sopas, mostrava um misto de espanto e alguma admiração.
A jovem saiu com a velhinha e, já cá fora, notou, ao dar-lhe as sopas, que ela quase nem as podia levar, quem sabe do frio,
ou da emoção, quem sabe...
Então a senhora falou mais uma vez, passando a mão áspera pelo braço:

- Deus te abençoe, filha. Estou aqui há horas e ninguém nem sequer parou, nem sequer me escutou.
Já de lágrimas nos olhos, a jovem despediu-se da senhora e, de coração leve, muito mais leve e feliz, lá seguiu o seu caminho.
A paz que sentiu naquela hora, não tinha preço algum e, afinal, custou-lhe bem pouco. Apenas 0,80 cêntimos cada sopinha.

A ti, Marcinha Raquel Lobão, o meu bem-hajas pelo teu belo coração!

Herlânder Lobão
Autor: Herlânder De Andrade Lobão


Artigos Relacionados


A Velinha ( Sem H ) Da Velhinha ( Com H )

CrÔnica De Um Feliz Dia Infeliz

Nossa Senhora Da SaÚde

A Viúva Do Cemitério

O Menino Sem Roupa

Porque Os Casais Se Separam

Uma QuestÃo De Fidelidade