Um Defunto No Avião



Eu fui a primeira pessoa a embarcar , ou melhor, a segunda a entrar na aeronave. Era manhã muito cedo. Belém como sempre nublada e quente. E ele já estava lá dentro, sentado na primeira poltrona do avião , elegante, de terno preto , luvas brancas, cabeça bem ajeitada no encosto e chapéu também preto sobre o rosto.
Ao entrar, fui direto sentar do seu lado, mas uma aeromoça, que entrou logo após, com ar severo, intimidou-me a procurar outra poltrona. Geralmente quando se vem para o interior do estado, as poltronas não são numeradas.Fiquei observando para decifrar o mistério do homem de preto. Aquilo me deixou intrigada. Percebi que o mesmo ocorreu com os demais passageiros daquele vôo que tentaram sentar na poltrona N𨬋2. A ninguém era permitido o privilégio de sentar ao lado do ilustre do terno preto. Não consegui entender o cuidado excessivo da aeromoça com aquele cidadão. Ela era a única no vôo que se sentia no direito de ficar ao lado daquele homem de rosto coberto, e aparentemente mostrava-se orgulhosa por isso. Como não entendia o que estava acontecendo, comecei a ficar irritada com aquela situação.
Quando o avião pousou em Altamira para receber mais passageiros , uma mulher entrou, falou algo para a tal aeromoça, sentou ao lado do nosso companheiro de vôo, substituindo a aeromoça no ato de cuidar. Em seguida entabulou uma conversa com a outra em voz cada vez mais baixa que eu, por mais que me esforçasse não conseguia ouvir. É claro que fiquei enciumada. Por que elas podiam ver de perto o homem misterioso e eu não! Resmunguei comigo mesmo e continuei a observar.Agora eram duas cuidando do alvo da minha curiosidade. Uma vinha e ajeitava as pernas do passageiro. Outra colocava os braços no alto da poltrona como quem abraça. As duas pegavam suas mãos enluvadas, arrumavam seu chapéu, sem nunca descobrir seu rosto.Continuei matutando: seria alguém importante? Algum ídolo disfarçado?Uma personalidade rara,,viajando sob sigilo para não ser reconhecida? Ou será que aquelas duas estavam zombando da minha cara? Foi com essas dúvidas que continuei a viagem, mas sempre de olho nos três: as superprotetoras e o homem que não reagia. Já estávamos sobrevoando a cidade de Santarém e algo passou pela minha cabeça: ou este cara é paraplégico ou está morto! Será que morto pode viajar de avião junto passageiros vivos? E se pudesse, qual seria a reação dos que estão na aeronave? Assim fui pensando e assim foi aumentando meu desejo de perguntar quem era aquele; se ele estava morto e, o que é pior, se morto pode viajar como um passageiro comum, sentado, sem nenhum problema?
Ao parar em Santarém, olhei pela janela da aeronave e vi uma multidão que se aglomerava na plataforma de espera do aeroporto.A imprensa de prontidão com suas câmeras, pessoas vestidas de preto chorosas de um lado , outras com bandeiras gritavam zangadas; e mais outras entraram na aeronave reclamando.Vi que policiais acompanhavam enfermeiros que traziam uma maca de hospital também entraram no avião e colocaram meu colega de vôo na maca, atando-o nela com cinto de proteção. Após tirarem o homem da aeronave senti um misto de alívio e medo. Até porque vários passageiros que embarcaram em Santarém entraram xingando: Um bandido com honras de chefe de estado! Só no Pará! Deviam ter jogado lá de cima este cafajeste! Só ali, naquela hora fiquei sabendo que era um bandido, matador de aluguel,perigoso,que estava sendo transportado naquele vôo. Mas era um bandido morto! No aeroporto tinha famílias das vítimas que vieram xingar o morto e familiares do morto que vieram proteger o corpo da fúria da gente viva.Mas pra que tanto repórter e jornalistas,é que eu não entendi!
Continuei minha viagem até Itaituba com a esquisita sensação de ver , em toda parte, a figura do defunto, meu companheiro de vôo.Tive um grande arrepio! Aliás, depois disso tive vários arrepios! Passei a ficar com medo por ter tido tanta vontade de sentar do lado do defunto.Ele conseguiu segurar minha atenção durante todo o vôo!Agora minha raiva era contra a companhia aérea por ter admitido como passageiro importante um bandido,e o que é ainda mais chato: dar tanta importância a um defunto no avião.
Autor: Djalmira Sá Almeida


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