O ELMO
Reunidos sob o mesmo teto, três homens iniciaram conversa amistosa. Eram eles, o médico Inácio Fragoso de 50 anos, o peão de estância Sebastião Cunha, 38 anos, e o comerciante Juvenal Paiva, de 32 anos. O carro do médico havia atolado no barro, próximo da taberna, o peão preferiu passar a noite na venda a enfrentar no lombo de um cavalo, a solidão da estrada numa noite fria e chuvosa, e o mesmo motivo teve o comerciante que chegou numa carroça.
- Acho que nós vamos ter que passar a noite aqui, amigo João!... Disse o peão. O taberneiro, que havia subido numa cadeira para acender os dois lampiões pendurados numa trave do teto, respondeu:
- Não me incomodo, não. O tempo lá fora está horrível! Os senhores podem se acomodar no quarto dos fundos. Cá não tem muito conforto, mas pelo menos não ficarão ao relento.
- Agradecido, amigo!
Juvenal ergueu-se da cadeira e foi olhar um objeto que estava pendurado na parede, ao lado da porta. Era um elmo, capacete militar da época do Império.
- Onde o senhor conseguiu isso? Perguntou ele, observando a velha peça de metal deteriorada pelo tempo e cheia de mossa.
- Um viajante parou aqui certo dia para comer, e deve ter esquecido isso debaixo da mesa. Deixei-a aí para que a encontre, se caso voltar. Mas, vocês vão querer comer alguma coisa?
- O que tens para nos oferecer? Perguntou Sebastião. Depois de colocar lume no pavio dos lampiões, o taberneiro foi examinar a despensa.
- Minha mulher foi passar uns dias com a mãe dela, que está doente e eu fiquei sem cozinheira, mas ainda tem feijão, pão, queijo, paio e vinho.
- Pra mim é um banquete! Exclamou o peão.
- Sirva para nós que eu pago pela comida. Afirmou Inácio. Sebastião tocou no ombro do médico.
- Ah! O doutor é muito generoso!
- Nem tanto, os senhores pagam a bebida e hospedagem.
- De minha parte não há estorvo. Disse Juvenal, voltando a sentar-se. O taberneiro serviu a comida. Lá fora já era noite e a chuva diminuía de intensidade.
- Andando por Santa Maria, algum tempo atrás, me contaram um causo. Disse Juvenal e apontou um dedo para a parede. - É sobre um capacete como aquele. Em 1844, um regimento do exercito imperial estava aquartelado em Arco Verde, no vale do Rio Pardo.
O comandante era o capitão Diogo Pinheiro de Ávila. Diogo enamorou-se e logo se casou com uma índia, chamada Jandira. Certo dia a mulher amanheceu doente, com fortes dores de estomago. O marido deu-lhe remédios e de nada adiantou. Então, pela tarde, como ainda sofresse com dores, Jandira pediu a Diogo que fosse ao campo procurar certa erva conhecida pelos indígenas como excelente remédio para os males do estômago. Saiu o capitão em companhia de seu fiel cão para o campo e não mais retornou. Já estava escurecendo quando Jandira pediu para uma tia avisar o tenente Francisco Medina, que mandou alguns homens dar uma busca pela vila e arredores. Já era noite quando o capitão foi encontrado na mata, morto, com um ferimento no peito. Acreditou-se que Diogo foi morto pelos rebeldes. Os soldados se reuniram e partiram em busca dos assassinos, porém nenhum soldado inimigo foi encontrado. O cão de Diogo também tinha sido morto e os dois foram enterrados lado a lado, com honras militares.
Alguns dias depois, de madrugada, ouviram-se gritos na casa da viúva. Quando soldados entraram na casa encontraram o tenente Francisco e Jandira mortos, seminus, em cima de uma cama. O tenente morreu a golpes de espada e a mulher devido às mordidas de um animal. Nada foi encontrado que pudesse identificar os autores daquele crime. Achou-se estranho que, não fazia nenhum mês que o marido tinha sido morto, Jandira já estava de caso com o tenente Francisco.
No dia seguinte um soldado encontrou a espada suja de sangue e o elmo de Diogo, ao lado do sepulcro do capitão. O homem levou os objetos para casa e na manhã seguinte foi encontrado morto. A espada e o capacete foram devolvidos ao túmulo, onde ninguém mais se atreveu a se aproximar.
- E isso! Disse Juvenal. - Essa é a historia do capitão Diogo, que saiu do túmulo para se vingar e reaver seus pertences, a espada e o capacete. Um capacete como aquele...
Os companheiros olharam para o objeto pendurado na parede.
- Você acredita que aquele é o capacete do capitão Diogo? Perguntou o taberneiro. Torcendo a boca, Juvenal fez um ar de dúvida.
- Pode ser verdade. Disse Sebastião, sério. Depois ele espreguiçou-se, completando:
- A prosa esta boa, mas eu vou me esticar num canto para dormir um pouco.
