Eficácia horizontal dos direitos fundamentais à luz da dignidade da pessoa humana



Os direitos fundamentais representam os valores básicos para uma vida digna na sociedade, estão eles intimamente ligados à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder, visto que onde há opressão não poderá haver uma vida digna, portanto, a dignidade humana é a base axiológica desses direitos.
Originariamente, foram estes direitos concebidos como instrumentos de proteção dos indivíduos contra a opressão estatal. Atualmente as normas constitucionais estão sendo utilizadas para auxiliar na solução de conflitos entre particulares, através da chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Na esfera privada, estão inseridos indivíduos que por serem detentores de poder econômico e social são potencialmente capazes de causar danos efetivos aos princípios constitucionais e de oprimirem do mesmo modo ou até mais que o Estado, razão pela qual se faz necessária a aplicação da eficácia horizontal às relações particulares.

Contudo, a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas envolve uma ponderação de interesses, fundamentada na autonomia privada e valoração de direitos e princípios fundamentais do homem. Assim, imprescindível que os direitos fundamentais convertam-se em ferramenta de modelação de toda a sociedade, em outras palavras, em um “sistema de valores” a orientar toda ação pública e privada.

O debate sobre a chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais envolve a aplicação das normas constitucionais às relações privadas, em contrapartida da autonomia da vontade e a efetivação dos direitos fundamentais. Em outras palavras, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais é a eficácia em relação a terceiros, assim Joaquim José Gomes Canotilho (1999, p. 1.206) ensina que “deixam de ser apenas efeitos verticais perante o Estado para passarem a ser efeitos horizontais perante entidades privadas.”. Para o alcance desta eficácia horizontal, as relações de ordem jurídica devem reger-se pelo princípio constitucional da igualdade, que atua nas diversas áreas do relacionamento indivíduo- indivíduo e indivíduo- Estado.

Assim, esclarece Maliska (2001, p. 119):

 

Em um primeiro momento, seria possível afirmar que, sendo a Constituição uma ordem da comunidade e não somente do Estado, bem como que os direitos fundamentais estão inseridos na comunidade e dela exigem respeito aos seus preceitos, a chamada eficácia horizontal não seria mais do que um desdobramento dos direitos fundamentais, pois estes não são apenas dirigidos ao Estado, mas também à comunidade como um todo.

 

Para consolidar a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, Gomes Canotilho (1994, p. 593) sugere a análise de duas teorias, a primeira delas é a Teoria da eficácia direita ou imediata, em que “[...] os direitos, liberdades e garantias e os direitos análogos aplicam-se obrigatória e diretamente no comércio jurídico entre as entidades privadas (individuais e coletivas)”. E a segunda, é a Teoria da eficácia indireta ou mediata, em que os “[...] direitos liberdades e garantias teriam uma eficácia indireta nas relações privadas, pois a sua vinculatividade exercer-se-ia “prima facie” sobre o legislador, que seria obrigado a conformar as referidas relações obedecendo aos princípios materiais positivados nas normas de direito, liberdades e garantias”.  Assim, torna-se necessário compreender a eficácia como a aptidão que a norma tem para produzir relações jurídicas concretas.

É exatamente neste ponto que a doutrina encontra divergência, ou seja, na maneira como se dá a vinculação da eficácia horizontal, posto que alguns doutrinadores se filiam a concepção da vinculação mediata, já outros são adeptos da tese da eficácia imediata. Assim, neste aspecto, é fundamental expor a análise de Sarlet (1998, p. 336):

 

De acordo com a primeira corrente, que pode ser reconduzida às formulações paradigmáticas do publicista alemão Dürig, os direitos fundamentais – precipuamente direitos de defesa contra o Estado – apenas poderiam ser aplicados no âmbito das relações entre particulares após um processo de transmutação, caracterizado pela aplicação, interpretação e integração das cláusulas gerais e conceitos indeterminados do direito privado à luz dos direitos fundamentais. Já para corrente oposta, liderada originariamente por Nipperdey e Leisner, uma vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais encontra respaldo no argumento de acordo com o qual, em virtude de os direitos fundamentais constituírem normas de valor válidas para toda a ordem jurídica (princípio da unidade da ordem jurídica) e da força normativa da Constituição, não se pode aceitar que o direito privado venha a formar uma espécie de gueto à margem da ordem constitucional.

