Só As Feridas Lavadas Cicatrizam



'Só as feridas lavadas cicatrizam' (Michelle Bachelet, presidente do Chile)

Adriana Monteiro da Silva

Advogada

 A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça promoveu ontem, dia 31 de julho de 2008, o debate 'Limites e possibilidades para a Responsabilização Jurídica dos Agentes Violadores de Direitos Humanos durante o Estado de Exceção no Brasil.'

Considero que este seja um marco histórico para a consolidação da democracia no Brasil. 

O direito à verdade, à memória coletiva, à construção da identidade histórica de uma nação e de seu povo é fundamental para que tenhamos consciência dos caminhos já traçados e daqueles que pretendemos percorrer.

A verdade é que, passados 29 anos da publicação da Lei da Anistia, a tradição brasileira política de considerar a conciliação como forma de preservação dos interesses fundamentais das classes dominantes na nossa sociedade, concedeu um caráter contra-revolucionário à norma, que ganhou ares de pacificadora, obstando a apuração de crimes de tortura e assassinato cometidos pelos agentes da repressão do regime de exceção acobertados – para não dizer incentivados – pelo governo militar. De mãos dadas com a conciliação, vem o esquecimento sugerido pela Lei, que trouxe para a nossa transição democrática, segundo a Professora Flávia Piovesan, as marcas de um continuísmo autoritário, alvitando os direitos humanos e desrespeitando "parâmetros internacionais contraídos pelo Brasil, em casos de torturas e graves violações, o Estado assume o dever jurídico de investigar, processar, punir e reparar essas violações."

A Lei deAnistia, de 28 de agosto de 1979, concedeu seus benefícios a "todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de Fundações vinculadas ao Poder Público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares".

Além disso, considera crimes conexos, para efeitos do citado artigo, os "crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política."

Por meio deste dispositivo, utilizando-se do discurso apaziguador da lei, os interessados na não punição daqueles que sustentaram a violenta e sangrenta ação militar travada nos porões da ditadura, defendem veementemente a idéia de que a anistia apagou os crimes de tortura, estupro, homicídio e tantos outros perpetrados nos anos de chumbo.

O conceito de crimes conexos pressupõe vínculo entre os crimes praticados e suas hipóteses estão enumeradas no art. 76 do Código de Processo Penal e ensejam um fim único em sua prática. Parafraseando Hélio Bicudo, ex-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a finalidade daqueles que praticam crimes políticos ou a eles assemelhados é completamente diversa da finalidade daqueles que torturam e matam em nome do Estado ou com o seu consentimento. Não há como falar em conexidade "se os crimes de uns vão num sentido e o de outros em sentido diverso".Crimes conexos são os praticados por uma pessoa ou grupo de pessoas que se encadeiam em suas causas. "Não se pode falar em conexidade entre fatos praticados pelo delinqüente e pelas ações de sua vítima. A anistia perdoou estas, e não aqueles; perdoou as vítimas, e não os que delinqüem em nome do Estado."

Não há, portanto, qualquer fundamento em se interpretar que a Lei 6.683/79 concedeu anistia aos agentes do Estado, pois tal interpretação equivaleria à concessão de perdão pela ditadura militar a si própria, o que à luz dos princípios do Estado Democrático de Direito é inadmissível e ofende os direitos fundamentais consagrados pela Carta Magna de 1988 e as decisões já consagradas no sentido de considerar os crimes de tortura e de desaparecimento forçado de pessoas como crimes contra a humanidade, conforme previsto na jurisprudência das cortes internacionais de direitos humanos e no Estatuto de Roma, que instituiu o Tribunal Penal Internacional.

Na tentativa de afastar a possibilidade destas punições, aqueles que a repudiam defendem que são crimes prescritos. Ora, os crimes de lesa humanidade são imprescritíveis. Considera-se que não são pontuais, não atingem apenas aqueles contra quem são praticados, mas a toda a humanidade, podendo ser puníveis a qualquer tempo.

Da mesma forma, o argumento de que o crime de tortura não estava previsto em lei, tendo em vista que a Lei 9.455, que prevê o crime de tortura, apenas foi publicada em 1997, também não pode prosperar. A tortura veio acompanhada, em praticamente todos os casos, dos crimes de lesão corporal, de homicídio, de estupro, todos já previstos naquele período no Código Penal Brasileiro, além disso, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada em 1948, já previa, em seu art. V, que "ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante".

É também importante ressaltar que aqueles que contestaram a ordem vigente durante o período de exceção e, para fazê-lo, utilizaram-se de crimes de seqüestro, assalto a bancos e homicídios não foram anistiados. A todos estes coube o peso da Justiça Militar e da Justiça Comum, sendo obrigados ao cumprimento das penas previstas em lei. Por outro lado, os que abusaram das prerrogativas de Estado, pervertendo sua função de promotor de direitos a delinqüente, o que é visivelmente pior, continuam sem sequer ser identificados.

Portanto, não há nenhum óbice jurídico à responsabilização dos agentes do Estado que perpetraram crimes de lesa humanidade durante o regime militar no Brasil. Além disso, como bem lembrou Frei Betto, em seu artigo "Punir Torturas, Abrir Arquivos", o Brasil também "tem o direito de saber que nem todos os militares foram coniventes com a tortura e o assassinato de presos políticos. Enquanto os arquivos permanecerem clandestinos, acobertados pela mentira de que foram destruídos, não se pode separar o joio do trigo, e o ônus recai sobre toda a corporação militar, o que não é justo". As Forças Armadas devem ser motivo de orgulho para um País. Se não julgarmos estes agentes, corremos o risco de que a Corte Internacional o faça, o que seria um desmérito para o Brasil.


Autor: Adriana Monteiro da Silva


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