Coisas Do Destino



COISAS DO DESTINO


Romance de João Magalhães

Rio de Janeiro, maio de 1955

Quando Alzira engravidou, aos 18 anos, e a tia Maria disse que ela teria de ir embora, ela não suplicou para ficar, não se lamentou, pediu apenas que não contasse nada a Pedro, seu irmão.

Se ele perguntasse porque ela tinha voltado para Boa-Vista, que lhe desse uma
desculpa qualquer, que o pai estava doente e precisava dela.
Fazenda Anhaçu, Boa-Vista, maio de 1963.

A cascavel deu o bote e Carminho correu para Alzira, gritando. Foram duas horas de agonia e dor. Finalmente, apertando o rosto da mãe contra o seu, ele fechou os olhos.
A fazenda Anhaçu fica a um dia de Boa-Vista. É bonita de ver. Um mundo de igarapés a circundeia. Ao longo de seus campos sempre úmidos pelas chuvas, crescem imensos buritizais.
Alzira gostava daquele cheiro de mato. Sentia-se radiante quando saía a cavalo, com Carminho na garupa.

A mágoa, o rancor, a culpa, o medo, todos os pesadelos que a atormentavam noite e dia,
desfaziam-se enquanto ela galopava sem rumo certo pelos confins de Anhaçu.
Somente nesses instantes esquecia o passado: os anos felizes de sua pré-adolescência no Rio de Janeiro e o tempo cruel em que ficou no baixo meretrício de Boa-Vista, durante quase toda sua gravidez.
Alzira vivia em Anhaçu há dez anos.  Nela, Carminho nasceu.

Foi um momento de muito pânico, mas também de gratidão, quando o bebê deslizou por
suas pernas e, estapeado pela água fria do riacho, choramingou. Alzira olhou para as árvores ao seu redor, elevou as mãos para o céu e agradeceu. A Natureza tinha feito seu parto.
Carminho cresceu como um caboclo. Aos sete anos, conhecia cada pedaço de chão de Anhaçu e das terras vizinhas. Era um menino esperto, inteligente.

Olhos castanhos, grandes, iguais aos da mãe. Há duas semanas, Alzira tinha feito planos. Ia levá-lo para Boa-Vista. Lá, ele faria o primário e o ginásio.

Depois, ela daria um jeito de mandá-lo para o Rio segundo grau, faculdade. O garoto, pensou, seria publicitário, como o ai.
- Como ele é, mãe?
Carminho pensava no pai como um homão alto, moreno, forte. Como um anjo de guarda a lhe proteger dos perigos da mata. Como um amigo com quem poderia esclarecer suas dúvidas e afugentar seus receios.

Em seu delírio de morte, o garoto viu o pai chegando de mansinho, sorrindo-lhe. Me beija, pai. E sentiu o carinho daquela figura desconhecida, por quem tantas vezes tinha chamado.

- Mãe, está tudo escuro. Mãe...
Alzira ficou sem ação. Fez de tudo o que podia para salvar o filho. Chupou-lhe o veneno entranhado na perna, deu-lhe as beberagens dos caiapós, bezuntou-o com ungüento de tripa de macaco e aplicou-lhe a reza das bezendeiras.
Por fim, deitou-o no chão e soltou um grito tão terrível, que os porcos, galinhas, a meia dúzia de cabeças de gado e o alazão de Carminho deram de correr feito loucos, como se o estampido de um trovão anunciasse o fim do mundo.
Horas mais tarde, quando o primo Alcides apontou no portal da fazenda, Alzira tinha acabado de abrir a cova e fincar na terra uma cruz meio torta, feita com dois pedaços de lenha velha.  

- Meu Deus! O que houve, prima? - perguntou Alcides, apeando apressadamente do cavalo.
- Olha, ele... Ele se foi.
- Mas, como...
- Picada de cascavel, Alzira contou, sem saber direito o que falava.
- Meu Deus! Venha, vamos para a cidade, disse Alcides, sabendo que a prima não sairia dali tão cedo.
- Não. Só arredo o pé daqui pra me juntar a ele.  Vá avisar os parentes.
Alcides fitou Alzira por uns minutos. E viu o rosto do desespero, da revolta daquela moça sofrida, que desde os 18 anos enfrentou todo tipo de adversidades para criar o filho. Alcides saiu a galope, sem acreditar ainda na morte estúpida de Carminho. Alzira ficou sentada num toco de mangueira, a cabeça entre as pernas, recordando o dia em que Carminho chegou esbaforido e lhe contou:

- Eu vi um saci, mãe. Ele me apareceu, gargalhando, no redemoinho de poeira levantado por uma ventania. Ele me disse que logo, logo, eu ia para o reino dele. Que lá era muito divertido.
Eu fiquei assustado. Será que vou morrer cedo, mãe?
- Cala a boca, menino! Você vai crescer, ficar um moço bonito e se formar. Eu juro que assim será.

O dia se apagou de vez em Anhaçu. As estrelas, como de costume, recheavam o céu, agora negro, mas limpo de nuvens.  

A maior de todas, a preferida de Carminho, brilhava mais do que nunca. A muito custo, Alzira levantou-se. Foi até a pequena cozinha, olhou para o prato ainda cheio de farofa de míudos e dois ovos fritos o almoço de Carminho e, então, somente então,  chorou.


Autor: João S. Magalhães


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