O Processo de Desumanização dos Judeus como Facilitador do Holocausto



O Holocausto certamente é um dos temas mais intrigantes da Idade Contemporânea. Longe de ser objeto de consenso historiográfico, se é que isso pode ser possível em qualquer tema, há inclusive aqueles que defendem a inexistência de tal acontecimento.1
O nosso trabalho pretende mergulhar no universo das possíveis explicações para a Shoah2. Quem de nós não tem uma opinião formada sobre este assunto? No entanto, eis um dos exercícios mais difíceis ensinados com maestria por Marc Bloch: o historiador não deve julgar, apenas compreender.3 E não são poucos os que advertem para o perigo do "tentar entender" se transformar em "justificação".4 Para Claude Lanzmann, cineasta francês que dirigiu um dos maiores documentários sobre o Holocausto, explicar Auschwitz é um "ato fundamentalmente imoral", pois, "implicaria o abandono da sensação inicial de espanto, de choque."5 Talvez seja por tudo isso que nenhum museu ou memorial jamais conseguirá retratar a perseguição nazista aos judeus, pois nas palavras de um sobrevivente sempre faltará o essencial: o horror.6
Mesmo sabendo de todas as dificuldades de enveredar-se por este caminho, decidir por este tema foi um verdadeiro questionamento pessoal. Após conhecer e me aproximar de um sobrevivente do Holocausto, sempre me perguntava o porquê. Como pessoas poderiam chegar ao ponto de assassinar tantos seres humanos? E foi numa leitura completamente diferente do tema que encontrei uma chave para começar a responder a minha pergunta. O historiador José Murilo de Carvalho, ao falar sobre a Guerra do Paraguai, demonstra como ambos os lados envolvidos se esforçavam em retratar o inimigo como um animal ou monstro, através de um processo denominado "desumanização". Desta forma, a tarefa de matar "o outro" deixa de ser pensado como um atentado à civilidade. A culpa é minimizada e em alguns casos é nula já que não se destrói um ser humano, um semelhante, mas um macaco, um bicho, como no exemplo do conflito sul americano.7
Os nazistas, portanto, não matavam pessoas. Este é o ponto crucial do nosso trabalho. No lugar de seres humanos, o que eles combatiam? Este é a questão que tentaremos elucidar neste artigo.
Primeiramente, quando falamos na morte de aproximadamente seis milhões de judeus na Segunda Guerra Mundial, no que ficou conhecido como Holocausto, estamos nos referindo a um tipo de genocídio, conceito elaborado 1944 por um judeu polonês refugiado do nazismo, Raphael Lemkin, no início de 1944. Segundo ele um genocídio seria a "destruição de uma nação ou de um grupo étnico por diferentes meios"8, geralmente executados ou incitados por algum grupo organizado ou até mesmo pelo próprio Estado, seja ele legitimado pelo seu povo.
Outro conceito importante é o de judeu, ainda que haja controvérsias na definição do que é ser um. Porém talvez esta seja mais uma discussão interna entre os próprios judeus, pois quem não o é geralmente utiliza o sentido dado por François de Fontette, autor do clássico "História do Anti-semitismo", que o define como ligado ao povo (descendente de Jacó, ou Israel), também chamado de Hebreus, ou a uma religião, a judaica. Como dito anteriormente, existem correntes dentro da cultura judaica defendendo que um judeu deve ter os dois atributos; outros admitem apenas a descendência; alguns mais liberais aceitam inclusive os convertidos ao judaísmo. Manter-nos-emos fiéis ao conceito utilizado por Fontette.9
Ao falarmos nos executores do projeto nazista da Solução Final10 estamos considerando apenas os nazistas11, apesar de entender que milhares de não-judeus, direta ou indiretamente, ajudaram o sistema funcionar. Pessoas que, segundo pesquisas feitas por Kren e Rapport no estudo "The Holocaust and the Crisis"12, possuíam poucos indícios de loucura ou sadismo. Até mesmo entre os soldados da SS, cerca de 10% teriam este perfil.