 

Ainda nesta esteira, Sarmento (2006, p. 328-329), ao defender a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, delineia:

 

No Brasil, considerando a moldura axiológica da Constituição de 88, é induvidoso que a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas é direta e imediata, ressalvados aqueles direitos que, pela sua própria natureza, só podem produzir efeitos em face do Estado (e.g, direitos do preso). A Carta de 88 não chancelou a clivagem absoluta entre o público e privado, na qual se assentam as teses que buscam negar ou minimizar a incidência da Constituição e dos direitos fundamentais nas relações entre particulares.

[...]

O reconhecimento da eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas não importa em amesquinhamento do papel do legislador nesta seara. Cabe ao legislador, num primeiro momento, concretizar os direitos fundamentais na esfera privada, empreendendo a ponderação de interesses necessária com a autonomia individual dos particulares.  As ponderações do legislador, em princípio, devem ser respeitadas pelo Judiciário, diante da presunção de constitucionalidade das leis, que deriva do reconhecimento da sua intrínseca legitimidade democrática.  Porém, em face da ausência de norma adequada, ou quando a que tiver sido editada pelo legislador afasta-se dos parâmetros axiológicos extraídos da Constituição, deverá o Judiciário aplicar diretamente os direitos fundamentais na resolução dos litígios privados.

 

Verifica-se que boa parte da doutrina pátria é seguidora da eficácia horizontal, especialmente em respeito à dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da República Federativa. Vale ressaltar, que é necessário que haja uma ponderação com o princípio da autonomia privada, desde que este nunca agrida os valores axiológicos da Lei Maior de 1988, especialmente no supracitado princípio da dignidade da pessoa humana.

Assim, a sociedade, o poder público e os particulares, estes na figura das pessoas físicas e jurídicas, devem subordinar-se aos direitos fundamentais instituídos na Carta Magna, por serem estes direitos os responsáveis pela concretização dos valores máximos inseridos no ordenamento jurídico.

Imperioso destacar o entendimento do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes no Recurso Extraordinário 201819:

 

SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS.  UNIÃO BRASILEIRA DE

COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO.  EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO.

 

I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS.

As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.

II OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES.

 A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais.

III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO.

As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores – UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88).

IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO.[1]

 

Insta observar, o trecho do voto do Ministro Celso de Mello (2011), no mencionado Recurso Extraordinário:

 

É por essa que a autonomia privada – que encontra claras limitações de ordem jurídica – não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais.

 

Deste modo, estando amparado os direitos fundamentais nas relações privadas, pode-se afirmar que o direito privado deverá está em consonância com as normas constitucionais, em um processo contínuo, para quando ocorrer a aplicação de uma norma de direito privado, esta venha acompanhada de uma norma constitucional.

Sarlet (2000, p. 157), coaduna que “[...] o adequado manejo da eficácia direta nas relações entre particulares e a intensidade da vinculação destes aos direitos fundamentais deve ser pautada de acordo com as circunstâncias do caso concreto”.

A questão aludida é por demais complexa e deve ser analisada com cautela, pois versa a respeito da colisão entre direitos fundamentais de diversos titulares, por esta razão, combatemos em defesa do equilíbrio e a máxima anuência, para que nenhum dos envolvidos seja obrigado a imolar totalmente o direito a ele inerente, pois é imprescindível ser a essência deste direito resguardada.

 

[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n° 201819, da 2ª Turma. Recorrente: UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES – UBC.  Recorrido: ARTHUR RODRIGUES VILLARINHO. Redator do Acórdão Min. Gilmar Mendes.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Decisão Publicada em 27/10/2006. Disponível: . Acesso em 27 Mai. 2011.

CANOTILHO, J. J. G. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 1994.

________. Direito constitucional e teoria da constituição. 3ª Ed. Coimbra: Almedina, 1999.

MALHEIROS, M. R. T. L. Pesquisa na Graduação. Disponível em: . Acessado em: 11 Jun. 2011.

MALISKA, M. A. O direito à educação e a constituição. Porto Alegre: Fabris, 2001.

SARLET, I. W. A Eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.

________. A constituição concretizada. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2000.

SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006.

VIEIRA DE ANDRADE, J. C. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987.

________. Os direitos, liberdades e garantias no âmbito das relações entre particulares. In: SARLET, I. W. (organizador). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

SILVA, E. L.; MENEZES, E. M. Metodologia da pesquisa e elaboração de dissertação. 3ª Ed. Florianópolis: Laboratório de Ensino a Distância da UFSC, 2001.

 


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