João voltou a sentar-se.
- Se eu dormir agora vou ter pesadelos.
- O senhor ficou impressionado com essa historia?
Perguntou Inácio.
- E não é para ficar? Pode imaginar um homem morto, já comido pelos vermes, andando no meio da noite com uma espada na mão, em busca de vingança? Sem esperar resposta, o taberneiro dirigiu-se para a parede, pegou o velho capacete, abriu a janela e jogou o objeto tão longe quanto sua força permitia. A chuva havia cessado e no céu brilhava a lua cheia. João tornou a fechar a janela e sentou-se.
- Não se preocupe amigo João! Disse Inácio. - Historias contadas seguidamente através dos tempos, sofrem modificações. Alguns detalhes são esquecidos e outros são inventados.
Juvenal ergueu a mão.
- Escutem!
- O que foi? Perguntou Sebastião. Todos ficaram em silencio prestando atenção. Ouviu-se um som distante.
- Parece o uivo de um animal. Disse o comerciante.
O som se repetiu logo depois, desta vez mais perto da taberna.
- É um cão. Afirmou Sebastião.
Os quatro homens ficaram em silêncio, atentos. Do lado de fora soaram ruído de passos na lama, o chapinhar nas poças de água. Alguém, ou alguma coisa se aproximava da taberna. João ergueu-se rápido, pegou uma espingarda que estava sob o balcão e conferiu a munição. Os passos pararam de súbito. Houve uma longa pausa, os homens permaneceram olhando para a porta.
- Quem está aí? Gritou o taberneiro. Nenhuma resposta se ouviu.
- Droga! Exclamou o peão. - Não tenho medo de assombração!
Sebastião ergueu-se, foi até a porta e abriu-a. Os companheiros olharam para ele. O peão ficou imóvel, olhando para a rua, com uma mão na folha e outra na ombreira da porta.
- Vê alguma coisa estranha? Perguntou Juvenal. Sebastião tornou a fechar a porta e voltou para junto dos outros sacudindo a cabeça.
- Não vi nada. Talvez tenha sido algum animal, vaca ou cavalo, que estava solto no campo e procurava abrigo.
- Acho que nos precisamos descansar. Disse Inácio. - Amanhã de manhã...
- Espera! Cortou Juvenal. - Escutem!
Novamente soaram ruídos de passos na rua. João pegou a espingarda. Os passos chegaram até a varanda e pararam por um momento. Ouviu-se alguma coisa se esfregando no soalho da varanda. Quatro pares de olhos estavam fixos na porta quando a tranca foi erguida. João apontou a arma. Entrou um homem usando um chapéu preto na cabeça, vestido com uma capa de chuva que chegava até o cano das botas enlameadas. Ele tirou o chapéu, soltando o ar dos pulmões.
- Puxa! Que tempo horrível para se viajar!
Os quatro homens relaxaram. O recém chegado estava bem vivo!
- Senhor mascate! Exclamou o taberneiro, voltando a colocar a arma em seu lugar.
- Boa noite a todos! Disse o homem, pendurando o chapéu e a capa num gancho.
- Parte da estrada está coberta de água e eu tive que deixar meu carro aqui perto. Vi luzes no seu estabelecimento e como já se faz tarde resolvi chegar e pedir abrigo para esta noite, e uma garrafa de seu bom vinho.
- Fique a vontade. Vou providenciar o seu vinho. Mas, antes, me diga, era o senhor que esteve aqui ainda há pouco?
- Não... acabo de chegar. Respondeu o mascate com um sorriso. Ele olhou para os outros homens e perguntou:
- Estavam jogando cartas?
- Não. Respondeu Juvenal. - A gente apenas conversava.
- Contávamos histórias, casos estranhos. Disse Inácio.
- Casos estranhos? Pois eu conheço um que vai deixar vocês arrepiados!...
Juvenal ergueu-se.
- Desculpem, mas eu vou dormir. Disse ele e o peão ajuntou:
- Eu também, estou cansado.
Os dois dirigiram-se para o quarto, nos fundos.
- Amanhã tenho que levantar cedo. Boa noite! Disse Inácio, e seguiu para o quarto. João olhou para o mascate.
- O amigo não se importa de beber sozinho?
Na manhã seguinte, depois que seus hospedes partiram, João lembrou-se do capacete e achou melhor enterrá-lo do outro lado da estrada. Saindo da taberna, procurou no lugar onde teria caído e não o encontrou. Na lama estava apenas a marca do objeto quando caiu no chão e rolou pouco mais de um metro. Havia também marcas de calçados, provavelmente das pessoas que ali passaram a noite. Talvez um deles o tenha pegado. Pensou o taberneiro. Mas, ele não tinha certeza disso. Junto com as marcas de calçados havia pegadas de um cão!..
FIM
Autor: Antonio Stegues Batista
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