Inúmeros cientistas sociais já se dedicaram a explicar a Shoah. Um dos aspectos mais explorados é saber se o Holocausto pode ser considerado como MAIS UM dos genocídios existentes na história da humanidade, ou se ele possui aspectos únicos que o diferenciam dos demais. Na defesa da singularidade do evento está, entre outros, Serge Klarfeld13. Segundo ele, o Holocausto é único porque é um drama multifacetado: da civilização europeia, dada sua "cumplicidade" para com um "crime" alemão; da civilização cristã, visto que ocorreu em territórios católicos e protestantes; um drama da modernidade, em função de configurar-se como uma matança em escala industrial e de um "triunfo" da burocracia e da racionalidade, levadas às últimas conseqüências; da natureza humana, pois é fruto do pensamento racista. É ainda um drama indizível, pois se tornou um tabu, ameaçado de esquecimento ou de negação (muito por causa do aspecto anterior); por último, é uma experiência secular, devido ao histórico antissemita.14
Outra linha de explicação para a Shoah é interpretá-la como o auge da história do antissemitismo. Um dos maiores especialistas no tema, Raul Hilberg15, apresentou uma linha do tempo na qual podemos perceber a transformação pela qual passou a relação entre judeus e não-judeus. Um primeiro momento caracterizado pelo autor seria a exclusão, segregando os judeus como forma de evitar sua indesejada presença. O segundo momento seria o da conversão, quando a Igreja Católica tolerou a presença dos judeus, desde que passassem a professar a fé cristã. Por fim, o judaísmo de cunho religioso acabou por ser suplantado pelo judaísmo de cunho racista. Como bem escreveu Hannah Arendt, "os judeus puderam escapar do judaísmo pela conversão, mas da qualidade de judeus não havia escapatória".16 Surgem, então, as teorias que pregarão a eliminação da "raça" judaica. O Holocausto seria a culminância deste último momento.
Outros autores irão relativizar o aspecto antissemita, afirmando que este, sozinho, não é capaz de dar conta da complexidade do Holocausto. Para esses estudiosos, as mudanças trazidas pela modernidade foram fundamentais para o sucesso desta empreitada. Ícone desta corrente, Zygmunt Bauman17 nos chama a atenção para a grandiosidade e complexidade do trabalho de extermínio, fato impossível de ser realizado sem uma moderna estrutura burocrática e um sistema industrial da morte.
Uma outra corrente defende que o Holocausto foi tão-somente mais uma ação do programa do partido nacional-socialista. Dentre eles, ainda podemos fazer uma distinção entre os que acreditam que o extermínio dos judeus já estava claramente sistematizado nos planos de Hitler desde o início do III Reich, esperando apenas o momento certo para fazê-lo ? os chamados intencionalistas -, e os que defendem a existência de uma ideia genérica de "Solução Judaica", de uma "Alemanha Limpa", mas sem uma direção prática para implantá-los ? os chamados funcionalistas.18
Para fechar este primeiro grupo de autores - que não questionam a existência do Holocausto - encontramos alguns especialistas que destacam os aspectos psicológicos por detrás deste evento. A socióloga Helen Fein, por exemplo, fala em um contexto, gestado e colocado em prática pelo governo nazista, no qual os alemães foram retirados temporariamente de seu estágio civilizatório, quando "as pessoas podem agir sem considerar a possibilidade de estar ferindo outras."19 Em outras áreas do conhecimento, para além das ciências sociais, pesquisadores buscam demonstrar como o ser humano pode se tornar cruel em determinadas circunstâncias, seja porque coloca a responsabilidade dos seus atos em terceiros, seja porque veem despertar dentro de si instintos "bárbaros" quando colocados em situações específicas.20
Por fim, não poderíamos deixar de falar daqueles que buscam provar a inexistência de um Holocausto, enquanto evento genocida de proporções gigantescas. Essa vertente historiográfica é conhecida como revisionista ou negacionista. Uma das obras mais destacadas deste grupo é "A Indústria do Holocausto: reflexões sobre a exploração do sofrimento dos judeus", do historiador norte-americano Norman G. Finkelstein. O autor em questão - e, grosso modo, o grupo que advoga que o holocausto não passa de uma falácia - não nega que, durante a II Guerra Mundial, milhares de judeus morreram. Negam, porém, que tenha havido um plano oficial por trás de tais mortes, visto que estas foram decorrentes da própria situação em que estavam expostos: doenças, fome, frio. Além disso, outros grupos21 também foram vítimas dos nazistas, fato que não teve a mesma repercussão que as mortes dos judeus. Para eles, isso se deve a uma tentativa de colocar os judeus como vítimas, justificando inclusive a implantação do Estado de Israel.22
Acreditamos que a relevância de nosso objeto de pesquisa reside justamente na ênfase a uma das missões mais caras ao historiador. Nas palavras de Eric Hobsbawn, "a destruição do passado [...] é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres [...]", posto que "os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem". Os historiadores são tão importantes, conclui ele, porque seu ofício é lembrar o que outros esquecem.23 Além disso, é comum encontrar nas salas de aula, quando abordamos este tema, dúvidas sobre como uma pessoa é capaz de cometer semelhante barbárie com outro ser humano. Muitos dos jovens acreditam que todo aquele ódio é algo distante da realidade deles, mas se esquecem de que o ódio extremo se inicia com intolerância e preconceito presentes em toda e qualquer cultura. Uma experiência que serviu de base para um filme24, mostrou bem que não podemos de maneira nenhuma julgar os atos daqueles que aderiram ao regime nazista. Quem de nós pode garantir que, se estivéssemos no lugar deles, também não seríamos cúmplices do extermínio dos judeus?



1 Referimos-nos aos revisionistas ou negacionistas, de quem falaremos mais adiante.
2 Shoah (palavra hebraica que significa "destruição, ruína, catástrofe") é como os judeus preferem se referir ao Holocausto, já que esta última palavra vem do grego holokauston e significa "sacrifício a Deus", o que levaria a uma interpretação específica sobre os acontecimentos que levaram à morte de milhões de judeus na Segunda Guerra Mundial.
3 BLOCH, Marc. Apologia da História ou ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
4 ROSENFIELD, Denis. O Mal e a Razão. In: FUKS, Saul (org.). Tribunal da História: julgando as controvérsias da história judaica. Rio de Janeiro: Relume: Centro de História e Cultura Judaica, 2005, p. 210-211.
5 LESSA, Renato. Pensar a Shoáh. In: FUKS, Saul (org.). Tribunal da História> julgando as controvérsias da história judaica. Rio de Janeiro: Relume: Centro de História e Cultura Judaica, 2005, p. 229. O documentário dirigido por Lanzmann, com mais de 9 horas de duração, é o Shoah (1985).
6 CYTRYNOWICZ, Roney. As formas de lembrar e a história do Holocausto. In: MILMAN, Luis; VIZENTINI, Paulo Fagundes (orgs). Neonazismo, Negacionismo e Extremismo Político. Porto Alegre: Editora da Universidade ? UFRGS, 2000. Disponível em: . Acesso em: 23/09/2010.
7 CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e políticas no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006, p. 181-182.
8 Apud CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Holocausto: História e Memória, p. 28; In Nunca Mais ? educando para a cidadania e a democracia. 1ª jornada interdisciplinar Intolerância e Holocausto: como estudar e ensinar. Rio de Janeiro. Secretaria do Estado do Rio de Janeiro, 2010.
9 FONTETTE, François de. História do Antissemitismo. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1989. A lei rabínica tradicional entende como judeu aquele que é nascido de mãe judaica ou convertido legitimamente ao judaísmo. Vide BARON, Salo W.. História e Historiografia do povo judeu. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974, p. 121. No entanto, veremos que para efeitos de perseguição, qualquer descendência ou ligação com o judaísmo basta para o antissemita.
10 A chamada Solução Final, Endlösung, teria sido a decisão tomada na Conferência de Wannsee, em 20 de janeiro de 1942, determinando o extermínio em massa de todos os judeus presentes nos territórios ocupados pela Alemanha. Ver FONTETTE, François de. Op. Cit. p. 108.
11 Chamaremos de nazistas, no nosso estudo, apenas os membros do partido NSDAP.
12 Apud BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 1998, p.38/39.
13 Ficou conhecido, junto com outras pessoas, como "caçador de nazistas", procurando e juntando provas para levar os executores do Holocausto para a justiça. Escreveu trabalhos sobre as crianças no Holocausto.
14 CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Op. Cit.
15 HILBERG, Raul. The Destruction of the European Jews. Yale University Press, 2003.
16 ARENDTT, Hannah. Origins of Totalitaism, p.87; Apud BAUMAN, Zygmunt. Op. Cit., p.81.
17 BAUMAN, Zygmunt. Op. Cit.
18 Sobre a distinção entre historiadores intencionalistas e funcionalistas, ver BAUMAN, Zygmunt. Op. Cit., p. 129.
19 FEIN, Helen. Accounting for Genocide: National Response and Jewish Victimization during the Holocaust. Nova York: Fre Press, 1979, p. 34; Apud BAUMAN, Zygmunt. Op. Cit., p. 23.
20 Sobre a primeira experiência, ver Stanley MILGRAN. The Individual in a Social World. Reading, Mass.: Addison and Wesley, 1971. Quanto à segunda, ver Curtis Banks & Philip Zimbardo. Interpersonal Dynamics in a Simulated Prision. International Journal of Criminology and Penology. vol. 1, 1973, p. 69-97. Ambos em BAUMAN, Zygmunt. Op. Cit., p. 181-190 e p. 194-195.
21 Além dos prisioneiros de guerra, ciganos, Testemunhas de Jeová, homossexuais, doentes mentais e físicos estão presentes na lista dos que foram mortos pelo governo nazista.
22 Os revisionistas ou negacionistas possuem uma grande aceitação entre os neonazistas e os "inimigos de Israel", como alguns países islâmicos. A internet é o principal veículo de divulgação dessas ideias no Ocidente, já que em muitos países a legislação proíbe este tipo de conteúdo, geralmente antissemita. Apenas para citar exemplos de sites com a temática: http://verdadehistorica.wordpress.com/ e http://radioislam.org/islam/indexpo.htm.
23 HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos. O breve século XX: 1914-1991. Companhia das Letras. São Paulo, 1995. p. 13.
24 "A Onda" [ The wave] ? Dur.: 45 minutos ? Direção: Alex Grasshof - País: EUA - Ano: 1981

Autor: Luiz Eduardo Farias


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